Conferência em Buenos Aires, 4 de novembro de 1964 (*)

 

Causas da debilidade do Ocidente face ao comunismo

 

...Mas me parece e que a justiça manda que um nome se pronuncie especialmente nessa ocasião, um nome que é símbolo de dignidade, de altaneria e de resistência, símbolo de coragem, símbolo de heroísmo sobrenatural, é o nome do Eminentíssimo Cardeal Mindszenty..... (aplausos) Do Eminentíssimo Cardeal Mindszenty do qual se diz tudo quando se diz que sobre ele há uma pergunta e uma resposta. Quando se vai – como eu tive a felicidade de fazer há alguns anos em Roma – às catacumbas, e se tem a sensação viva do heroísmo dos primeiros cristãos, pergunta-se se esse heroísmo está ainda vivo nos dias de hoje. E a resposta única é esta: o Cardeal Mindzenty! A resposta é completa. (aplausos)

Parece-me necessário, senhores, antes de iniciar a exposição de hoje, recordar rapidamente os últimos traços da exposição feita há alguns dias, que é das mudanças religiosas, das mudanças artísticas, culturais e políticas que se desenvolveram no Ocidente, e que esse grande movimento que começou com o Renascimento e com a pseudo Reforma protestante, que esse grande movimento era como uma caudal imensa que desaguava, por fim, no comunismo. E me cabia explicar melhor esse pensamento.

Eu disse de passagem, e o reafirmo, que é evidente que essa não é a única causa do comunismo, porque o comunismo teve várias causas. A derrocada da civilização feudal, a implantação do protestantismo, a Revolução Francesa, as causas remotas e próximas do comunismo no século XIX não se podem de nenhuma maneira reduzir a este fenômeno de alma de que eu falava. Porém há algo que exatamente demonstra a importância desse fenômeno de alma, é quando se aceita a idéia de que várias outras causas de muitíssimos outros aspectos colaboraram para empurrar a humanidade para o comunismo.

Se tantas causas empurraram a humanidade rumo ao comunismo, se tantas  circunstâncias que pressionaram os fatos para obrigar os homens, por assim dizer, para chegar até o comunismo, e se é verdade que o comunismo é a antítese da Civilização Cristã, a antítese do ideal cristão de vida, a antítese da Fé católica, então ficamos persuadidos que é necessário uma vontade de ferro, que é necessário uma perspicácia muito lúcida e muito penetrante para resistir ao comunismo. Porque precisamente os fatos solicitaram para ele; precisamente os acontecimentos políticos, econômicos, sociais, em certo número, prepararam as condições para o comunismo; e porque as solicitações eram grandes, porque os perigos eram diversos, então, precisamente por isso, teria sido necessário resistir, teria sido preciso evitar, seria preciso ter dado um outro rumo aos acontecimentos históricos.

E isso por quê?

Em última análise, porque o homem não é joguete dos acontecimentos,  sobretudo quando o homem é apoiado pela graça de Deus – que nunca falta – e sabe corresponder à graça de Deus, o homem não é joguete dos acontecimentos; ele é o centro e o rei da História. E os acontecimentos, de uma maneira ou de outra, acabam por obedecer a ele. E, sobretudo, obedecem a ele se é o homem verdadeiro, da verdadeira boa vontade de que fala o Evangelho, que quer, antes de tudo, o Reino de Deus e Sua justiça. O quer para o Céu e o quer para a Terra. Quando o homem tem esta vontade reta, esta vontade eficaz e verdadeira, não há acontecimentos que o possam impedir de realizar o plano de Deus sobre a Terra. Porque se lhe faltam as forças, Deus as tem. E Deus jamais abandona o homem que Lhe é fiel.

E, portanto se vê que, em última análise, não são as circunstâncias; em última análise, não são os fatos que dominam o homem, senão quando o homem se deixa dominar por eles. E que é a vontade humana, é a inteligência humana iluminadas pela fé e pela graça que decidem, em última análise, os acontecimentos históricos.

E é esta consideração de fundo que estava subjacente na conferência que fiz da última vez.

Parece-me que seria necessário continuar nessa ordem de idéias. E continuar da maneira seguinte.

Há dois princípios, em matéria de anticomunismo, que são evidentes e que não se pode esquecer. Eu falo a um auditório anticomunista, a um auditório que se põe a pergunta patriótica e cristã: “Como fazer para reagir contra o comunismo?” E então, nesse problema de metodologia anticomunista, a pergunta se põe.

Há dois métodos que são indispensáveis para reagir contra o comunismo: há que reagir no plano ideológico e há que reagir no plano da força inclusive, contra as organizações especificamente comunistas. E esse é o primeiro ponto.

É preciso também considerar não somente um anticomunismo negativo, mas uma ação positiva contra o comunismo. Essa ação positiva é o substituir as circunstâncias sociais das quais o comunismo tira proveito para sua propaganda. Então, é preciso ter olhos de economista, olhos de sociólogo, finura de homem de governo para compreender quais são os fatos, quais são as crises, quais são os problemas, quais são, inclusive, os abusos do regime capitalista, é preciso compreender tudo isso e saber eliminá-los para impedir que o comunismo tire proveito disso.

Esses são dados fundamentais, mas dados de tal maneira conhecidos, que não tomarei o tempo dos senhores para uma conferência sobre eles.

Parecia-me interessante acrescentar algo de complementar a esses dados fundamentais. Parece-me importante acrescentar algo que seria uma terceira coisa – que não deve eliminar as duas outras, nem, muito menos, substituí-las – porém que deve coexistir com elas, então de uma verdadeira e boa coexistência. É uma outra forma de combate ao comunismo que se deve somar às outras e sem a qual não me parece que nenhum combate contra o comunismo possa ser inteiramente eficaz. Sobre isso é que me explicarei nesta conferência.

Parece-me que quando se trata de atividades anticomunistas há algo de profundamente decepcionante. E é o seguinte: que se percebe que, muitíssimas vezes, a própria sociedade burguesa que, sob alguns aspectos, seria interessada em combater o comunismo, não o combate, senão que o favorece. Combate-o molemente, o combate com indecisão, o combate num estado de espírito tal que para certos círculos burgueses o anticomunista é algo raro e exagerado, como uma pessoa que vê perigos que não existem, ou perigos que existem tanto que é inútil reagir contra eles. Mas, em todo caso, uma pessoa que levanta um problema que não deve ser levantado. E há, portanto, uma prevenção contra o anticomunista, uma prevenção contra o anticomunismo. É uma prevenção que tem uma importância profunda porque se os círculos naturalmente interessados na luta contra o comunismo reagissem, se esses círculos pelo menos cumprissem seu dever, seria possível fazer um trabalho sério contra o comunismo. Mas se vê que esses círculos cruzam os braços e lhes é indiferente a luta. Que têm, talvez, no fundo – e disso nos ocuparemos em alguns minutos – uma simpatia pelo comunismo que os combate da pior maneira possível.

E esta situação tem seu reflexo sobre a atitude dos governos, tem seu reflexo sobre a atitude das universidades, seu reflexo sobre a atitude de toda a propaganda. Há uma forma mole de combater o comunismo; há uma forma de combater o comunismo por razões acidentais, por razões que não são razões profundas que, muitíssimas vezes, deixam entrever uma verdadeira colaboração com o comunismo.

E há as pessoas bem interessadas, bem intencionadas. A essas pessoas que deveriam, então, combater o comunismo, a essas pessoas que não seriam diretamente os elementos exponenciais da burguesia – são pessoas que se difundem um pouco por todas as classes sociais – a frieza da burguesia desabona o anticomunismo, desautoriza o anticomunismo. E com isso tudo o anticomunismo perde muitíssimos de seus melhores elementos.

Qual é a razão dessa atitude tão prejudicial? Essa atitude que também se vê em muitos círculos católicos até há alguns anos – e que é a atitude da parte de certos círculos, por exemplo, de esquerda da Democracia Cristã – é o corolário da timidez burguesa. Há uma timidez burguesa com relação ao comunismo e há uma timidez de esquerda demo-cristã igual contra o comunismo. Uma espécie de otimismo beato: “Vamos agradar os comunistas, que eles vão ficar muitíssimo adoçados, vão ficar contentes. É preciso lhes fazer sua vontade. Sim, sim. Eram perigosos no tempo em que não se havia descoberto que com um pouco de açúcar se podem domesticar. São leões que com um pouco de bombons se pode reduzir a gatos inofensivos, ou a cachorros inofensivos. Há a fórmula mágica do sorriso demo-cristão desprevenida e amável, que pode reduzir as águias a passarinhos inofensivos que começam a cantar”...

E nós não somos senão uns retrógrados, somos uns idiotas que não descobrimos ainda a magia do sorriso, não descobrimos ainda a magia da mão que se aperta e dos olhos que olham dentro dos olhos. E que não sabemos que é muitíssimo mais prático eliminar os problemas com um sorriso do que com todo o movimento colérico que argumenta, que gesticula, que fala de perigos etc., etc.

Eu, quando penso na psicologia demo-cristã, parece-me sempre que é algo de eterno - eu falo da esquerda demo-cristã para ser cerimonioso... -, há algo de eterno: é uma forma eterna e perene da debilidade humana. Parece-me que a primeira forma que se conhece, na cultura clássica, de democracia cristã é a daqueles troianos que pensavam que o cavalo de madeira podia entrar em Tróia sem nenhum prejuízo para a cidade. “Os gregos se tinham retirado... Simpáticos, tinham deixado uma lembrança da guerra. Façamo-lo entrar e durmamos tranqüilos. Façamos uma grande festa! Tudo se resolveu!”

“Nosso cavalo não é um Cavalo de Tróia. Nem sequer é um cavalo. É uma técnica que exerce o papel do cavalo. E é o sorriso troiano! O sorriso despreocupado. Nós pensamos que somos o cavalo de Tróia dos comunistas. Entrarmos com eles com esse sorriso, com nossa amabilidade, com nossa despretensão, e desarmá-los. Eles nos deixam entrar e, dessa vez, é o cavalo que vai ser devorado. E o cavalo seríamos nós.”

Parece-me, senhores, que para explicar essa estranha atitude de uma parte de elementos demo-cristãos e, de outra parte, de elementos capitalistas, é preciso ter em conta um fenômeno, que é um fenômeno muito evidente, que se vê todos os dias entre nós, mas que poucas pessoas analisam com cuidado.

O fenômeno é o seguinte: tudo em torno de nós se move todos os dias. Nós assistimos todos os dias a transformações e a mutações e essas transformações e mutações se passam em todo o corpo social. Se os senhores consideram, por exemplo, a família; se consideram a propriedade; se consideram a tradição; se consideram as leis, os senhores percebem que a todo momento há mudanças que se fazem nisso. Mas são mudanças pequenas. São mudanças que se operam pouco a pouco, e cada dia acontece uma pequena mudança. Então, como são mudanças pequenas, tem-se um certo mal estar face a essas mudanças, mas não se faz a análise delas, porque são pequenas. Mas uma coisa pequena que se repete todos os dias e que se agrava todos os dias pode ser muito grave, sobretudo se ela se prolonga por muitos anos. Então se tem uma imensa transformação.

Houve uma religiosa inglesa que era a sobrinha de Lorde Stanley Bowling, que fora, entre as duas Guerras Mundiais, Primeiro Ministro conservador da Inglaterra. Essa senhora ingressou em um convento na Itália – um convento estritamente contemplativo – e lá esteve durante mais de quinze anos. Depois, talvez por razões de saúde, foi obrigada a ausentar-se. E voltou à Inglaterra. Então escreveu suas memórias. E em suas memórias ela conta a surpresa que teve quando estando fora do mundo durante quinze anos, voltou. E como todas as coisas tinham mudado. A estrutura social, a maneira de vestir-se, o modo de falar, as regras de etiqueta e de delicadeza, as idéias, as tendências, a psicologia, enfim, dos homens tinha mudado. E ela dizia que em quinze anos uma Inglaterra havia sido substituída por outra Inglaterra.

Essa substituição ela notou porque esteve quinze anos fora. Mas se ela estivesse, como tantos outros, dentro da vida diária, não o teria percebido, ou teria percebido de um modo muito confuso, de modo muito indeciso. Esta transformação nós a conhecemos também na Argentina, no Brasil, nos outros países. Mas nós não nos damos conta porque não estivemos como ela quinze anos fora. Mas se nós refletíssemos sobre todas essas mudanças, compreenderíamos que algo na psicologia, na morfologia, na fisionomia da sociedade cristã – se se pode ainda falar de uma sociedade cristã – algo está se transformando pro-fun-da-men-te.

Qual é essa transformação? Olhemos, por exemplo, a família. Todas as transformações que se observam sobre a família são transformações que conduzem à destruição da família. Dia a dia, por exemplo, morre o sentido da finalidade da família. A finalidade da família é a perpetuação da espécie. A finalidade da família é a educação dos filhos. A finalidade da família é a felicidade dos cônjuges. Mas dia a dia, a noção do dever da perpetuação da espécie morre. E se constituiu, inclusive, uma espécie de pânico da explosão demográfica do mundo, que faz quase considerar a função procriadora da família como uma catástrofe, e como algo que se deve freiar de todas as maneiras.

Na vida doméstica cotidiana, todas as transformações de costumes se passam de uma maneira que a função de educação dos filhos fica cada vez menos considerada, é menos importante. E a própria influência dos pais, para educar os filhos decai. E com isso – perdendo seu sentido de finalidade – evidentemente a família perde o melhor de sua vitalidade. Porque tudo que perde o sentido do porquê, perde o sentido de sua causa, fica na impossibilidade de atuar e de conservar sua identidade consigo mesmo.

Observem os senhores o problema da coesão da família. A falta de finalidade repercute sobre a coesão. Há a todo o momento leis, propostas de leis, tentativas de destruir a coesão da família. Por exemplo, no Brasil se fala, no momento, de fazer uma reforma do Código Civil. Qual é o primeiro artigo de um dos projetos mais em evidência dessa reforma sobre a família? “Não há mais chefe na sociedade conjugal”. É afirmado o princípio de absoluta igualdade do esposo e da esposa no matrimônio, e por esse princípio de igualdade se estabelece uma divisão, porque todo corpo que se corta a cabeça, evidentemente perece. E então, se favorece, nesse projeto, de tal maneira a divisão que, excetuado se o noivo e a noiva declaram querer o regime de comunhão de bens, se presume como válida a separação de bens. Quer dizer, as leis impulsionam rumo à dissolução, à perda da coesão.

O pátrio poder diminui. Os filhos se tornam eleitores com 18 anos. E se um jovem com 18 anos pode eleger o Presidente da República, tem muita dificuldade para escutar as orientações de seus pais. Pois ele é um eleitor maior de idade e que pode decidir sobre todos os problemas da causa pública, que lhe restará de disciplina, que lhe restará de espírito de subordinação em relação a seus pais?

De outro lado, a convivência da família vai diminuindo. A televisão é a rua que entra pela casa de família. E um fenômeno dos mais dolorosos dessa diminuição de coesão da família é a situação dos idosos. Eu não sei como está essa situação aqui em Buenos Aires. No Brasil, houve tempo em que os idosos viviam na família e eram a honra da família e a alegria da família. Havia muitas vezes residências em que grande parte da família vinha continuamente para visitá-los. Eles eram cercados: um avô, uma avó tinham uma verdadeira pequena corte. Hoje em dia o velho é o peso da família.  Porque a família se considera, sobretudo, como um instrumento de produção. E como o velho e a criança são improdutivos, evita-se o nascimento da criança e se afasta o velho. E então há essas instituições para os velhos que são empurrados para o lado. Instituições que são depósitos de velhos – e há, inclusive, os depósitos de luxo – em que os velhos são depositados para lá viver, separados, sem dar nenhum trabalho a ninguém.

As famílias menos modernas – que podem pagar – têm damas de companhia para a velha. Dama de companhia que tem algo de carcerário. Eu conheço o caso concreto de uma velha senhora à qual sua filha foi visitar. É uma grande casa, luxuosa, em São Paulo. E encontrou a velha escondida por detrás de uma cortina, junto a uma janela. E então, a filha lhe pergunta: “Mamãe, que faz a senhora aqui?” – “Escondo-me da dama de companhia. Não me deixa tranqüila um só momento.”

Esta perda de consideração pela velhice, esta perda de respeito pela velhice é um fruto da perda completa de outro sentimento e de outra convicção que desapareceu completamente e que é também um fator social oposto ao comunismo, e é o espírito de tradição. Nenhuma pessoa mais tem o desejo de manter a tradição, de conservar a tradição. São pouquíssimas as pessoas que compreendem que a tradição é um elemento rector do futuro, que a tradição não é a fixidez. A tradição são todas as riquezas do passado em estado de continuidade e transformação ao mesmo tempo, para a gestação do futuro. Não o compreendem. Então, o que é o idoso? É um homem que conta fatos que não têm mais importância, que pensa em pessoas que desapareceram. É preciso tirá-lo do ambiente, porque leva a tradição. E cada vez mais, nessas modificações, a tradição vai perdendo sua importância.

De outro lado, a família vai perdendo também sua estabilidade. E os senhores sabem muito bem quanto se trabalha e quanto se conspira pelo divórcio.

Nos países católicos da América do Sul parece-me que se fala pouco do divórcio no momento. Mas a jurisprudência e as leis vão a todo o momento preparando indiretamente o divórcio. Por exemplo, no Brasil, em tese é proibido o divórcio. Mas em concreto, os brasileiros podem casar-se com uma pessoa estrangeira divorciada. É uma novidade da jurisprudência. E inclusive se começa agora a ter algo que ainda é pior que o divórcio e são as leis sociais que dão igual proteção à concubina do operário como se fosse a esposa do operário.

Lendo as leis de Inquilinato do Brasil, por exemplo, a estabilidade do locatário no lugar alugado se estende à esposa e se estende à concubina do locatário, igual como se fosse a mesma coisa. E há todo um protecionismo do concubinato que é um devorar sutil da instituição da família.

Eu pergunto aos senhores: se se somam todos esses fatores e se se considera essa marcha contínua que vem de tantíssimos anos e que não cessa nunca, eu lhes pergunto se não é verdade que há nisso um apetite profundo. Porque algo que não se detém nunca é algo que está à procura de um fundo de equilíbrio final que não o alcança. É como uma flecha  que voa e que não alcançou seu alvo. É como um pássaro que voa e que não alcançou sua árvore. Há algo que marcha para um fim em toda essa transformação. E qual pode ser esse fim se não é a eliminação da família? Pois se é uma força tal, se é um fermento tal que tudo destrói na família, se não se destrói esse fermento se verá eliminada a família.

E o que é, então, esse contínuo deperecimento da família senão subconscientemente – na maior parte dos casos; eu não ousaria dizer em todos – mas pelo menos subconscientemente na maior parte dos casos, uma apetência desapercebida – mas uma apetência verdadeira – para uma ordem de coisas em que não haja família.

Parece surpreendente, parece desconcertante, mas a verdade é exatamente esta. Porque não se pode compreender que milhões e milhões de homens se deixam arrastar por um processo transformativo, continuamente, e do modo mais desapercebido, e mais indolente, e mais mole, sem que haja algo que esteja num acordo profundo com esse processo. E é evidente que esse acordo realiza exatamente a profunda tendência de se desvincular dos laços de família e estabelecer uma outra ordem de coisas diferente.

Algo me parece que, muito análogo a esse, se poderia dizer da propriedade privada. O sentido da propriedade privada decai todos os dias. Há uma decadência da propriedade, inclusive na alma dos proprietários.

Há um princípio de biologia, que se verifica em muitíssimos casos, e que se pode enunciar da maneira seguinte: quando um ser vivo começa a perder a vida, ele começa por perder a sensibilidade nas extremidades. E por isso muitíssimos homens, quando começam a morrer, dizem que não sentem sensibilidade nos membros extremos.

O mesmo ocorre também no que se refere às instituições e às idéias. Quando uma idéia professada por um povo perde sensibilidade para suas conseqüências extremas, quer dizer, quando se começa a poder negar as últimas conseqüências de um princípio sem que ninguém reaja, é que esse princípio está morrendo na mentalidade das pessoas que ainda sustentam esse princípio. E é o que se pode dizer da propriedade.

Os senhores vêem a todo o momento a propriedade privada que é diminuída e é comprimida. Projetos de reforma urbana ou de locações em que o locatário fica como um co-proprietário. Projeto de reforma agrária em que o camponês fica um co-proprietário. Projeto de reforma industrial, de reforma empresarial, comercial, em que os operários ficam também co-proprietários.

Eu estaria muitíssimo longe de ser contra uma forma de co-propriedade na empresa. Mas me parece que essa forma de co-propriedade não pode ser obrigatória e, sobretudo, não pode ser apresentada como um princípio de justiça. Apresentar a co-propriedade como um princípio de justiça é negar o caráter individual da propriedade. Ora, a propriedade ou é individual, ou não é nada. Porque quem diz “próprio” diz “meu”. É meu. A idéia de “ego” e de “próprio” são idéias correlatas. E quando a idéia da individualidade da propriedade – como princípio – começa a parecer injusta, é evidente que é todo o senso de propriedade que vai desaparecendo.

Os senhores vêem outra coisa, que é muito notável – eu os felicito, porque me parece que em Buenos Aires é menos notável do que, por exemplo, em São Paulo, aonde eu moro – mas outra coisa que é notável é o seguinte: para o comunista, a economia dirige a vida. A evolução dirige a economia e a economia dirige a vida. Então, a modificação dos instrumentos de trabalho empurra a uma transformação de formas econômicas. E da transformação das formas econômicas se impõe uma transformação política, social, econômica, cultural. São as superestruturas modificadas automaticamente pela infra-estrutura.

O que está por detrás dessa teoria, sob algum aspecto, é evidentemente a impressão de que o econômico é o mais importante da vida. E cada dia que passa se vê, nas grandes cidades modernas, uma hipertrofia do econômico; uma preocupação exagerada com a economia; uma admiração imensa para com os produtores econômicos e um certo menosprezo para com aqueles que não são diretamente considerados produtores econômicos.

Eu me recordo que conversava, um dia, com um industrial de São Paulo. Era um senhor idoso. E me contava sua vida, contava sua biografia. Os senhores nada têm que me invejar por não terem ouvido, porque não era nada interessante... Ele me disse algo que era um comentário interessante de sua biografia. Contava-me que havia sido muito bom filho e que estudava na Marinha de Guerra do Brasil quando seu pai o chamou e ele foi obrigado a deixar a Marinha. Então, por obediência, se meteu nos negócios. Pequeno comentário: “Veja você como eu fui recompensado! Eu poderia ser um Almirante, entretanto sou um industrial!” Os senhores vêem a transformação: o econômico que passa inclusive sobre a honra de defender a pátria! Os senhores vêem como a hipertrofia do econômico como se opera em todo o mundo contemporâneo.

Se acrescentarmos a isso a perda do senso de individualidade, nós chegamos a uma conclusão muito mais precisa. A cada momento se observa que o sentido de intimidade desaparece. Multiplicam-se, nas grandes cidades contemporâneas, os grandes edifícios feitos de ferro e de vidro, em que se vê tudo e onde as pessoas estão como numa vitrine. Brasília, por exemplo, está nessa situação. E inclusive em Brasília há hospitais em que os leitos dos enfermos estão próximos das janelas com vidro e o enfermo pode ser visto pelas pessoas que passam pela rua! Vejam os senhores a perda completa de intimidade! Os locais de trabalho onde há simplesmente grandes vidros em que as pessoas fecham a máquina e fazem tudo diante das pessoas na rua que olham. A casa é cada vez mais pública, cada vez mais pode ser mais vista por qualquer pessoa que passe... Tudo isso cria uma atmosfera de perda de individualidade e de personalidade, que é mais um efeito do que uma causa. Mas é um efeito que atua como se fosse uma causa.

Quer dizer, é porque os homens vão perdendo o senso de individualidade por todo esse conjunto de acontecimentos de que falávamos, é porque vão perdendo o senso de individualidade que vão aceitando essas formas, quando os afetam, ainda o perdem mais.

E algo que aparece ainda mais nesse sentido absolutamente característico, e que são as pessoas – não sei se existem aqui, mas existem em vários países – que vão escutar as grandes competições de futebol com o rádio, para ouvir o comentarista que descreve o jogo que estão vendo... Não sabem mais ver o jogo de futebol por si mesmas. Têm a necessidade de um comentarista para compreender o que se passa. Não é propriamente para compreender.  É para algo diferente. Como estão habituados a não elaborar suas próprias impressões, a não elaborar suas próprias idéias, se sentem fracos para tomar posição. E se sentem amparados pelas muletas de um speeker que se entusiasma por eles, que lhes diz que “aquilo é bom”, que “aquilo é mau”. Então, eles têm uma espécie de prazer, de entusiasmo que os entusiasma também. Porque não sabem entusiasmar-se por motivos internos ou por razões internas. E por isso, então, têm a necessidade inclusive de algo que lhes entre por aqui, para lhes dizer algo aqui, que se traduz num aplauso pré-fabricado nos microfones do locutor.

Os senhores vêem por aí como a própria individualidade, que o comunismo quer aniquilar, esta própria individualidade perece.

Se os senhores relacionam todos esses fatos, se os senhores vêem que esses fatos se sucedem todos os dias, os senhores vêem que estamos em presença de um processo gigantesco. E que esse processo gigantesco, multiforme, que transforma a humanidade a todos os momentos, e do qual somos vítimas também, que é esse processo gigantesco que é preciso deter. Porque na ponta de cada um dos elementos desse processo há uma tendência subconsciente para algo que, em última análise, é o comunismo. E como podemos nós atuar na luta contra o comunismo, [atingindo] toda uma ordem de coisas, [atingindo] toda uma série de milhões de pessoas que, no fundo, e sem se dar conta, têm uma simpatia por uma ideologia que também as horripila.

É preciso quebrar essa situação. É preciso destruir essa contradição esclarecendo as pessoas e mostrando-lhes verdadeiramente o que acontece e para onde caminham por essa forma. Se se quebra nas pessoas essa sensação, se se quebra nas pessoas essa indulgência; se as pessoas se dão conta para onde vão sendo empurradas, então começa a possibilidade de reação. Mas se as pessoas não se dão conta disso, então me parece que qualquer reação encontrará poucos elementos, encontrará um pequeno apoio e terá muitíssima dificuldade para vencer.

Esta convicção se põe no meu espírito pela maneira seguinte: não se trata de uma banal proclamação contra os costumes modernos. Não se trata, sobretudo, de uma banal campanha contra as modas imorais, ou o que seja parecido. Milhares de coisas [há] desse tipo, muito bem intencionadas, muito beneméritas, mas completamente sem resultado.

Vemos sempre, por exemplo, as modas. Depois da I Guerra começou a diminuição dos vestidos. Então as saias subiram rapidamente até os joelhos. Depois, foi continuando. Nós chegamos – nas manifestações extremas – até o monoquini. Porém, em cada passo, a campanha pela boa moda se fazia da maneira seguinte: há um escândalo. Cortam-se, por exemplo, as mangas – que sei eu... estou muito pouco ao corrente de modas... – mas algo parecido com isso. Então, se protesta. Como a moda não cede diante desses protestos, os protestos se acalmam, a moda continua. Depois se amputa mais outra coisa. Há um outro susto e depois a coisa se pacifica. E por essa maneira não se obtém nada.

É preciso explicar às pessoas aonde isso vai conduzir. Então, as pessoas podem raciocinar. Porque se vem um passo, e outro passo e outro passo, nenhuma reação será possível. E é este ponto, essa descrição do caráter processivo que se deve fazer.

Qual é a maneira melhor de fazer a descrição desse caráter processivo? Parece-me que essa maneira está no seguinte: em que as pessoas – pelo menos as pessoas piedosas – e se vê que elas existem; basta, por exemplo, entrar nas igrejas de Buenos Aires para ver que existem – pelo menos nas pessoas que são e querem ser cristãs, se avivem a noção de que a religião católica é uma religião e é essencialmente uma religião, mas é uma religião da qual deflui uma civilização. E que a criação dessa civilização é uma obra complementar do espírito católico, mas uma obra absolutamente necessária nos planos de Deus. Não no sentido de que a pessoa não se pode salvar fora de uma civilização cristã, mas no sentido em que, como Deus quer a civilização cristã, é preciso fazê-la.

O que é uma civilização e que é a civilização cristã? Eu não posso me deter muito nessa matéria, mas algo entretanto se pode dizer.

Uma civilização é um conjunto de coisas ordenadas em torno de alguns princípios essenciais. A civilização romana em torno do Direito; a civilização egípcia em torno da ciência hermética etc., etc. Há um valor moral, há uma verdade, há talvez um erro que atua como se fosse um princípio. Há os corolários desses princípios que operam como se fosse uma doutrina e há todo um conjunto de instituições, de costumes, de mentalidades que se estruturam em torno disso.

A civilização católica é a estruturação de toda a vida temporal em função dos princípios fundamentais da doutrina católica e das virtudes cristãs fundamentais. E é preciso pôr no centro a idéia da virtude cristã. Porque é da virtude cristã propriamente dita que se fala. E então a civilização cristã não é outra coisa senão a conformação de todas as leis, de todos os costumes, segundo a virtude cristã. E é necessário não só ter uma vida de piedade intensa; e é necessário não somente ter uma vida de pequenos apostolados, mas nós temos que ter a idéia global da civilização. Nós temos que ter a idéia de que a única ordem humana verdadeira, plena, perfeita, digna do homem é a a civilização cristã. E mais ainda para nós cristãos, não é possível apostatar sem cair no pior; que uma civilização cristã que começa a balançar sobre seus alicerces é como uma torre que oscila e que cai de uma só vez. Porque se há uma Torre de Pisa no domínio da arquitetura, não existe o mesmo em matéria de sociologia, nem ela existe em matéria de vida religiosa.

A civilização cristã o que é em última análise? A civilização cristã é a ordem humana perfeita. Essa ordem humana perfeita o homem, pela queda do pecado original, não tem meios de conhecer. A inteligência humana se obscureceu. A vontade humana se embruteceu. O homem perdeu a possibilidade de conhecer a ordem natural. Então, nos diz São Tomás de Aquino, Deus revelou a ordem natural pelos Dez Mandamentos, e sabemos que depois instituiu um poder infalível para proteger a interpretação desses Dez Mandamentos. Para que os homens praticando a ordem natural das coisas possam afinal ter toda a civilização que corresponda à natureza humana e aos desígnios da divindade.

Essa persuasão é preciso dá-la a todas as pessoas. É preciso insistir sobre ela a todas as pessoas que são profundamente anticomunistas para que comecem a reagir inclusive contra esse estado de espírito. Porque somente os grandes movimentos de alma, somente os grandes vôos do espírito e as grandes tendências de uma população podem realmente contrarrestar os efeitos da Revolução.

Os senhores têm um exemplo magnífico disso. Pode-se perguntar qual é o exemplo, qual é o programa positivo que está nisso. Uma pessoa poderia me dizer: “Professor, o que é preciso fazer, então, concretamente? É somente dizer que há uma civilização cristã etc., etc?” Eu repito: estou longe de dizer isso. Mas eu digo que também é necessário fazer isto e também fazer isto principalmente. Porque o que a História nos mostra é que quando um povo todo inteiro está posto numa ordem de idéias e, sobretudo, quando se trata da ordem de idéias cristã, esse povo é invencível. Mas quando um povo está metido numa ordem de idéias diversa não há esforço capaz de vencê-lo se não o tiramos das idéias em que está.

E isto exatamente se vê na história de vossa magnífica Espanha, de que os senhores têm a honra de serem os herdeiros e os continuadores. Vejam, por exemplo, a história da revolução comunista. Por que a revolução comunista não conseguiu triunfar na Espanha? Evidentemente por muitas razões o governo comunista não conseguiu triunfar. Evidentemente por muitas razões. Mas a razão fundamental, a razão essencial é que a grande maioria dos espanhóis odiava o comunismo; o execrava com a santa execração cristã. E por isso cada espanhol se fez um militante contra o comunismo. Porque se não fosse um povo que se levantasse inteiro contra o comunismo, o comunismo teria triunfado na Espanha e teria triunfado no mundo inteiro.

Vejam, por exemplo, o exemplo de Espanha no tempo de Napoleão. Quando as tropas de Napoleão tinham dominado toda a Europa e penetraram na Espanha, foi o povo espanhol que por sua execração pessoal da Revolução Francesa, de que Napoleão era o símbolo, foi o povo espanhol que derrotou Napoleão e expulsou Napoleão.

E são esses grandes levantamentos de almas coletivos aqueles por onde verdadeiramente Deus triunfa. Se Constantino triunfou, se os cristãos saíram das catacumbas foi por uma fermentação positiva de milhões de almas atrás de um ideal verdadeiro e de um ideal santo.

E eu termino contando um fato. Quando Napoleão entrou na Rússia, o czar, que estava muito temeroso com o avanço de seu exército e que estava, entretanto, em Moscou, enviou um ajudante de ordens para tratar com Napoleão. Napoleão o fez sentar à sua mesa, falaram um pouco e depois lhe perguntou com arrogância: “Diga-me, senhor oficial, quantas cidades há entre aqui e Moscou?” Ele disse: “Há tantas.” – “Quais são os melhores monumentos nessas cidades?” – Então respondeu o oficial: “Em tal cidade tal igreja, em tal outra cidade tal convento etc.” – Napoleão disse: “Povo bárbaro, no qual os principais monumentos são os conventos...” – O oficial respondeu, com um sorriso: (aliás, muito pouco democrata-cristão): -  e disse: “Sire, Majestade [é um tão grande número como na Espanha”, onde Napoleão fora derrotado]... Era o fim de Napoleão.

A alma religiosa bem orientada, bem polida e bem esclarecida, a alma religiosa em toda população orientada para esses fenômenos, é esta que pode salvar, deve salvar e salvará a humanidade do perigo comunista.

(aplausos prolongados)

 

(*) Tradução do castelhano. Sem revisão do Autor.