Plinio Corrêa de Oliveira

 

Projeto de Constituição angustia o País

 

1987

Capítulo IV – O Substitutivo Cabral abre perigosamente as portas para a Reforma Urbana

1. Um dispositivo que permite fulminar com a desapropriação o patrimônio de todos os particulares

Já foi comentado, no Capítulo II, tópico 3, o que dispõe o Substitutivo Cabral 2 no caput de seu art. 200: “O direito de propriedade, que tem função social, é reconhecido e assegurado, salvo nos casos de desapropriação pelo Poder Público”.

Como se viu, esse dispositivo, tomado ao pé da letra, permite que o Poder Público elimine pura e simplesmente o direito de propriedade, pois este último não é reconhecido nem assegurado “nos casos de desapropriação pelo Poder Público”.

2. É o Estado quem julgará se a propriedade cumpre sua função social

Prossegue o art. 200: “§ 1º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade, expressa em plano urbanístico, aprovado por lei municipal, obrigatório para os municípios com mais de cinqüenta mil habitantes”.

Objetará algum leitor que esse poder expropriatório do Estado não é ilimitado. Pois ele só deve ser exercido a bem da função social da propriedade, nos casos em que com isto lucre o bem comum. É o que se nota em mais de um dispositivo do Substitutivo Cabral 2. E, por exemplo, neste parágrafo, o qual diz respeito tão-só à propriedade imobiliária urbana, mas se funda em um princípio obviamente extensivo ao direito de propriedade incidente sobre bens de outra natureza.

A objeção faz sorrir por sua candura. Pois ela abstrai do fato de que é ao mesmo Estado que cumpre decidir se determinada expropriação é conforme ao bem comum, e implica em exercício da função social da propriedade. De onde decorre que, globalmente considerados, os detentores do Poder Público são o alfa e o ômega de toda a ordem jurídica. E isto com tanta radicalidade que, precisamente no caso de desapropriações para fins de Reforma Agrária (art. 212, § 2º), o Substitutivo retira a apreciação da efetiva utilidade do ato expropriatório, da alçada do Poder que detém maior grau de autonomia, isto é, o Judiciário.

3. Nada resguarda o proprietário urbano de uma avaliação de seu imóvel feita segundo critérios estatais cerebrinos

O art. 200, § 3º  do Substitutivo Cabral 2 estatui: “As desapropriações de imóveis urbanos serão pagas, previamente, em dinheiro, facultado ao Poder Público Municipal, mediante lei específica para área territorial incluída em plano urbanístico [1] aprovado pelo Poder Legislativo, exigir, nos termos da lei, do proprietário do solo urbano não-edificado, não-utilizado ou sub-utilizado que promova seu adequado aproveitamento sob pena, sucessivamente, de parcelamento ou edificação compulsórios, estabelecimento de imposto progressivo no tempo e desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública, de emissão previamente aprovada pelo Senado da República, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da indenização e os juros legais”.

Também as palavras iniciais deste parágrafo se afiguram tranqüilizantes e distensivas, se analisadas pelos próprios adversários da Reforma Urbana, em seguida a uma leitura de primeira vista.

De fato, entretanto, vai nisto uma ilusão.

Com efeito, o Substitutivo Cabral 2 nada diz, aqui ou alhures, que resguarde o proprietário urbano de uma avaliação de seu imóvel, não segundo o respectivo valor de mercado, mas segundo critérios estatais cerebrinos que conduzam à determinação de um valor irrisório, a ser pago “previamente em dinheiro” pelo poder expropriante a título de indenização.

O § 3º prevê, ainda, entre as penas reservadas ao proprietário que não dê a seu terreno “adequado aproveitamento”, a desapropriação “com pagamento mediante títulos da dívida pública”.

Do “imposto progressivo no tempo”, prescrito no mesmo § 3º, e que foi uma das medidas recomendadas por Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, de 1848, para a comunistização da sociedade (cfr. Henry Maksoud, “Visão”, São Paulo, 26-7-86), dispõe também o Substitutivo Cabral 2 em outro local:

Art. 178 – Compete aos Municípios instituir impostos sobre

“I – propriedade predial e territorial urbana; ...

§ 1º - O imposto de que trata o inciso I poderá ser progressivo, nos termos da lei Municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade”.

Este dispositivo do Substitutivo Cabral 2 agrava a situação que o Cabral 1 visava criar. Com efeito, rezava o art. 210, § 1º, deste último: “O imposto de que trata o item I será progressivo no tempo quando incidir sobre área urbana não edificada e não utilizada, de forma que se assegure o cumprimento da função social da propriedade”.

Assim, o imposto progressivo era aplicável, de acordo com o Cabral 1, tão-somente às áreas não edificadas e não utilizadas. Já por força do art. 178, I, § 1º do Cabral 2, o mesmo imposto é aplicável sobre todos os bens imóveis localizados no município, sejam eles edificados ou não.

Em que consiste a função social de imóveis já edificados? Antes de tudo, em dar abrigo a toda a população, em apropriados locais de residência ou de trabalho. De sorte que se, em um lugar, a certas populações falte uma ou outra coisa – residência ou trabalho – a solução consistirá em abrir aí espaço para os carentes: é o que resulta da função social da propriedade.

O beneficiário dessa situação, amparado pela “opção preferencial pelos pobres”, fica assim no direito de optar entre o quarto que se lhe dê em um confortável palacete, ou a moradia precária do desbravador residente para além da orla rural. O que quase eqüivale a premiar quem não queira desbravar: em aras da demagogia, pratica-se uma injustiça contra o proprietário urbano, e retarda-se a expansão agrícola do País.

* * *

O art. 200, do Substitutivo Cabral 2, sem o qual a Reforma Urbana seria inexeqüível, não se encontra na Constituição vigente nem no Projeto Cabral. Foi acrescentado nos Substitutivos Cabral 1 e 2.

4. Usucapião-relâmpago...

Outro ponto que merece um breve comentário é o que diz respeito ao usucapião urbano. Segundo o art. 201, “aquele que possuir como seu imóvel urbano com área até duzentos e cinqüenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e em oposição, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”.

O Substitutivo Cabral 2 não esclarece se o prazo para o início desse usucapião tão rápido que não está longe de merecer a qualificação de “usucapião-relâmpago”, conta da promulgação da Constituição, ou se conta retroativamente, a partir do momento no qual a posse tenha tido inicio. De sorte que se no dia em que a Constituição entrasse em vigor, tal “posse-relâmpago” completasse cinco anos, o possuidor já poderia requerer ao Juiz que o declarasse por sentença proprietário do imóvel.



[1] Este artigo deve ser conjugado com o inciso VIII do art. 36, que diz competir aos municípios “promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano”.


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