Catolicismo Nº 113 - Maio de 1960

 

Revolução e Contra-Revolução em 30 dias

"A Rússia espalhará seus erros pelo mundo"

Plinio Corrêa de Oliveira

Embora não tenham faltado nos últimos trinta dias acontecimentos importantes – entre muitos outros, o noivado desigual a Princesa Margaret com um jovem cujos pais são casados, divorciados e "recasados" mais de uma vez – do ponto de vista da Revolução e Contra-Revolução o fato mais relevante foi, sem dúvida, a visita de Nikita Kruchev à França.

Catedral de Reims - Catolicismo Nº 113

Interior da Catedral de Reims. Qual teria sido a reação de Santa Joana d’Arc se, no decurso da coroação de Carlos VII, um Anjo lhe tivesse feito antever a entrada do anticristo vermelho no templo em que eram ungidos os reis de França?

Esta visita constitui um elo entre a anterior, que Kruchev fez aos Estados Unidos, e a que o Presidente Eisenhower fará a Moscou.

Os Estados Unidos são preponderantemente protestantes. A França foi o cenário da Revolução de 1789. Dir-se-ia que a terceira Revolução, que é a comunista, visita e oscula assim suas duas ancestrais: a primeira Revolução, que foi o Protestantismo, e a segunda, que foi a Revolução Francesa. Visita e ósculo parecem ter neste caso um matiz particular, algo de parecido com uma cobrança. Em nome da coerência com os princípios fundamentais que as duas primeiras traziam em seu bojo, a terceira Revolução em exigir, de uma e outra, simpatia, apoio, cooperação.

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Se a viagem do ditador bolchevista aos Estados Unidos foi muito importante por sua repercussão em todos os povos anglo-saxões, e pela influência daquele país sobre toda a humanidade hodierna, sua visita à França tem um alcance ainda maior.

De um lado, a França conserva, no mundo inteiro, uma irradiação cultural que seria tolo subestimar. De outro lado, filha primogênita da Igreja, elemento de primeira ordem no imenso bloco das nações católicas e latinas, o que nela se passa tem uma ressonância particularmente viva em todos os povos que lhe são afins pela Religião e pela raça. Estes povos são os mais naturalmente anticomunistas e interessa em alto grau a Kruchev seduzi-los. Por fim, a importância política e militar da França foi recentemente realçada pela deflagração de suas bombas atômicas no Saara. Assim, os dois pontos de mira da ofensiva de paz de Nikita Kruchev foram cuidadosamente escolhidos: católicos e protestantes, latinos e anglo-saxões, nisto se contém todo o mundo cristão de raça branca. E, enquanto esta ofensiva assim se desenvolve, a China comunista vai lenta e sub-repticiamente minando o Islã e os povos da África. A terra toda se acha, pois, envolvida pelos tentáculos do monstro bicéfalo do comunismo.

Se a humanidade não atendesse ao apelo de Fátima, "a Rússia espalharia seus erros pelo mundo", disse Nossa Senhora em sua terceira aparição na Cova da Iria. É o que está sucedendo. O apelo não foi atendido integralmente. E, pela terra inteira, os erros do comunismo estão sendo espalhados em grande escala.

É nesta perspectiva que analisaremos a viagem do senhor do Kremlin à França.

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Em tal viagem devem notar-se dois aspectos bem distintos. De um lado, as conversações diplomáticas entre Kruchev e o General de Gaulle, feitas principalmente em Rambouillet. De outro, o efeito propagandístico da visita, sobre a França e sobre o mundo.

Até o momento em que escrevemos, pouco ou nada se pode afirmar quanto aos frutos diplomáticos da viagem. Tem-se uma vaga e vacilante impressão, pela leitura do comunicado final, de que os resultados neste plano foram medíocres. Nem de Gaulle se afastará da linha geral da política francesa de pós-guerra, nem Kruchev conseguirá algo de sólido para a consecução de seu objetivo diplomático essencial, que é a debilitação dos vínculos que unem a França à Alemanha de Adenauer e ao Ocidente. É possível, isto sim, que o General de Gaulle explore a visita do líder soviético como meio para melhorar a posição da França no conjunto das nações ocidentais. Mas, de que valem todas estas nossas considerações, que não passam de conjeturas indecisas e instáveis, à vista da probabilidade de ter havido um acordo secreto entre os dois chefes de Estado, de alcance indefinido, e capaz de proporcionar à Rússia vantagens que só num futuro próximo ou remoto poderão ser bem conhecidas e avaliadas?

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De qualquer forma, um aumento de influência de um grande país católico e latino, como a França, no Ocidente, só pode ser um bem. Mas é preciso reconhecer que, por este bem, de Gaulle pagou um preço excessivo, permitindo que a pátria de S. Luís e de Santa Joana d’Arc, de S. Luís Maria Grignion de Montfort e dos heróis da "chouannerie" oferecesse um palco ao histrião mais descomposto, ao fautor de heresia mais pernicioso de nossos dias. E que palco! O melhor, o mais brilhante, aquele por onde têm passado quase todas as figuras ilustres do mundo civilizado, isto é, Paris. E depois, como acréscimo, foi dado a esse homem percorrer em viagem de propaganda o interior, no qual, ao contrário do que acontece na capital, se encontram as melhores reservas morais do povo francês.

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Procedendo por esta forma, ou seja, consentindo que se debilite a resistência da opinião anticomunista do Ocidente, a fim de obter vantagens para seu país, o Presidente Charles de Gaulle faz como um passageiro que, com o intuito de melhorar sua situação a bordo, consentisse que o adversário abrisse um orifício ( um verdadeiro rombo, talvez melhor se dissesse ) no casco do navio.

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De outro ponto de vista, a ação do chefe de Estado francês poderia ser comparada à de um governo que, para obter certas vantagens diplomáticas, aceitasse a visita de um político estrangeiro, sabendo embora de antemão que este iria disseminar por toda parte cápsulas contendo bacilos de cólera ou de peste. Pois outra coisa não é para as almas a propaganda comunista.

Como por ocasião da visita que fez ao Presidente Eisenhower, ou da que lhe fez o Presidente Gronchi, o tirano russo timbrou em fazer demagogia, exibindo aquele misto de vulgaridade, jocosidade, destreza, afabilidade e, paradoxalmente, também de insolência, que é próprio a seduzir a parte deteriorada e bolchevizável ( não pequena, em todas as classes, infelizmente! ) da opinião contemporânea. Exemplifiquemos.

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Logo ao descer do avião em Paris, Kruchev discursou, manifestando o desejo de boas relações econômicas com a França. A miragem de fazer bons negócios seduz e apaixona hoje em dia milhões de homens naquele país, como no mundo todo. Assim, o visitante foi escutado por muitos ouvidos bem predispostos. Mas ao mesmo tempo ele pediu intercâmbio cultural. O que quer dizer isto? O direito de mandar propagandistas de toda ordem à França, sábios, dançarinos, ou até ursos ensinados como este que está no Brasil.

Dar-vos-ei dinheiro. Deixai-me devastar as almas: é o sentido dessa proposta astuta...

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Todos notaram, quando Kruchev desceu do avião que o levava aos Estados Unidos, seu desembaraço: era um modo de agradar uma nação que aprecia acima de tudo, em matéria de maneiras, o "degagé" e a espontaneidade. Ao chegar à China glacial e reservada, poucas semanas depois ele se mostrou fechado e frio. Em Paris, desceu tímido: modo discreto de homenagear a elevação do ambiente francês, e de contrastar com a desenvoltura levemente desdenhosa dos turistas norte-americanos, que tanto choca na França. Demagogia...

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Em várias ocasiões, durante a visita, Kruchev atacou rudemente a Alemanha Ocidental. Esta atitude, do ponto de vista da diplomacia, é simplesmente insolente e selvagem. Quando um chefe de Estado visita outra nação, não tem o direito de aproveitar a oportunidade para empreender uma campanha de difamação contra os aliados ou vizinhos desta. Menos ainda tem ele o direito de interromper um discurso pronunciado em sua presença por uma alta autoridade local para protestar grosseiramente contra o fato de essa autoridade não falar tão abertamente mal do vizinho quanto o visitante desejaria. Foi, entretanto, o que Kruchev fez.

Essa invasão de hábitos bárbaros na diplomacia é um perigo para a civilização e a paz.

Mas assim costuma proceder o czar soviético em sua "política de paz". Haja vista a insolência incrível com que tratou em Moscou o Presidente Gronchi. Por várias razões óbvias e uma não óbvia ele age desse modo. A não óbvia, pelo menos para alguns, é que quanto mais os costumes se rebaixam e degradam, tanto mais se prepara o mundo a ser bolchevizado.

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Outro exemplo dessa degradação sistemática.

Está na ordem natural das coisas que, quando se recebe um hóspede, se lhe dê o que há de melhor na casa.

Em conseqüência, os cardápios dos banquetes aos chefes de Estado visitantes sempre foram magníficos. O protocolo soviético aboliu isto, e salvas as ocasiões em que foi impossível evitá-lo, o "menu" e a lista de vinhos foram muito comuns.

Por que? Para acafajestar, nivelar, vulgarizar. É a civilização que vai morrendo em seus requintes, e a vulgaridade que vai subindo. Em suma, é o comunismo que vai impondo seus estilos e conquistando a humanidade.

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Vem agora um exemplo de cinismo.

O chanceler alemão von Brentano fez recentemente uma objeção decisiva à política soviética: enquanto às mínimas tribos da África se atribui o direito de escolher por plebiscito seus destinos, parte da Alemanha, a Polônia, a Tcheco-Eslováquia e a Hungria estão privadas de tal. E sobre elas pesa o jugo bolchevista em toda sua brutalidade.

Apesar disto, na França K. ousou falar em liberdade dos povos, em independência das massas, etc. A contradição é a mais flagrante possível. Aos espíritos retos ela causa horror. Mas para as camadas pré-bolchevizadas ou bolchevizadas esse cinismo fascina. Como sempre fascinaram os demagogos quando, para demonstrar seu poder, calcaram aos pés desabridamente todas as leis da decência e da compostura.

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O sangue dos húngaros martirizados não deixou, porém de fazer ouvir seu clamor na França. A vergonha do ditador vermelho é tão flagrante a todos os olhos, que bastava ser desfraldada uma bandeira húngara para que isto fosse tido como um ultraje a ele.

Assim, numa casa fronteiriça ao Quai d’Orsay, foi preciso fazer retirar o pavilhão da Hungria que o morador respectivo ali hasteara. E é compreensível. Nada poderia incomodar mais a Caim, do que a visão de algo que lhe lembrasse Abel.

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Quando, passada a "procella tenebrarum" ( Jud. 13 ) em que estamos, se fizer a história de nossos dias, há de ser reconhecido como uma glória do povo alemão o fato de que, esmagado pela derrota a que o arrastaram os facínoras nazistas, humilhado e dividido em conseqüência dessa derrota, reduzido pois a um mero fragmento de sua grandeza antiga, teve à sua frente um homem que, como Adenauer ( o qual tem, aliás, defeitos não pequenos ), reivindicou a árdua tarefa de empunhar o gládio de Deus contra o anticristo soviético.

Kruchev caçoou dele por isto, e o difamou quanto pôde, é certo.

Por detrás dos sarcasmos e das injúrias transparecia muito visivelmente outro sentimento: o medo.

Há algo de mais glorioso do que um ferido de guerra a meter medo, com o único braço que de momento lhe resta válido, a um gigante que por sua vez faz tremer toda a terra?

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Se isto será para a Alemanha uma glória, será para todo o sempre uma tristeza para nós, católicos, a atitude do Cônego Kirr, deputado e prefeito de Dijon, que se dispunha, nessa qualidade, a receber Nikita Kruchev e a apertar com sua mão sacerdotal a mão do tirano tinta com o sangue dos mártires da Igreja do Silêncio..

Que o Cônego Kirr tenha declarado haver chorado quando leu as referências que o Sr. Kruchev lhe fez em seus discursos em Dijon, nos enche de consternação. E uma pergunta nos vem aos lábios: chora ele quando lê descrições das atrocidades levadas a cabo pelos asseclas do ditador? Chorou ao saber que em Siracusa Nossa Senhora derramava lágrimas pelos pecados deste mundo ( 1 ), dos quais por certo um dos mais graves é a indiferença de tantos filhos da luz em relação aos progressos das trevas?

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Em compensação, os Anjos se alegraram no mais alto dos Céus quando o Exmo. Revmo. Sr. Bispo de Dijon proibiu o Cônego Kirr de receber o visitante bolchevista.

Teria o Prelado andado mal? Um leigo católico, pessoa conspícua da cidade, entendeu que sim. E publicou na imprensa um protesto, no qual lembrava que Nosso Senhor recomendou o perdão das injúrias e deseja que a pessoa esbofeteada em uma face ofereça a outra.

Como se não tivesse havido pecadores a quem o Divino Mestre increpou de frente seus pecados, e até fustigou!

Haveria então uma contradição entre os conselhos e os atos do Salvador? Não. Nunca. Mas pecadores há, que não se comovem com o perdão. Para a glória de Deus, para o bem deles e de todos, cumpre enfrentá-los.

E Kruchev é um destes.

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Se fosse necessário prová-lo, o próprio tirano o teria feito. Pois, pouco depois deste fato, em conversa com os jornalistas, fez o elogio de Nosso Senhor Jesus Cristo ( que honra para o Homem-Deus... ) e acrescentou que, entretanto, não aceitava a máxima de voltar o rosto para outra bofetada, o que lhe parecia desarrazoado.

Como então esperar que a mansidão o comova? E o que fazer então? Deixar-lhe livre campo para praticar todo o mal que deseje?

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Não acreditamos, porém, que isto impressione o expansivo líder esquerdista católico a que aludimos. Há algo mais difícil do que reconduzir à razão quem, como o católico de esquerda, vive na e da contradição?

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Dizem os telegramas que o Exmo. Revmo. Sr. Bispo de Dijon publicou uma declaração de que agira sob ordens da Santa Sé.

Se disseram a verdade esses despachos – e provavelmente S. Excia. terá pelo menos auscultado Roma antes de tomar atitude tão importante, e terá recebido o conselho de agir com energia – há nisto mais um título de glória para o pontificado curto mas já imortal do Santo Padre João XXIII, este Papa que é um dom de Deus para a terra.

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Estas considerações nos levam a comentar o episódio culminante da visita de Kruchev à França, episódio este que está todo ele na linha do reinado de Sua Santidade o Papa João XXIII. A velha Catedral de Reims, na qual Santa Joana d’Arc promoveu, por missão divina, a coroação do Rei Carlos VII, foi visitada pelo representante máximo de um regime a um tempo regicida e ateu.

Mas antes disto, num protesto simbólico, sublime em sua singeleza e em sua significação, o Clero da igreja histórica havia apagado as luzes e retirado para a cripta o SS. Sacramento. A visita, feita em densa penumbra, durou dez minutos...

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Há tanta força, tanta beleza neste episódio, que não podemos deixar de assinalá-lo comovidos.


( 1 ) Cf. “Há cinco anos em Siracusa...”, Giocondo Mário Vita, CATOLICISMO, Nº 92, de agosto de 1958.