Catolicismo Nº 42 - Junho de 1954

 

MAIS UM FLORÃO DE GLÓRIA NO PONTIFICADO DE PIO XII

 

 

O Santo Padre Pio XII, cujo pontificado vem sendo assinalado por fatos tão memoráveis, passará para a História com o título vinculado ao mais augusto dentre eles. Se Pio IX é o Papa da Imaculada Conceição, Pio XII será conhecido até a mais longínqua posteridade como o Papa da Assunção.

Por certo, a maior alegria de sua vida terá sido a definição deste grande dogma marial. Entretanto, a Providência, que não lhe poupou terríveis provações, concedeu-lhe também mais de uma intensa consolação. E uma delas foi sem dúvida a possibilidade que se lhe deparou, de elevar à glória dos Santos o seu imortal antecessor Pio X, Pontífice boníssimo que o atual Papa conheceu pessoalmente, e cuja virtude pôde admirar de perto. Há 242 anos, que a Igreja não tinha a ventura de canonizar um Papa. Esta hora de luz e de glória estava reservada para o Santo Padre Pio XII.

Vibrando em uníssono com o coração do Sumo Pontífice, todos os fiéis sentiram intensamente esta alegria. Mas nossa união com o Vigário de Jesus Cristo deve ir mais fundo. Cumpre que imitemos o grande Papa que ele acaba de apontar como exemplo à Igreja Universal.

Neste mês, quando, por ocasião da festa de S. Pedro, os olhares do mundo inteiro se voltarem amorosamente para o vulto venerando de Pio XII, que fascina as massas sofredoras de nossos dias, lembremo-nos de que o melhor meio de lhe causarmos alegria consiste em conformar nossa mente e nossos atos com os admiráveis documentos de seu magistério e com o grande exemplo de Pio X, que ele acendeu agora providencialmente como uma luz no firmamento da Igreja.

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Quando a Igreja eleva um de seus filhos à honra dos altares, tem em mente indicá-lo ao povo cristão como intercessor junto ao trono de Deus, e apontá-lo como exemplo aos fiéis que militam neste vale de lágrimas. A canonização de S. Pio X no dia 29 de maio, festejada por todo o universo, tem para esta folha, seus colaboradores e seus leitores, um significado muito particular, quer do ponto de vista da mediação, quer do exemplo. É o que pretendemos evidenciar.

Todos os que se aproximaram de S. Pio X foram desde logo atraídos e subjugados por sua personalidade.

Dotado de uma bela aparência, de maneiras afáveis e acolhimento encantador, servido por uma inteligência robusta, penetrante, ágil, o Pontífice podia ser tido como pessoa bastante prendada do ponto de vista natural. Entretanto, estes dotes, embora reais, não eram tão relevantes que fizessem dele um grande homem no sentido próprio do termo, e não teriam bastado só por si, para explicar o ascendente extraordinário que exerceu sobre as pessoas de todas as categorias - Reis, Príncipes, estadistas, literatos, artistas - com que tratou, bem como sobre as multidões de todas as procedências que o veneraram em vida e depois de morto.

Pio X governou a Igreja num período brilhante para a História do Ocidente. Foi talvez o apogeu da Europa. Na direção da vida política e social do continente encontrava-se uma elite imponente constituída por uma mescla curiosa, colorida, incomensuravelmente rica de valores humanos. Compunha-se ela de uma aristocracia que herdara todas as tradições de tato, finura e gosto do séc. XVIII; de uma "bigarrure" de intelectuais de todo gênero, cientistas, literatos, jornalistas, artistas que dirigiam a vida do pensamento do orbe; de expoentes da indústria, do comércio e dos bancos que manipulavam todas as riquezas da terra; de militares que dirigiam os exércitos mais poderosos e municiados que até então se tinham conhecido. Ora, esta elite estava habituada, havia perto de trinta anos, a ver brilhar nas culminâncias do Vaticano a glória de Leão XIII, este sim um grande homem no plano natural, pois aliava a uma inteligência fulgurante uma educação aristocrática, uma cultura excepcional, e uma atividade impressionante. Assim, é fácil compreender que Pio X não tinha em si os dotes suficientes para ombrear com seu ilustre antecessor, e ainda menos para superá-lo.

Quanto às multidões, estavam trabalhadas a fundo pelo cepticismo e pelo livre pensamento, e não eram propensas a admirar incondicionalmente qualquer novo Pontífice.

Explorando esta situação, a imprensa anticlerical e a própria imprensa "neutra" abriram contra Pio X, nos primeiros anos de seu reinado, uma campanha infernal, em que, para acentuar a desproporção entre o novo Papa e seu antecessor, chegaram até à calunia, apresentando àquele como um ignorante, de inteligência apoucada, etc..

Entretanto, o vozerio dos opositores foi aos poucos perdendo seu vigor, ao passo que a veneração por Pio X se ia tornando universal. Quando, em 1914, ele cerrou os olhos, o mundo inteiro chorou de dor. Não estava ele ainda sepultado, e já de milhares de peitos subiam preces ao Céu, por sua canonização. E o Céu atendeu estas suplicas quando o Santo Padre Pio XII o elevou há poucos dias, à glória dos Santos.

Que dom tinha aquele homem de Deus, para de tal maneira atrair os corações? A santidade, dir-se-á. Sim. Mas a resposta é um pouco genérica. O Santo não é necessariamente estimado por seus coevos. A história de S. Pio V - o último Papa canonizado antes de S. Pio X - é disto uma prova. Deus concedeu a S. Pio X uma graça particular, dispondo que todos os que se acercassem de sua pessoa sentissem desde o primeiro instante sua piedade angélica, sua profunda bondade. E foi isto que lhe deu sobre os seus contemporâneos o imenso ascendente que até hoje se conserva tão vivo. Todos os que se acercavam de Pio X tinham a impressão de sair mais próximos de Deus, aliviados em suas dores, consolados em suas aflições. Podia-se dizer que "dele saia uma virtude que a todos curava".

Ora, na vida deste Papa que parecia só ter entranhas de bondade e suavidade, um fato terrível ocorreu. Foi a crise modernista.

Uma seita de há muito se instalara na Igreja como um câncer sub-reptício. Seu objetivo era propagar o panteísmo materialista e evolucionista, o socialismo, a abolição do celibato eclesiástico, a inteira conformação do Catolicismo com os gostos e as idéias paganizantes do tempo.

Seus membros, entretanto, não queriam sair da Igreja, pois consideravam com razão que, separados do tronco venerável da Religião Católica, todas as portas se cerrariam diante deles. Por isto, preferiram agir à socapa.

Ocupando lugares de influência no laicato e no Clero, propagavam suas idéias pelos próprios órgãos que formam a opinião católica: púlpito, confessionário, cátedras de seminários, universidades e colégios, imprensa, etc.. Bem entendido, essa difusão doutrinária não era explícita. Mestres incomparáveis no emprego das meias luzes, das meias tintas, das meias verdades, os modernistas sabiam criar um ambiente de liberalismo, de ceticismo, de igualitarismo que por si só já produzia a inoculação de boa parte de seus erros. Essa ação era completada pelas reuniões e conciliábulos dos modernistas nas associações que dominavam. Com efeito, nesses ambientes sabiam eles tornar mais transparentes seus erros, sem incorrer na censura eclesiástica, pois "verba volant". E por fim em suas conversações particulares levavam ao último grau de eficácia sua ação, descerrando todos os véus de sua linguagem dolosa, diante dos pequenos grupos de iniciados, no segredo de conventículos mais íntimos.

Esta conjuração era imensamente poderosa. Seus tentáculos abrangiam todo, ou quase todo o orbe católico. Seus prosélitos, pessoas muitas vezes recomendáveis por sua aparente piedade, eram ativíssimos e influentes. E o prejuízo para as almas era imenso, pois sem número eram os incautos que se deixavam arrastar.

Esse, em linhas gerais, o problema, que entretanto abrangia em seus refolhos aspectos ainda mais complexos e difíceis.

Ora, a solução deste problema incumbia em grau superior ao Papa. Pois é ele o Pastor das ovelhas, e o Pastor dos Pastores. Se ele cruzasse os braços, deixaria devorar pelo lobo as ovelhas que Jesus Cristo lhe confiara. Como pode ser bom quem se conserve indiferente ante o espetáculo do lobo que sacrifica ovelhas inocentes e indefesas? Cumpria pois ao Papa agir.

Contra quem? Contra o lobo, evidentemente. Mas - e aí está o cerne do problema - aqueles lobos... eram, eles também, ovelhas!

Com efeito, se para um Papa todo homem é de certo modo uma ovelha, um fiel, e máxime um Sacerdote o são em todo o sentido da palavra. Não se tratava de defender uma ovelha contra uma fera, mas uma ovelha fiel contra outra ovelha transviada e feita fera. Ora, o Papa, Pastor de todas as ovelhas, não poderia ser indiferente à salvação... da "fera" .

Se para salvar uma, golpeasse outra, perderia provavelmente a essa outra. Um homem sem entranhas, iracundo, apaixonado, poderia considerar com displicência esta perspectiva. Nunca um católico verdadeiramente bom.

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Para escapar às desagradáveis alternativas que este estudo vai desvendando, seríamos tentados a dizer: convertam-se as feras em ovelhas, e estará tudo resolvido. Solução ideal, sem dúvida, e preferível a qualquer outra. Solução entretanto muitas e muitas vezes impraticável. Pois se é verdade que a História registra exemplos insignes de pecadores que se convertem - e pensamos neste instante em Saulo feito Paulo - também é verdade que muitos não se convertem por maior que seja a santidade do apóstolo que a Providência lhes envia. E pensamos igualmente neste momento, não só em Judas, refratário ao ósculo supremo do Mestre, mas ainda em Pilatos, Anaz, Caifaz e todos aqueles de quem S. João escreveu: "a luz brilhou nas trevas, e as trevas não a compreenderam".

Neste caso, ainda uma vez, como agir?

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Problema duro, problema gravíssimo. A maior parte dos homens foge de o ver claramente. Prefere iludir-se sobre a irredutibilidade do lobo. Prefere iludir-se sobre sua nocividade. Prefere iludir-se sobre a fragilidade das ovelhas. E por isto terá de dar terríveis contas a Deus.

Pio X não se iludiu. Sua bondade não se confundia com um humanitarismo sentimental e mole, nem com um filantropismo naturalista e liberal. Antes de tudo, levava-o a amar a Deus e a Sua Igreja, cuja glória era ultrajada pela perfídia e malícia dos modernistas. Em segundo lugar, levava-o a amar aos bons, e só em terceiro lugar aos maus.

Verificada a impossibilidade de resolver o problema convertendo os maus, S. Pio X os golpeou sem mercê. Foi a memorável Encíclica "Pascendi", luminosa e terrível como o relâmpago: foram as excomunhões, foram as inclusões de numerosas obras no Index, foram as medidas disciplinares.

Caíram assim dessas mãos de Santo, feitas para abençoar, as punições mais terríveis... mas na Igreja se fez uma grande paz e o sol da Verdade continuou a brilhar sobre as almas. A hidra do modernismo estava ferida em sua cabeça e estavam salvas da perdição milhares de ovelhas de Jesus Cristo.

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Que Pio X tenha sofrido ao agir assim, é óbvio. Que tenha vacilado, não o cremos. Pois é próprio de uma caridade bem ordenada não se perturbar com problemas destes.

Quem em nossos dias vê ou pelo menos vislumbra problemas análogos; quem sente em si a tentação de fechar os olhos, cruzar os braços e recuar; quem abriu os olhos mas tem medo de levar sua fidelidade aos documentos pontifícios até as ultimas conseqüências; quem sofre da incompreensão dos próprios irmãos; quem de outro lado receia deixar-se levar longe demais no ardor da luta e quer ter sempre um zelo sobrenatural, tenha em S. Pio X um modelo, e reconheça nele um intercessor. Pois foi para isto que a Providência pela mão augusta de Pio XII reservou nossos dias a fim de lhe ser dada a suprema glória dos Santos.