Catolicismo Nº 27 - Março de 1953

 

AS CERIMÔNIAS DA POSSE DE EISENHOWER À LUZ DA DOUTRINA CATÓLICA

 

A cerimônia da transmissão das funções presidenciais nos Estados Unidos foi noticiada pela imprensa diária com a maior abundância de pormenores. É natural que assim tenha sido. Excetuado o Sumo Pontificado, que por numerosas e evidentes razões está acima de paralelo com qualquer função terrena, nenhum cargo, nos dias de hoje, confere mais poderes do que o de Presidente dos Estados Unidos. Com efeito, a constituição daquele país atribui ao primeiro magistrado grande soma de atribuições que, em tempo de guerra, podem tomar uma atitude quase ditatorial. Os Estados Unidos estão, no momento presente, em uma tal culminância de força militar e econômica, que toda a vida internacional das cinco partes da terra passa pelas mãos de seu presidente. A conjuntura histórica dramática em que vivemos pode dar importância decisiva, no sentido da guerra ou da paz, a um número incontável de decisões que o Presidente é forçado a tomar a cada momento. Em outros termos, várias vezes por dia o chefe do Estado americano é chamado a decidir os destinos do mundo. É empolgante o ato pelo qual uma criatura humana entra oficialmente no exercício de uma tão terrível soma de poderes. É, pois, perfeitamente natural que todos os pormenores desse ato de uma gravidade sem par, interessem ao mundo inteiro.

O CERIMONIAL, ESPELHO DE UMA ÉPOCA

Precisamente porque os atos graves, quer da vida dos povos, quer dos particulares, interessam em todos os seus pormenores, a ordem natural das coisas pede que tais atos se façam com certos ritos, aparato e formalismo, que devem ser maiores ou menores conforme a sua maior ou menor importância. Em todos os tempos, houve grandes solenidades para efetuar a posse na dignidade de Imperador ou Rei; solenidades menores para a posse de um ministro, ou de um governador de província; menores ainda para as de um prefeito, e assim por diante em escala decrescente. Até para a investidura na mais modesta das funções públicas, mesmo em nossa época de prosaísmo desenfreado, emprega-se um tal ou qual ritual, por ocasião da prestação do compromisso de bem servir.

A tal ponto tudo isto é natural, razoável, normal, que pensamos no Conselheiro Acácio ao repetir estes conceitos. E se o pitoresco personagem de Eça nos ouvisse, acrescentaria logo que a solenidade de uma posse deve obedecer a algumas considerações principais: a) tornar sensível a todos a respeitabilidade intrínseca desse ato; b) manifestar a seriedade de espírito e a lisura de intenções com que o novo dignitário assumirá suas responsabilidades, c) exprimir os sentimentos e os propósitos dos circunstantes em relação ao novo dignitário.

Por isto, o estudo do cerimonial e do protocolo é de inegável importância para o conhecimento dos ambientes e dos estados de espírito sob cuja influência eles se formaram. Pois se queremos conhecer a idéia que os egípcios faziam da dignidade real, o que melhor do que estudar a etiqueta de que se cercava toda a vida do Faraó. O cerimonial aparatoso do nazismo nos revela muito do modo por que a doutrina nacional-socialista e a sensibilidade das massas hitleristas consideravam as funções de führer. E assim por diante.

O conhecimento exato do cerimonial de posse do Presidente dos Estados Unidos nos revela, em conseqüência, muito do que o americano de hoje pensa das funções de chefe de Estado. Há pois todo um estudo de psicologia coletiva a fazer, no noticiário da posse, que, neste sentido, merece não só ser lido, mas também comentado.

RESUMO DO NOTICIÁRIO

Lembremos antes de tudo o mais essencial do noticiário.

Às 11,30 hs. do dia 20 de janeiro o Presidente Truman deveria deixar definitivamente a Casa Branca, para buscar o General Eisenhower em seu hotel. De fato, porém, o General e sua esposa anteciparam-se ao Sr. Truman, e o foram pegar na Casa Branca, para de lá se dirigirem ao Capitólio. Foi um gesto elegante, uma distinção que o novo Presidente quis fazer ao seu antecessor. Há quatro anos atrás, Truman tomara posse de cartola. Desta vez, porém, tanto ele quanto Eisenhower usavam chapéu de feltro. Truman e Eisenhower, este sério, e aquele sorridente, seguiram para o Capitólio no carro presidencial. Em outro automóvel, viam-se as senhoras Eisenhower e Truman. Vinha depois o restante do cortejo. Durante o trajeto, quatro guardas de chapéus moles, postados nos estribos do automóvel presidencial, o protegiam. À chegada estavam presentes, no Capitólio, os mais altos dignitários civis e militares dos Estados Unidos: todo o Senado, toda a Câmara dos Deputados, os governadores dos quarenta e oito Estados, generais, almirantes, embaixadores, e membros da Corte Suprema. Estes últimos se apresentavam trajando togas negras. As demais personalidades oficiais vestiam roupas de passeio e chapéus moles. Lentamente, todas as pessoas gradas foram ocupando lugar nas tribunas, no recinto, na bancada destinada aos ministros. Notava-se a presença dos membros do gabinete Truman, e do ministério do novo Presidente. Por fim, o General Eisenhower, o Sr. Richard Nixon, eleito para a vice-presidência, e o Sr. Truman se dirigiram para a rotunda, onde se ia realizar a cerimônia do juramento. Os circunstantes aplaudem Eisenhower. A cerimônia chega a seu ponto culminante. O Arcebispo católico de Washington, Mons. Patrick O'Boyle, postado em frente de Eisenhower, recita uma breve oração. Ato contínuo, o senador William Knowland estende a Bíblia ao Sr. Nixon, que presta o juramento de praxe. Em seguida, a artista negra Dorothy Maynor canta o Hino Nacional. A banda dos fuzileiros navais executa "América", a marcha patriótica predileta do General. O rabino Hillel Silver faz então uma prece. Eisenhower, que pela manha assistira a um ofício solene na igreja nacional presbiteriana, "sério e recolhido fecha os olhos", nos diz um telegrama, enquanto reza o rabino. O Sr. Fred Vinson, presidente da Corte Suprema, estende duas Bíblias, uma chamada a Bíblia Maçônica, sobre a qual prestaram compromisso todos os presidentes norte-americanos desde George Washington, e outra uma Bíblia de bolso sobre a qual há trinta e oito anos Eisenhower prestou em West Point seu juramento de oficial. O General recita a formula: "Eu, Dwight Eisenhower, juro solenemente cumprir com fidelidade minha tarefa de presidente dos Estados Unidos, preservar e defender com todas as minhas forças a Constituição dos Estados Unidos". Vinson disse então: "Que Deus vos ajude". Ao que o General respondeu: "Que Deus me ajude". Está empossado o 34º Presidente dos Estados Unidos. Estrugem aplausos, trocam-se cumprimentos. Eisenhower pede aos presentes que orem por ele. E em seguida dá início à leitura de seu discurso. Terminado este, o bispo da igreja episcopal lança sua bênção. Trocam-se novos cumprimentos.

O cortejo presidencial, composto de cerca de cinqüenta pessoas, dirige-se para a saída. Deixando o Capitólio, o presidente Eisenhower abandonou o carro oficial preto, por uma brilhante Cadillac branca. Atrás da Cadillac vêm os tambores da música militar, em grande uniforme, que fazem tremer as vidraças à sua passagem. Um batalhão de infantaria escolta as bandeiras, os "marechais" da parada ladeiam-nas. São eles o general Spaatz, o almirante Kirk e o general Gerow. Desfilam, a seguir, vinte mil homens e mulheres das diferentes armas e corporações militares. Sessenta e cinco bandas de música marcam o compasso.

Eisenhower mantém-se de pé no carro, durante o trajeto. A seu lado está a Sra. Eisenhower, com três orquídeas brancas na lapela. As janelas estão repletas de gente. Nas árvores, há pencas de garotos. O Presidente marcha para a Casa Branca sob uma nuvem de confetes. Quando o General chega à residência presidencial, instala-se em um estrado. O desfile começa com imponência. Abrem-no as bandeiras dos quarenta e oito Estados, e dois mil cadetes de West Point com seus quepes de penacho. Vem a seguir um carro alegórico escoltado pelos alunos da Escola Naval de Anápolis em uniforme branco: simboliza a "fé religiosa". Passam depois os índios, brandindo os "tamahawk", e arrastando até o chão suas penas multicolores. O Presidente lhes aperta efusivamente as mãos. Mais um carro alegórico, e depois vêm bandas de música uniformizadas. Em seguida outro carro, que representa um menino de colo: Eisenhower em sua primeira infância. Nota-se também uma delegação de cow-boys, enviada pelo Kansas, Estado natal do Presidente. Este Estado também se fez representar por uma delegação de "bonitas jovens de saia curta vermelho-vivo", rezam os telegramas. Passa depois, em soberbos cavalos negros, a Polícia Montada da Pennsylvania. Segue-se-lhe um cow-boy isolado, que tenta uma primeira proeza: deita o laço em um policial. A Sra. Eisenhower aplaude. O cow-boy se coloca então diante do Presidente, e pede permissão para o laçar. Eisenhower autoriza e se põe de pé. Os fotógrafos batem chapas. Depois outra nota imponente: os hussards da Geórgia passam com suas túnicas vermelhas à Brandenburg, e suas botas lustrosas. Segue-se o grupo das tambores-mores, trajadas de branco, pernas nuas, fazendo malabarismos com seus longos bastões. O Estado de Kentucky se faz representar por miss Hilda Bayburry, campeã mundial das "balizas", que vem manobrando seu bastão "como uma hélice, entre saltos perigosos". Fantasiados de Tio Sam, passam depois representantes dos negros republicanos de New York. O Maine enviou um carro com quinze moças em maillot de banho a despeito do frio. Vêm em seguida "grandes e belas jovens de saia curta". Depois uma banda de música. E vem por fim, "para coroar tudo", dizem os telegramas, "miss América, ex-miss Vídeo Vênus, ex-miss televisão", em meio de palmeiras: é o carro da Flórida. Miss América está de maillot de banho, "mas usa sobre as suas espáduas nuas uma pele de zibelina". Seguem-se marinheiros aviadores, infantaria, pára-quedistas, tanques Patton, e com estes Miss Burmah, elefante mascote do Partido republicano. A mascote fez uma reverência diante do Presidente e continuou. Veio depois de Miss Burmah o canhão atômico de setenta toneladas, puxado por tratores. O cortejo foi encerrado por um carro do Estado de Columbia, que abriu diante do Presidente uma gaiola cheia de pombos, que voaram num rufar de asas. Já era noite. Estava terminado o desfile. O Presidente, sua esposa, a comitiva se retiram para a Casa Branca. E assim se encerrou o que um telegrama chamou o "carnaval a um tempo patriótico, militar e hollywoodiano, imagem sintetizada dos Estados Unidos com seus índios, seus elefantes, suas chorus girls, seu canhão atômico, seus carros seus aviões".

ESTADOS UNIDOS: A REALIDADE E A PROPAGANDA

Passemos da descrição à analise. As palavras da agência telegráfica exprimem bastante bem a impressão de conjunto que as cerimônias nos deixam: "imagem sintetizada dos Estados Unidos, com seus índios, seus elefantes, suas chorus girls, seu canhão atômico, seus carros, seus aviões", sim, e mais ainda sua riqueza, seu imenso poder, e... seus aspectos carnavalescos.

Precisemos os termos. Não se trata, evidentemente, da América do Norte autêntica e real, da América do Norte tradicional e verdadeira, quando num caso como este se fala de "Estados Unidos". Trata-se da mentalidade, dos costumes, do ambiente de uma "América do Norte" de superfície, da América do Norte da propaganda, da demagogia, de Hollywood, dos "night-clubs", e das extravagâncias. Coisa que seria talvez tão infantil confundir com a verdadeira América do Norte, como seria ridículo identificar o Brasil verdadeiro com esse Brasil de fancaria, das "boites" de Copacabana e alhures, das macumbas e dos candomblés mais ou menos inautênticos que apontam como nossos, costumes com que pouco temos que ver e crenças contrárias às nossas, do carnaval que deixou de ser brasileiro desde que degenerou de festa familiar em explosão de uma das coisas mais internacionais que há, que é a lascívia, e de toda a espécie de carnavais políticos, parlamentares, etc., de que nossa terra está cheia. Aos poucos vai se formando no mundo inteiro uma imagem do Rio de Janeiro, propagada pelo cinema e pelo rádio, que poderia ser resumida em poucos elementos: o indefectível Pão de Açúcar, o mar, uma palmeira, e aos pés desta um preto indolente cantando um samba, ou saltando uma dança qualquer; ao fundo, os arranha-céus de Copacabana, tudo prometendo aos turistas, a mancheias, todas as delícias da natureza e da civilização. Que há de tudo isso no Brasil é óbvio. Mas que isto seja o Brasil, não. É o que se pode dizer dos Estados Unidos. Todo o carnaval "hollywoodiano" constitui nos Estados Unidos algo de indiscutivelmente importante. Mas que os Estados Unidos sejam só isto, que toda a nação americana se exprima na cerimônia da posse, não. Quando houve uma posse de Presidente da República que em sua cerimônia exprimisse inteiramente o Brasil, o Brasil real de todas as camadas da população, tão diferente e tão distante do Brasil oficial? Ao fazer esta distinção entre Estados Unidos e Estados Unidos, timbramos em usar como termo de comparação nossa própria Pátria, a fim de mostrar nosso desejo de não ferir qualquer susceptibilidade legítima. Mas enfim a posse de Eisenhower - considerada em seu aspecto protocolar e social - exprimiu alguma coisa de realmente existente. E esta alguma coisa, importa analisá-la.

Porque, se reconhecemos que representa mais os aspectos superficiais dos Estados Unidos, e de mera propaganda, que os reais? A razão é simples. A América do Norte que o mundo inteiro conhece, os Estados Unidos que o cinema, o teatro, a imprensa, o radio, a televisão apontam como a nação do presente por excelência, aquela à qual se devem conformar todos os povos se não quiserem ser anacrônicos, se não quiserem conservar-se de tal maneira fora da vida moderna que serão esmagados pelo rolo compressor dos acontecimentos, são precisamente os Estados Unidos de superfície, de propaganda. Não só a propaganda mundial se organizou em favor da difusão desta imagem, mas também contra os que resistem à atração dela. Quem não concordar com este estilo "americano" de ver e de sentir, quem não queimar incenso diante deste ídolo, é "reacionário". E esta palavra vem carregada de uma séria [dose] de eletricidades daninhas... ao menos para os tolos. Ser reacionário, é ser diferente, esquisito, antipático, é contrariar a moleza, a imprevidência, a preguiça, a sensualidade, o orgulho de muita gente, é - supremo horror! - ter inimigos! Ser reacionário é sonhar com grandes fogueiras em que crianças são assadas vivas, é sonhar com cargas de cavalaria contra velhos e mulheres, é querer voltar ao carro de boi, e, coisa mil vezes pior do que tudo isto, é querer acabar com o cinema. Oh dor! Como se pode pensar em viver sem cinema? Quem nos ajudará a passar o tempo, esbanjar o tempo, matar o tempo, sem cinema? Quem nos dará meios de fugir de nós mesmos e dos outros, no dia em que os reacionários fecharem os cinemas? Não, decididamente, é preciso acabar com os reacionários. Ora, quem não concorda com os costumes "hollywoodianos" é reacionário. Logo é preciso acabar com quem não gosta dos costumes "hollywoodianos". Não é simples o raciocínio? E com simplicidades destas, certa propaganda mundial monta uma verdadeira perseguição moral contra os que têm o topete de não concordar com ela... Como dissemos, tudo isto, para os tolos é daninho. Pois não são muitos os que têm coragem de dar uma boa gargalhada sadia diante do vozerio da propaganda mundial, e continuar a falar e a viver como bem entendem.

De nossa parte, não fazemos cerimônias. Embora nunca tenhamos ordenado uma carga de cavalaria contra velhos e mulheres, e não sintamos qualquer prurido de queimar criancinhas, temos reparos a fazer sobre a grande cerimônia que se desenrolou nos Estados Unidos. Seremos por isto taxados de reacionários? Pouco importa. Nem por isto a verdade deixará de ser verdade.

EVITANDO INTERPRETAÇÕES TENDENCIOSAS

Comecemos por analisar os aspectos religiosos da cerimônia da posse. Em muitos Estados, hoje em dia, se persegue aberta e cruelmente a Igreja Católica. Em outros domina um laicismo férreo, que exclui inteiramente a Religião de qualquer participação na vida publica, embora lhe conceda liberdade para existir como entidade privada num pé de igualdade com qualquer sociedade de filatelia ou de caça. Em contraste com isto, nos Estados Unidos aponta várias vezes um pensamento religioso, ao longo da cerimônia da posse. A nação americana não quer dizer-se, nem atéia, nem laica, e nisto merece louvor. Mais ainda. É confortador ver que, enquanto há algumas décadas a única Igreja verdadeira era no conjunto da União "quantité négligeable", hoje em dia desenvolveu-se tanto que as autoridades julgaram não a dever manter alheia à investidura do Supremo Magistrado da Nação. Daí o convite ao Arcebispo de Washington para participar da cerimônia.

Não possuímos noticiários suficientemente pormenorizados da posse de Eisenhower, para levar mais avante um comentário sobre matéria tão delicada. O fato de haver participado dela um Prelado de tão alta categoria quanto o Arcebispo de Washington é evidentemente de um grande peso para se considerar que as coisas se tenham passado convenientemente. O dever da imprensa, contudo, consiste em esclarecer a opinião pública. Encarando os fatos em seu conjunto, como foram noticiados, há certas reações que cumpre apontar e desautorizar.

Infelizmente, são numerosos em todos os ambientes, os idólatras da tolerância religiosa, que sonham com uma sociedade interconfessional, em que todos os cultos - o católico inclusive, bem entendido - conviveriam sem se atacar nem se excluir mutuamente, mas, pelo contrário colaborando para uma obra de cultura e de civilização comum a todos eles. Seria a cultura e a civilização dos tempos novos, alicerçada não nos dogmas e na moral desta ou daquela religião, mas exclusivamente nas crenças e nas normas de conduta que todas as religiões têm em comum. Esta cidade nova, baseada sobre o repúdio de toda a "discriminação racial ou religiosa", posta em face das diversidades de crenças se manteria indiferente a elas, considerando-as secundárias e até desprezíveis, para se colocar em plano muito superior, e encaminhar paulatinamente todos os espíritos a uma interpenetração fraternal de todas as religiões. Seria a civilização, a cultura interconfessional, preparando a humanidade interconfessional do mundo de amanhã.

De há muito, que a propaganda da maçonaria - e lembremos de passagem que a Bíblia do juramento da posse tem o triste e estranho nome de Bíblia maçônica - vem trabalhando no sentido de inculcar por todas as formas, aos povos do Ocidente como do Oriente, esta mentalidade. É o que explica entre nós o êxito da utopia maritaineana da cristandade interconfessional: os espíritos estavam prontos para a aceitar.

Precisamente por isto, muitos brasileiros, em todos os setores de opinião consideraram com simpatia os aspectos religiosos da posse de Eisenhower. Propensos a analisar os fatos do ângulo de seus preconceitos, viram nestes aspectos a afirmação do Estado, da cultura, da civilização interconfessional cujo advento desejam.

"UMA DEMOCRACIA, NEM CATÓLICA, NEM PROTESTANTE, NEM JUDAICA"

Como dissemos, abstemo-nos de uma apreciação dos fatos, que conhecemos de modo superficial. Mas julgamos a propósito transcrever aqui um trecho da Carta Apostólica "Notre Charge Apostolique" do Beato Pio X contra "Le Sillon", datada de 25 de Agosto de 1910. Este trecho mostrará quanto estes sonhos de uma humanidade interconfessional aberram do verdadeiro pensamento da Igreja:

"Mais estranhas ainda, ao mesmo tempo inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a ligeireza de espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecer sobre a terra, por cima da Igreja Católica, "o reino da justiça e do amor", com operários vindos de toda a parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contanto que se esqueçam do que os divide: suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: um "generoso idealismo" e forças morais adquiridas "onde possam". Quando se pensa em tudo o que foi necessário de forças, de ciência, de virtudes sobrenaturais para estabelecer a cidade cristã, e nos sofrimentos de milhões de mártires, e nas luzes dos Padres e dos Doutores da Igreja, e no devotamento de todos os heróis da caridade, e numa poderosa Hierarquia nascida no céu, e nas torrentes de graça divina, e tudo isto edificado, travado, compenetrado pela Vida e pelo Espírito de Jesus Cristo, a Sabedoria de Deus, o Verbo feito homem; quando se pensa, dizíamos, em tudo isto, fica-se atemorizado ao ver novos apóstolos se encarniçarem por fazer melhor, através da comunhão num vago idealismo e em virtudes cívicas. O que querem eles produzir? O que sairá desta colaboração? Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verá coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos utopistas. Sim, na realidade pode-se dizer que o "Sillon" escolta o socialismo, o olhar fixo numa quimera.

"Tememos que ainda haja pior. O resultado desta promiscuidade em trabalho, o beneficiário desta ação social cosmopolita só poderá ser uma democracia que não será nem católica, nem protestante nem judaica; uma religião ( porque o sillonismo, os chefes o afirmaram, é uma religião ) mais universal do que a Igreja Católica, reunindo todos os homens, tornados enfim irmãos e camaradas no "reino de Deus". "Não se trabalha para a Igreja, trabalha-se pela humanidade".

CEDENDO TERRENO À DEMAGOGIA

E passemos agora a outros aspectos.

Se em qualquer época o luxo insólito, extraordinário, deve ser censurado, a fortiori deve sê-lo em nossa época, de tanta miséria. Contudo, cumpre não chegar ao exagero. E exagero haveria se sob pretexto de economia se suprimisse não só o que é luxo extraordinário, mas também o que é distinção. Parece-nos que incidiram neste exagero o Presidente Eisenhower e o Presidente Truman, desistindo do uso da cartola. E mais sintomático talvez do que isso foi a abolição do traje de rigor na cerimônia. Os protestantes sempre pregaram uma simplificação absoluta do culto. A Igreja - mantendo-se embora nos justos limites convenientes a cada época - jamais participou desta orientação, ensinando que é necessário aos atos humanos mais graves, um razoável esplendor, para que sejam cercados da atmosfera de respeito necessária. A cartola e o traje de rigor não soa de um preço incompatível com a economia dos povos modernos. Usam-se em muitas circunstâncias secundarias, e até para corridas de cavalo. Quem poderá admitir que no país mais rico do mundo, num país em que o uso de smoking à noite é muito freqüente, seja uma economia cabível, a supressão do traje de rigor para a posse presidencial? Não, a razão é outra. É o desejo de capitular diante da onda de demagogia, de vulgarização, de nivelamento de todos os valores por baixo. Em si mesma, a cartola tem pouca importância. Mas como sinal de um estado de espírito, sua supressão importa muito. Registramo-la pois com pesar.

E quanto ao carnaval, será razoável que ele coexista com um ato de tanta gravidade quanto a investidura de um magistrado supremo? Um acontecimento desta natureza deve suscitar nos espíritos idéias sérias, disposições nobres e elevadas. Um desfile militar, uma cerimônia religiosa, são atos perfeitamente congruentes com uma posse de chefe de Estado. Não se poderia dizer o mesmo de um carnaval. Quem imaginaria uma festa carnavalesca para logo depois do casamento? Quem imaginaria um baile carnavalesco como desfecho natural da cerimônia de entrega do prêmio Nobel da paz? Quem não compreende que há nisto algo de alarmante, uma desordem de nervos, de imaginação, de sensibilidade, que não pode deixar de produzir no domínio dos fatos concretos os efeitos mais desatinados?

Se pelo menos as duas cerimônias, a oficial e a carnavalesca, fossem claramente separadas! Mas não. A presença das tropas, algumas marchando até em uniforme de gala, dá ao desfile um ar oficial, de garbo militar, de grandeza marcial, que destoa aberrantemente das girls pulando seminuas nos carros, numa exibição de corpos própria a "night-clubs". Nisto há qualquer coisa de contraditório, de intrinsecamente desordenado, que só não verá quem não quiser. E que a onda do carnaval tenha chegado até a tribuna presidencial, expondo a figura respeitável do Supremo Magistrado a servir de alvo para as proezas de um cow-boy é coisa ainda mais incompreensível.

Incompreensível, segundo as leis da lógica. Mas congruente com o verdadeiro tufão de extravagância, de imoralidade, de folia que varre o mundo contemporâneo. No prelo do desfile carnavalesco, nos Estados Unidos, havia o canhão atômico. O pormenor faz pensar. Um grande carnaval, a ser terminado com uma explosão atômica... os historiadores de daqui a duzentos anos não verão nisto um dos símbolos mais típicos de nossos dias?

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Fizemos estes comentários, com o desejo de elucidar muitos espíritos que o aplauso geral das cerimônias da posse terá desnorteado. Supérfluo será dizer que ao terminar nossas notas só temos que pedir a Deus por que o quatriênio que nos Estados Unidos se inaugurou seja realmente fecundo para a defesa do mundo contra o comunismo.