Aula IV - A justificação da desigualdade a partir das hierarquias estabelecidas por Deus no universo: os coros angélicos

Resumo das aulas anteriores

O perigo da “formação filosófica” vazia de conceitos

O exemplo de Santo Inácio: “Fundador” e “Dirigente” da Companhia

Toda ação humana consta de sete etapas

1) Conhecer o fim

Aplicação a Santo Inácio

2) Conhecer os meios adequados para atingir o fim

3) Conhecer como se moverá a ação uma vez começada

1) Capacidade de direção

2) Capacidade de operação

3) Capacidade de lutar

4) Os “especialistas”

Santo Inácio: modelo de Fundador

A História do mundo é como uma grande batalha

Por que Deus fez tudo isso desigual?

Resumo das aulas anteriores

Este tema filosófico de que estávamos tratando seria a desigualdade.

Todos se lembram de que falávamos da igualdade em si mesma e da desigualdade em si mesma. Lembrávamos que esta  revolução igualitária que há pelo mundo não visa implantar a igualdade neste ou naquele campo, mas visa implantá-la em todos os domínios da atividade humana.

O objetivo disto é que as pessoas desejem a igualdade pela igualdade, vendo nela um bem em si, e odeiem a desigualdade enquanto desigualdade, porque vêem nela uma mal em si.

 

Por que Deus instituiu a desigualdade no universo; o exemplo da criação dos Anjos

Para criticar esta posição, vimos em Santo Tomás de Aquino a razão pela qual Deus instituiu a desigualdade no universo. E para ver como e por que Deus instituiu essa desigualdade, tratava-se de começar a analisar a parte mais alta do universo, que  são os Anjos.

São eles não só a parte mais alta, mas também a parte mais numerosa. De acordo com os comentadores, quando todos estiverem no Céu, verificar-se-á que há muito mais Anjos que homens. O número de Anjos é verdadeiramente insondável. Nós não só somos quantitativamente muito inferiores, como também qualitativamente. E a grande maioria dos seres racionais criados por Deus são seres angélicos.

Estudar, portanto, a desigualdade no mundo dos Anjos, compreender por que ela lá existe, por que e no que é uma perfeição, qual é a razão de ser disto, é o ponto de partida para estudarmos a questão da igualdade e desigualdade entre os homens.

Santo Tomás de Aquino, ao tratar dos Anjos, tinha textos relativamente pobres dentro da Revelação, que não traz muita coisa a respeito dos Anjos. Fez ele um esforço prodigioso de inteligência para, com os dados da sabedoria natural, concluir uma hipótese a respeito dos Anjos. E, concluída esta hipótese, procurar sua confirmação na Revelação; obtida esta confirmação, afirmar que o mundo angélico é de um determinado modo. Foi, de fato, um notável esforço de inteligência. Esse comentador de Santo Tomás afirma que o Tratado sobre os Anjos é um dos tratados mais egrégios de Santo Tomás.

Para entender bem o raciocínio de Santo Tomás é preciso entender a problemática em que ele se coloca. O ponto de partida do problema é o seguinte:

Deus pairando acima de toda a criação, que é obra dEle, e tendo constituído uma criação que é um cosmos, e não um caos. Quer dizer, uma criação em que as várias partes estão ordenadas umas em relação às outras, em vez de serem alheias ou heterogêneas umas em relação às outras; e tendo estabelecido em seu plano que haveria de governar uns seres por meio de outros seres, de maneira que os mais altos receberiam a plenitude da luz que Ele quisesse comunicar às criaturas; e os outros seres seriam governados pelos mais altos e, sucessivamente, em vários andares.

E ele procura mostrar de que maneira se faz isto. E é uma coisa curiosa, pois constitui uma verdadeira teoria do trabalho. Quer dizer, quais são as diferentes etapas do agir; em quantas partes o agir se compõe; o que significa cada uma dessas partes; mostra depois como a cada uma dessas partes corresponde uma categoria de Anjos.

Então, compreendermos que no Céu há uma verdadeira organização, porque se pode falar no Céu de uma verdadeira organização, com racionalização e distribuição, porque há no Céu um verdadeiro trabalho; na paz do Céu, há uma atividade constante. Esta organização do trabalho corresponde ao seguinte: tomando no sentido mais absoluto, mais intrínseco, mais essencial da  palavra, tomando o sentido da palavra “ação”, ver qual é o rumo, quais são as etapas  naturais da ação e depois ver quais são os coros de Anjos e como se relacionam com essas etapas naturais da ação.

 

O perigo da “formação filosófica” vazia de conceitos

Não há coisa de que eu tenha mais medo do que uma formação filosófica em que a pessoa mais propriamente aprende palavras do que aprende conceitos, e por isto mesmo não enriquece o espírito. Eu já vi muita gente brincar com palavras de filosofia como com um brinquedo: faz pilhas de silogismos, cujos conceitos exatos a pessoa ignora. O resultado são também raciocínios ocos, que não contêm nenhuma realidade. Eu não adoto isto para a formação de nossa gente e, por isto, queria adotar um método prático para abordar um tema de caráter filosófico.

 

O exemplo de Santo Inácio: “Fundador” e “Dirigente” da Companhia

Eu poderia dar aqui uma aula em que isto ficasse mais ou menos sabido em nosso espírito. Mas como detesto o mais ou menos sabido, resolvi fazer uma suposição antes de passar para os Anjos: imaginar um pregador –  digamos dos grandes tempos da Companhia, e um pregador de 1957 – que prepara um sermão sobre Sano Inácio de Loyola. E quer provar que Santo Inácio foi um modelo de fundador de Ordem religiosa e de superior geral. Então, ele toma o seguinte: fundar uma Ordem religiosa e dirigi-la é uma ação. Ora, toda ação se decompõe teoricamente nessas várias partes; vou mostrar que em cada uma das partes dessa ação - “fundar” e “dirigir”- Santo Inácio de Loyola foi exímio. Vou então, resolver a questão através de Santo Inácio.

 

Toda ação humana consta de sete etapas

Santo Tomás de Aquino diz que a ação supõe, no homem, ou põe em movimento no homem, sete faculdades, ou a ação consta de sete etapas. Devemos considerar primeiro as faculdades cognoscitivas e depois as faculdades operativas do homem, pelas quais ele age e nessa classificação de faculdades cognoscitivas e operativas, temos bem delineado a negação daquilo que poderíamos chamar o “americanismo” ou também poderíamos chamar o “brasileirismo”.

É muito comum nesse temperamento frenético [...] de atirar-se à ação, freneticamente, açodadamente, sem pensar antes, sem ver o que vai fazer, por que é que vai fazer.

O primeiro passo da ação não é agir. O primeiro passo da ação é pensar. A gente age começando por pensar e não começando por agir.

E há três etapas, correspondendo a três faculdades, que representam exatamente estas três etapas do pensar.

O pensar que prepara uma ação é o elemento preponderante na ação. Este pensar compõe-se dessas três etapas:

 

1) Conhecer o fim

A faculdade cognoscitiva primeira é a faculdade pela qual o homem procura e conhece bem o fim que tem em vista quando vai agir. O fim último e os fins intermediários que o conduzirão a este fim.

Isto é muito sensato. Não há nada de mais estúrdio do que alguém agir sem saber o fim para onde vai. É claro que antes de tudo se deve considerar o fim. E a pessoa fará uma ação tanto melhor quanto melhor for a clareza com que ela conhece o fim e quanto melhor ela estiver compenetrada desse fim.

Quer dizer, esta espécie de finalismo presidindo a tudo é o elemento dominante da verdadeira teoria da ação de Santo Tomás, e da organização do Céu.

 

Aplicação a Santo Inácio

Vamos dizer que, deste ponto de vista, uma pessoa quisesse fazer o panegírico de Santo Inácio e quisesse ver no que consistiu, na Companhia de Jesus e em Santo Inácio , esse conhecimento do fim. [Analisaria]  Santo Inácio conhecendo muito bem o fim, sob três  pontos de vista.

a) Em primeiro lugar, o fim considerado em si mesmo. O último fim considerado em tese: a maior glória de Deus. Os homens devem querer a maior glória de Deus.

b) O fim como deveria ser realizado em sua época, e como deveria ser procurado em sua época. Na época dele, a problemática do fim último como é que se punha? qual era a situação da glória de Deus no tempo dele?

c) Ele, pessoalmente, nesse trabalho para a maior glória de Deus, o que tinha a fazer.

Aí estava bem definido o fim em todos os seus aspectos.

Imaginem, por exemplo, uma pessoa que vai trabalhar para a glória de Deus e que não tenha uma dessas coisas. Por exemplo, um estúrdio que vai trabalhar para a glória de Deus e não tem a primeira etapa. E faz algumas coisas pela glória de Deus. Esta ação dele é paupérrima, porque ele tem um conhecimento confuso, pobre desse fim. Nada de grande lhe vai sair porque o fim, em si mesmo, lhe é pouco conhecido.

 

A) Conhecimento teórico da glória de Deus em Santo Inácio

Vejamos como era isto em Santo Inácio.

Tinha ele um conhecimento magnífico da glória de Deus, porque ele a conhecia:

a) em primeiro lugar, considerada em Deus; o que é Deus, e o quanto vale Sua glória. Quer dizer, ele sabia o que é a glória de Deus, e também o que é o contrário da glória de Deus, ou seja, a injúria a Deus. Ele sabia que a  glória de Deus comporta graus, assim como a injúria a Deus também os comporta; sabia qual o valor da glória de Deus, isto é, o fim último de todas as coisas, e a grave injúria que existe em uma pessoa negar a glória de Deus.

b) Segundo modo pelo qual Santo Inácio conhecia o fim da Companhia: [é o fim quando] se contempla, não mais em Deus, mas nos seres considerados em si. Quer dizer, como essa glória se realiza no Céu, ou no que é que o Céu dá glória a Deus; como é que ela se realiza no Purgatório; como se realiza no inferno (sabemos que no inferno também existe glória a Deus dada involuntariamente pelo demônios; seus rugidos, seus gemidos e imprecações dão glória a Deus). Como é que se realiza na terra, e como é que o pecado rouba a glória de Deus; como se realiza na Santa Igreja; como se realiza em cada diocese, em cada Ordem religiosa, em cada alma. Santo Inácio tinha esta noção de modo eminente.

c) Depois, na esfera temporal. Como a glória de Deus se realiza na Cristandade; como se realiza nos Estados cristãos; como se realiza nos grupos intermediários: corporações, feudos, etc.; como se realiza nas famílias e, finalmente, nos indivíduos. Como se realiza nas várias manifestações da vida coletiva, como sejam, por exemplo, vida cultural, vida social, etc. Idem quanto aos povos cismáticos, quanto aos povos hereges, quanto aos judeus, quanto aos povos pagãos, etc. Isto é uma noção concreta de como e no que consiste em cada coisa, no que consiste em cada canto [da Terra] a glória de Deus; como é que cada coisa deve dar glória a Deus.

d) Ele conhecia a glória de Deus não só nos seres, em cada ser considerado individualmente, mas nas relações desses seres entre si. A harmonia dessas relações dá glória a Deus. Então, como é que por aí se realizava, se conseguia a glória de Deus. Também nos movimentos dos seres. Os seres se movem para conseguir, por este movimento, dar glória a Deus.

Vemos, portanto, nesses quatro ítens, como ele tinha uma noção teórica doutrinária perfeita do fim que ele tinha em vista.

 

B) Conhecimento do estado da glória de Deus no tempo dele

Passemos agora para baixo. É flagrante isto em Santo Inácio : como tinha noção de como em sua época a glória de Deus tinha de ser realizada, e também como em sua época Deus era injuriado. Quer dizer, como o protestantismo, o humanismo roubavam almas a Deus, e como era preciso lutar para que as almas fossem reconduzidas a Deus.

O fim de evitar o escândalo no tempo dele; esse fim era muito claro para ele: era o amor da glória de Deus como se apresentava no tempo dele.

 

C) A glória de Deus no caso pessoal de Santo Inácio

Enfim, um último ponto: a glória de Deus como se apresentava não só no tempo dele, mas no caso pessoal dele. Quer dizer, no que consiste a glória de Deus que ele deve dar. Como se realiza a glória de Deus na pessoa dele.

Está claro que um homem com uma noção muito alta, muito profunda e muito ortodoxa e santa de todas essas coisas, podia realmente ser o fundador de uma Companhia que tivesse em vista a glória de Deus.

 

2) Conhecer os meios adequados para atingir o fim

Deste alto conhecimento dos fins na ordem da ação, na ordem da preparação para a ação, passamos para uma outra faculdade cognoscitiva. Essa faculdade cognoscitiva não consiste mais em conhecer o fim, mas consiste em conhecer os meios adequados para chegarmos a esse fim.

Já é uma coisa sensivelmente diferente. Depois de saber tudo sobre a glória de Deus, desde os Anjos até a si mesmo, ou desde o seio da Santíssima Trindade até a si mesmo, ele pergunta o seguinte: o que é que eu posso fazer para eu promover a glória de Deus? Que meios eu devo utilizar para promover a glória de Deus?  Passamos então, para a ciência dos meios, para a escolha dos meios que conduzem a este fim.

Esta segunda operação, podemos dizer que em Santo Inácio se processa assim: ele estudou-se a si próprio e viu em que medida ele, como pessoa, podia realizar este objetivo. E ao mesmo tempo notou em que medida podia realizar este objetivo, assentou os meios pelos quais podia preparar-se para atingí-lo.

Quer dizer, toda a formação dele: “Eu sou inteligente, sou nobre, sou um militar, tenho tais aptidões; preciso aproveitá-las de tal maneira para eu pessoalmente ser capaz de tudo aquilo que devo fazer  para a glória de Deus”.

Mas ao mesmo tempo que fez isto, ele verificou que ele era insuficiente para realizar isso na medida em que queria, e que precisava de um instrumento para realizar seus fins: este intrumento era a Companhia de Jesus.

Então ele ideou um meio e construiu a solução; a solução era uma Ordem religiosa com tal currículo, com tal organização, com tais obras, com tais meios, etc. É um meio que ele imaginou.

Mas notem que até agora ele não está agindo, mas pensando. Porque chega  ele a realizar  tão  bem a consecução desse meio? Porque ele conheceu bem o fim. Toda a perfeição do trabalho dele é porque ele conhece bem o fim. Quem conhece bem o fim, também conhece bem o meio.

 

3) Conhecer como se moverá a ação uma vez começada

Passamos depois para a terceira faculdade cognoscitiva. Depois que eu concebi uma Ordem religiosa, eu ainda nada tenho feito na ordem dos planos. Preciso saber como vou mover esta  Ordem religiosa para conseguir o fim.

Não basta eu ter imaginado a obra, mas é preciso eu construir uma teoria de como se governa essa Ordem, e de como se vai movimentá-la para conseguir os fins. Porque parada, ela nada fará. É preciso que se mova. E este próprio movimento é preciso ser estudado por mim.

Quando uma pessoa estudou essas três coisas -  o fim, o instrumento, o modo de mover o instrumento para  a realização do fim - então a pessoa está devidamente aparelhada, na ordem da inteligência, para realizar aquilo que ela quer. E daí, então, ela passa para as faculdades de caráter operativo.

 

Resumindo as etapas anteriores a estados de espírito: espírito profundo, espírito fecundo e espírito prático

Eu procurarei sintetizar essas três modalidades de espírito com expressões que não dizem tudo, mas apenas alguma coisa.

Este espírito pelo qual a pessoa conhece o fim, poderíamos dizer que é o espírito profundo. O espírito pelo qual a pessoa produz o meio, pode-se dizer que é o espírito fecundo. O espírito pelo qual a pessoa movimenta a coisa para conseguir o meio é o espírito prático.

Pode-se então dizer que com o espírito profundo, o fecundo e o prático, a pessoa verdadeiramente está equipada para a ação.

 

As quatro etapas operativas

Daí, então, poderíamos passar para as faculdades propriamente operativas. O que exigiria a realização desse plano, além dos pontos que estou mencionando?

 

1) Capacidade de direção

Capacidade de direção. Depois de ter feito tudo isto, é preciso que a pessoa que se entrega a uma obra, tenha a capacidade de direção. O que é essa capacidade? É a capacidade de dispor das pessoas e dos meios de maneira a conseguir o fim.

Por exemplo: Santo Inácio está dirigindo a Companhia. Fim genérico: a glória de Deus. Fim próximo: converter a China. Para  converter a China: mandar uma missão. Para mandar a missão, ele precisa saber qual é a situação do país, quais os fatores bons e maus, quais as inter-relações entre esses fatores, quais os homens competentes em diplomacia, os bons observadores, os bons pregadores que ele quer mandar; qual o lugar oportuno para chegar, quem chefiará? Tudo isto faz parte da capacidade de direção:  saber preparar a expedição.

Notem bem a diferença entre as faculdades cognoscitivas  e as operativas. As cognoscitivas o sujeito as tem na cabeça, na mente. A faculdade de direção já consiste em agir. É uma coisa que já vem ligada à operação. Então, dirigir.

 

2) Capacidade de operação

Mas há outra coisa ainda: capacidade de operação. Consiste ela em empreender a conversão. Um chefe que saiba mandar, conferencistas que animem os outros e toquem o povo, etc. Em cada um desse pontos poderíamos repetir. Por exemplo, escolas. São precisos homens possantes que as fundem e que as façam   funcionar. Hospitais: é preciso mandar para lá homens com capacidade de ação. Isto é um espírito próprio, distinto dos outros. Há gente com capacidade para a ação e não tem capacidade de direção, e vice-versa.

Isso se nota muito na arte militar. Pode haver um oficial exímio em dizer: “Tomem aquela montanha”. Mas se disserem a ele que vá, ele não é capaz. Aqui é uma capacidade especial: é fazer a coisa.

 

3) Capacidade de lutar

Mas há também uma capacidade de lutar que Santo Tomás distingue da capacidade de fazer. Essa capacidade de lutar é a vigilância pela qual a pessoa percebe os fatores opostos e entra em luta com eles, quer sejam internos ou externos. Então, é o espírito polêmico, o espírito dialético, pelo qual a pessoa sabe vencer os problemas. É claro que não basta saber agir, mas é preciso saber lutar. A luta é uma operação meio distinta da simples construção. E é preciso ter este espírito para fazer a coisa. Também é uma capacidade especial.

Aqui, por exemplo, é preciso um homem com capacidade de lutar, vigilante, é preciso ter ímpeto, porque lutar sem ímpeto é ser derrotado; é preciso certo controle, porque lutar com ímpeto demais às vezes é pior do que lutar sem ímpeto. É preciso ter destreza, isto é, saber dar o golpe, é preciso ter perseverança, ter coragem, etc. Isto em relação aos inimigos externos, e também quanto aos inimigos internos do pequeno grupo de jesuítas.

 

4) Os “especialistas”

Santo Tomás mostra que essas capacidades dizem respeito, geralmente, a toda espécie de ação.

E além dessas coisas genéricas, é preciso ter o  que chamamos os especialistas, que sabem agir em cada campo concreto.

Teríamos então, por exemplo, aqueles que sabem agir em determinados grupos sociais; agir especialmente em um gênero de assunto; têm uma capacidade especial para agir sobre pessoas e não sobre grupos.

Por exemplo, são as pessoas que têm jeito para socorrer as necessidades individuais. Dentro desse grupo há gente com especial aptidão para tratar com os homens difíceis. Isto é um senso do individual e do concreto que verdadeiramente constitui um feitio de espírito. Haveria o maior engano em supor que essas são pequenas habilidades. Pode haver gênio em qualquer dessas escalas. Pode-se ser um gênio nessa escala modestíssima e um homem razoável no conhecimento  dos fins. Perguntando-se qual o que tem mais valor, torna-se muito difícil decidir. Conhecimento de fins, em si, é uma coisa mais  elevada. Mas gênio é gênio e diante dele é preciso saber tirar o chapéu.

Temos aqui, portanto, categorias diferentes: grupos sociais, gêneros de assunto, casos individuais. Temos, então, a ordem dos especialistas. E se tivéssemos uma organização com espírito inteiramente equipados nessas várias esferas, teríamos uma  grande organização. As famílias de espíritos mais ou menos são essas, e as etapas do agir e as modalidades do agir são essas.

 

Santo Inácio: modelo de Fundador

O nosso pregador poderia mostrar que em cada um desses pontos Santo Inácio foi exímio. Santo Inácio era um  homem  de muito gênio e de muito talento. E não só tinha as noções mais altas, mas sabia também descer muito bem ao concreto e ao individual. Diretor espiritual exímio, homem de forte sedução pessoal, e que sabia recorrer a toda espécie de expedientes lícitos, evidentemente.

Concluindo seu sermão, nosso pregador poderia dizer que Santo Inácio, por ter sido exímio em tudo isto, deve ser um modelo de fundador de Ordem religiosa, deve ser um modelo de superior geral, mas, mais ainda, um modelo de todo homem de ação. Porque sua ação, conscientemente ou não, se inspirou nos grandes princípios em que se baseia, em tese, toda e qualquer ação.

 

As sete etapas da ação humana e os coros de Anjos

Exposto assim o assunto, passo a mostrar qual a relação que isto tem com o mundo dos Anjos.

Estamos [vendo] que há aqui sete categorias, que correspondem aos sete coros de Anjos. E no Céu cada Anjo é exímio num desse pontos. Naturalmente que  à maneira de Anjo. Mas o que é um Querubim?

Temos aqui: Querubins, Serafins, Tronos, Dominações, Potestades, Virtudes, Anjos. Os Anjos divididos em três categorias que são: os Principados, os Arcanjos e os Anjos simplesmente, ou Anjos da Guarda.

O que fiz na pedra [escrever no quadro negro] é uma analogia para se entender o funcionamento do Céu. Porque o Céu é uma coisa que funciona, que tem vários órgãos, várias categorias e que se move organicamente para a realização de suas finalidades.

1) O que é o Serafim? É o espírito do mais alto quilate que tem o conhecimento eminentíssimo das finalidades da criação e da glória de Deus, e um poder de atrair as almas, todas as coisas, para seu fim.

2) O   Querubim já é diferente do Serafim. Ele não conhece em Deus – de quem ele tem a visão beatífica – propriamente tão bem o fim. Ele é mais instruído sobre o fim pela comunicação que o Serafim lhe faz. Mas ele conhece em Deus a ordem da criação, enquanto ela se move para a realização do fim.

3) O Trono (que tem esse nome por causa de sua proximidade de Deus, enquanto Deus é Rei e se move para governar) conhece em Deus a produção dos decretos pelos quais Deus governa o universo; as operações governativas de Deus. É nisso que ele [vê] melhor a ordem do universo. O que eles sabem, eles vão comunicando uns aos outros, e também aos Anjos de categoria inferior, que são mais os Anjos de caráter operativo do que cognoscitivo, se assim se pode dizer.

4) Temos as Dominações, que fazem a distribuição do serviço de todos os Anjos e os dirigem. Quer dizer, a capacidade de direção.

5) Temos as Virtudes que comunicam o movimento a todo o universo e o movimento dentro do rumo da criação de Deus. Eles têm capacidade de ação eminente.

6) Abaixo temos as Potestades, que são propriamente os “ultramontanos” do Céu, porque colaboram para toda essa obra, voltados especialmente para os obstáculos, e são o terror dos demônios. [...]

7) Temos depois os simples Anjos:

a) Alguns cuidam dos povos. São Miguel  Arcanjo, por exemplo, na Antiguidade, velava pelos persas, judeus e gregos, segundo  Santo Tomás. Afirma  isto  porque, diz ele, o Profeta Daniel declarou tal coisa. Esses Principados (categoria de Anjos)  dispõem de reinos e transferem o domínio de um povo para outro. Quer dizer, têm o jogo da História nas mãos. Também pertence a esses arcanjos inspirarem os homens que dirigem os povos.

b) Depois dos Principados, temos os Arcanjos propriamente ditos. Diz ele: o que é o Arcanjo? É um misto de principado e de Anjo, porque vela pelo bem comum da Fé e das coisas do culto. A coisa está bem achada porque o bem comum da Fé existe realizado no bem de cada indivíduo. É uma coisa muito mais pessoal do que o bem comum de um povo. Então, é preciso ter esta arte de tratar com cada um no que diz respeito à Fé.

c) O que é, então, o Anjo? O Anjo cuida do bem particular, no sentido de que ajuda cada um a realizar seu destino pessoal. Neste sentido, o Anjo está a serviço do Arcanjo e do Principado. São os seres a quem os Arcanjos e Principados dão ordens. Para realizar meu destino, eu tenho meu Anjo da Guarda, que cuida de meu bem particular.

Diz ele que por causa disto os Arcanjos e os Principados são mandados para anunciar às pessoas e ao mundo as coisas do bem comum espiritual ou temporal. Por isto Gabriel era Arcanjo. Mas quando se trata de anunciar a uma pessoa algo de seu bem particular, vem um Anjo.

 

A História do mundo é como uma grande batalha

Vemos, então, a especialização de funções no Céu, e temos o panorama das desigualdades que o próprio Deus fez no Céu.

Vemos que se trata de uma concepção que nos mostra o universo povoado de Anjos; e Anjos muito mais numerosos que os homens e os outros seres. E por causa disto, os Anjos existentes também na atmosfera e exercendo, na atmosfera, uma ação de presença.

E tudo quanto se move é movido através de causas segundas – é claro –  mas afinal pelo ministério dos Anjos, e os Anjos intervindo na História, e participando com os homens da produção dos acontecimentos históricos.

E poderíamos analisar, embora Santo Tomás não o faça, a ação do inferno, começando de baixo para cima. E chegaremos também à concepção medieval de uma grande batalha, no mundo, entre Anjos e demônios, e entre homens bons e maus, os Anjos bons e maus presentes em tudo, e presentes ativamente nos acontecimentos.

 

Por que Deus fez tudo isso desigual?

Do ponto de vista da desigualdade, deve-se considerar por que Deus fez isto.  Fez isto por um capricho? Por que Ele entendeu fazer?

Não. Nisto há os planos de Sua sabedoria. É que realmente o governo de uma coisa se decompõe nessas partes. Essas são as partes intrínsecas e lógicas do governo de uma coisa; são as etapas lógicas do agir. Por isto, para cada etapa Ele criou uma categoria de espíritos celestes.

 

Cada Anjo é único em sua espécie

Notem que entre esses Anjos não há o que haveria, por exemplo, se Dom “x” entrasse aqui e desse a cada um de nós uma tarefa. Todos nós homens somos de um mesmo gênero; cada Anjo é, ele mesmo, sua espécie, ele é  único em seu gênero. De um Anjo para outro não há uma diferença como há entre um e outro homem, entre uma raça e outra. Mas é a diferença que existe entre um homem e uma outra humanidade; é um ser racional de categoria, de espécie, de tudo diferente.

O Serafim é, por sua natureza, pensante no fim último; ele não faria bem essas coisas que estão abaixo dele. O mesmo se diz do Querubim. O Querubim é essencialmente, e por sua natureza, o ser do meio, que vê o meio; o Trono é o ser que vê a ação. Cada um deles é uma espécie.

Se considerarmos isto, veremos que a desigualdade deles não é caprichosa; Deus teve razão de os fazer assim; é a própria essência do agir que estabelece essas etapas. Mas também não é uma coisa artificial, convencional; é o ser deles que é assim. Eles são desiguais no que há de mais íntimo no seu ser, por vontade de Deus, e para que essa desigualdade realizasse uma determinada perfeição. Uma perfeição de conjunto muito maior do que se fossem iguais entre si. Temos uma desigualdade criada por Deus, radicada em cada ser e obedecendo à própria teoria da organização, à própria teoria da ação.

 

Do exemplo dos Anjos se deduz como deve ser o relacionamento entre homens desiguais

Vejam bem como essa desigualdade é tipicamente feita por Deus, é uma desigualdade que não enxovalha ninguém.

O que está mais embaixo tem uma natureza em si mesma esplêndida; nada há aqui que não seja esplêndido. E  essa natureza esplêndida tem a visão beatífica de Deus. Apenas o que um vê em Deus é mais elevado do que o outro vê. Esses aqui recebem, por uma porção de Anjos, uma porção de informações para seu próprio governo. Mas em tudo isto vemos um respeito de Deus em cada criatura, que faz do menor deles um verdadeiro príncipe. É uma desigualdade que dignifica, que eleva.

Isso ensina bem como um homem inteligente, ou tido como inteligente, deve considerar um homem burro, ou  tido como burro. É uma meditação muito boa para acabar com pretensões ou coisas desse gênero. Um Anjo inferior, considerando um superior, poderia pensar o  seguinte: “Vigilância como eu, ele não tem; e capacidade polêmica como eu, também não tem. E isto ele não recebe da comunicação de Deus como eu recebo. Eu sou o muro do Céu e o braço de Deus; sou a fortaleza do braço de Deus que reprime os demônios”. Seria uma tolice, porque Deus dá a cada um, mesmo aos mais modestos, alguns dons que Ele recusou aos que estão mais em cima. Por outro lado, um que está em cima olhando um muito mais modesto, deve considerar isto: “Ele é mais modesto do que eu, mas há um lado por onde ele é mais capaz do que eu”. Por isto é que Deus faz, às vezes, certas coisas. Dá a um filósofo grande capacidade de direção, mas para mantê-lo na humildade, e para afirmar a desigualdade que pôs em tudo, Ele dá muito a um homem numa direção, e desequipa este homem noutra direção, de modo que aí o homem é incapaz de uma coisinha.

Aliás, parece que Santo Tomás era assim. Aquele cérebro prodigioso, para algumas coisas era nulo, e até muito ingênuo. Isto é como Deus faz as coisas. Todo homem, por algum lado, deve pagar a [sua quota à]  natureza humana. E todo homem, por mais equipado que seja numa direção, em outra é desequipado. E isto é harmonioso; e nem há razão para quem é assim se envergonhar, nem há razão para quem tenha essa pequena superioridade se orgulhe. Mas é muita razão para  aquele que  é inteligente saber que não deve tratar ninguém de burro, porque este que é menos inteligente que ele, é mais inteligente que ele num ponto.

Passando do Céu para a terra, veremos que Deus tendo posto esta desigualdade no Céu, criou os homens para  que eles, por sua natureza, fossem iguais enquanto homens, mas fossem desiguais em seus acidentes. Esta desigualdade é um bem e já existia no Paraíso. Portanto, a desigualdade não deve ser tida como uma coisa triste, nem que possa entristecer ninguém. No Céu seremos eterna e completamente felizes considerando os seres abaixo e acima de nós. E veremos aí uma harmonia de organização que não veríamos tão  bem se Deus houvesse criado um só ângulo.

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