Aula V - A Revolução Igualitária - Governo e Providência de Deus sobre o universo através dos seres secundários

Resumo da aula anterior

A intenção de Deus ao estabelecer a hierarquia entre os seres

Não é próprio ao superior fazer as ações pequenas

A grandeza de Deus é melhor expressa na  ação de “proche en proche” e através das etapas intermediárias

Segunda razão: a ação de proche en proche exprime melhor a grandeza de Deus

Os servidores de Deus têm governo próprio sobre os súditos

A inteligência na ordem natural, e o senso católico na ordem sobrenatural, facultam a seus detentores capacidade de mando

A “capacidade providente” do homem

O “ser intermédio” numa escala de seres

Conclusão: Deus quer a desigualdade; a desigualdade é boa e bela

 

Resumo da aula anterior

O assunto tratado na última aula foi o seguinte: à vista do quadro das relações estabelecidas por Deus entre os anjos, tínhamos perguntado quais eram as excelências desse quadro; de que maneira servia ele para a glória de Deus; porque Deus tinha estabelecido essas desigualdades. E havia dado vários argumentos que também serviam para fazer uma apologia da desigualdade contra os igualitários, na linha da tese que temos seguido.

Repito a argumentação.

Consideramos a organização como já foi vista: querubins, serafins, tronos, dominações, potestades, arcanjos, anjos.  Vemos depois desse todo, o universo tripartite, dividido em seres puramente intelectuais, seres intelectuais e materiais, seres exclusivamente materiais. Os anjos representam apenas uma parte desse universo inteiramente hierarquizado. Estamos, portanto, diante de uma imensa desigualdade introduzida por Deus na criação. Então devemos nos perguntar por que Deus fez isto. A razão pela qual  Deus fez isto (...).

[Apresentando o que a hierarquia tem de bom, deduzimos,] por exclusão, aquilo que o igualitarismo tem de ruim. Portanto, estamos no  cerne de nosso problema.

 

A intenção de Deus ao estabelecer a hierarquia entre os seres

Devemos perguntar por que Deus colocou os anjos em tal linha de desigualdade, e o que é que tem de bom essa desigualdade na criação.

Temos vários argumentos: 1) por que Deus não faz diretamente tudo? Por que se serve de seres inferiores a Ele para governar o universo? (....).

Não é próprio à grandeza de Deus cuidar dos pormenores da execução. Santo Tomás mostra que em Deus podemos distinguir a virtude cognoscitiva da virtude operativa. O que é próprio da virtude cognoscitiva é conhecer (...).

 

Não é próprio ao superior fazer as ações pequenas

1- Não é próprio a Deus executar o plano de sua Providência em seus últimos pormenores, porque a capacidade cognoscitiva é distinta da capacidade operativa.

O próprio da capacidade cognoscitiva é chegar aos pormenores; o próprio da capacidade operativa é, exatamente, não chegar aos pormenores, porque uma pessoa capaz do mais é capaz do menos; se é capaz das grandes coisas, é capaz também das pequenas. Basta que ela mostre sua capacidade nas coisas muito grandes, e que ela faça executar as pequenas coisas pelos outros seres. Não fica bem a um que tem grande capazidade operativa  fazer as coisas pequenas. As coisas pequenas manda-se os seres secundarios fazer. As coisas grandes faz aquele que é grande.

Os romanos exprimiam isto em duas expressões: “O pretor não cuida das bagatelas” ou “a águia não se preocupa em apanhar moscas “. Não podemos imaginar Deus, em sua infinita majestade, intervindo diretamente para fazer, por exemplo, que determinada espécie de animal não desapareça, cuidar das formigas, dos passarinhos, etc. Deus se serve dos seres secundários para fazer as coisas pequenas.

Então, quais são as coisas que estão à altura de Deus fazer? As coisas que só Ele pode fazer: criar, conservar na existência e dar a vida sobrenatural. Estas coisas Deus faz diretamente.

Temos aí a primeira razão daquela organização de anjos. Deus faz a regência secundária do universo servindo-se dos anjos e dos homens. Veremos que também os animais e os seres mais inferiores são também instrumentos de Deus.

 

A grandeza de Deus é melhor expressa na  ação de “proche en proche” e através das etapas intermediárias

Segunda razão: a ação de proche en proche exprime melhor a grandeza de Deus

Santo Tomás nos mostra que tanto mais a virtude de um agente é poderosa, tanto mais longe chega sua ação. Dá ele o exemplo do fogo. Quanto mais um fogo é poderoso, tanto mais longe chega o calor desse fogo. Quanto mais uma pancada é forte, tanto mais longe chega o som desferido por essa pancada. Quanto mais um tiro é potente, tanto mais longe chega o ruído desse tiro. É fato que as ações  muito poderosas chegam ao longe.

Mas, diz ele, toda ação poderosa atinge os extremos exercendo-se sobre os intermediários. Esta chama não aquece logo os extremos dessa sala, por exemplo, mas aquece as camadas de ar próximas a ela; essas camadas aquecem outras, essas outras, outras, etc.,etc., até atingir o extremo da sala. Portanto, a ação de proche en proche  é a ação das causas muito poderosas.

Então, diz ele, também a ação de Deus, que é muito poderosa, convém que seja de proche en proche, age numas criaturas por meio das outras.

Depois de ter mostrado porque Deus se serve de uns seres para agir sobre os outros, pergunta-se  por que razão Deus tem muitos executores de sua vontade.

A resposta de Santo Tomás: tem Ele muitos porque convém a um grande Rei ter muitos ministros. O grande Rei deve fazer-se servir por muitos servidores. Sendo Deus muito poderoso, deve ter muitos servidores. De onde convém à grandeza de Deus que o número das criaturas seja grande, o número dos que O servem para o governo do universo seja grande.

 

Os servidores de Deus têm governo próprio sobre os súditos

Terceira questão: esses servidores têm governo próprio sobre os súditos.

Vemos que Deus organizou o universo de tal maneira que não se pode apenas dizer que Ele tem um grande número de servidores, mas esses servidores, por sua vez, são servidores entre si, uns dos outros. Não são apenas servidores diretos de Deus, mas são servidores uns dos outros. Por exemplo, os querubins servem aos serafins, os tronos servem aos querubins, etc., etc. Pergunta-se por que Deus mandou fossem esses servidores uns dos outros.

Digamos que eu seja um general, tendo debaixo de minhas ordens somente soldados. Em tal situação, não tenho uma hierarquia de causas e efeitos; só tenho efeitos. Estou, como autoridade, colocado diante de gente que obedece direta e completamente ao meu poder. Todos estão nivelados e igualados diante de mim. Mas quando em vez de ter gente que me obedece inteiramente, eu tenho gente que me obedece e que, por sua vez, manda em outros, eu, em relação ao que me obedeceu, procedo como causa, e o que me obedeceu procede como efeito. Mas o que me obedece mandando em outro, procede em relação ao outro como causa, e  aquele sobre quem ele mandou faz o papel de efeito. O general é causa e o coronel é efeito. A ação do coronel é efeito de uma causa, que é o general; mas a ação do tenente-coronel é ação de uma causa que é o coronel, etc. Vamos descendo e encontramos uma relação de causas e efeitos recíprocas.

Diz  Santo Tomás que é muito mais nobre organizar uma hierarquia de causas do que uma hierarquia puramente de efeitos, porque a causa é muito mais do que o efeito. Por causa disto, quem manda em outros, os quais têm sob seu poder subordinados, está numa posição muito mais nobre do que quem exerce o poder diretamente sobre indivíduos sem subordinados (...).

Outro exemplo: numa faculdade, o bonito é a autonomia de cada professor. Imaginem, numa faculdade, em que o diretor mandasse no ensino de todos os professores, e todos eles repetissem um certo ensino dado pelo diretor. Aquilo arrasaria a faculdade, porque a hierarquia de causa e efeitos autônomos é que constitui a beleza daquilo. Ora, isto é feudal.

Teríamos aí a explicação da hierarquia angélica e da grandeza de Deus.

Explica-se porque Deus não faz tudo diretamente, primeiro ponto;

Segundo ponto: porque Deus tem tantos executores;

Terceiro ponto: porque esses executores estão dispostos em determinada hierarquia.

 

A inteligência na ordem natural, e o senso católico na ordem sobrenatural, facultam a seus detentores capacidade de mando

Passamos aqui para uma parte que não constitui propriamente um ponto autônomo, mas uma nota complementar: como é que a preeminência da faculdade cognoscitiva gera poder.

A este respeito quero dar um esclarecimento: eu não quereria – de modo nenhum – fazer aqui uma glorificação da inteligência pela inteligência; não se trata de fazer uma glorificação do homem (...). O que se entende como faculdade cognoscitiva  aqui é, certamente, inteligência. Mas é preciso mostrar que por uma harmonia que existe na alma humana e, sobretudo, existe nos anjos, a maior qualidade da inteligência traz, como repercussão normal, uma maior qualidade de todas as potências da alma. E salvo os casos de doença, o próprio é que quem tem uma grande inteligência tenha também, não digo uma faculdade operativa muito grande, porque isto não é necessário, mas tenha uma grande vontade, e que estas coisas constituam um só todo. Mais ainda. Quando falo de inteligência devo frisar que há dois modos de se entender essa palavra “inteligência”: o modo natural, que é a inteligência como potência natural da alma; e o modo sobrenatural, que é a faculdade cognoscitiva na ordem sobrenatural. Em  tudo aquilo que diz respeito à Igreja, a faculdade cognoscitiva não é tanto a inteligência quanto é o senso católico.

E é propriamente o senso católico que confere o direito de mandar, muito mais do que a inteligência.

Tomemos, por exemplo, uma associação religiosa que luta com problemas delicados. Qual é aquele que tem direito de dirigir supremamente a associação? É aquele que com mais senso católico pode manter a associação dentro da linha de resolução dos problemas. A verdadeira faculdade de mando está ligada a essa faculdade cognoscitiva sobrenatural, que é o senso católico.

Como é que uma coisa se prende a isto?

 

A “capacidade providente” do homem

Há um ponto que Santo Tomás bate muito, e que é tão importante para tantas tomadas de posição nossa, que vale a pena eu dizer alguma coisa sobre ele.

Mostra Santo Tomás que o homem, sendo um reflexo de Deus, tem ele mesmo, no que diz respeito a si, uma espécie de “providência”. Deus é sumamente inteligente e dotado de uma vontade sumamente poderosa. Porque  tem essa grande inteligência e essa grande vontade, acontece que é capaz de inteligir as coisas como devem ser e de fazê-las. E o homem, que é dotado de inteligência e vontade, também é capaz de inteligir e de fazer. De maneira que o homem tem um poder de organizar e de executar, que é uma imagem da Providência de Deus.

O homem tem uma providência própria, que é um prolongamento da Providência de Deus. Quanto mais esse homem tem “capacidade providente”, tanto mais ele se assemelha a Deus. E como o governo do universo é feito pela Providência, mais governam aqueles que mais participam da Providência, que são aqueles que têm mais capacidade de prover, mais inteligência e vontade maior. De maneira que aí se justifica que a maior capacidade gera um verdadeiro direito ao poder.

 

O “ser intermédio” numa escala de seres

Passamos daí para a noção do ser intermédio, que nos conduzirá para a análise da parte final de nossa aula.

O que entendemos por ser intermédio? Estamos aqui não mais tratando dos pontos anteriores, mas analisando no que é harmônica a hierarquia angélica. A hierarquia é composta de graus dos quais cada um deles é intermediário em relação aos dois outros.

Então, o que é um ser intermediário? É um ser que, comparado com um de seus lados, se parece com o outro.

Por exemplo, a água morna, quando é comparada com a água fria, parece quente, e quando comparada com a água quente, parece fria, porque ela está entre o quente e o frio. O cinzento, quando comparado ao branco, parece preto; quando comparado ao preto parece branco. (...).

Esses pontos seriam:

1o) mostrar como a hierarquia angélica condiz com a grandeza de Deus;

2o) mostrar no que consiste a harmonia em si mesma na hierarquia angélica;

3o) mostra o primeiro ponto que Deus reserva para si uma ação direta: criar, conservar, dar a vida sobrenatural.

O próprio de toda graduação bem feita, de  intermediários e extremos, consiste em que, na ordem de execução, o ínfimo dos executores deve descender do primeiro por graus proporcionais. Quando estou em presença de muitos seres que se escalonam, o normal é que o ínfimo esteja ligado ao primeiro por graus, e por graus proporcionais, isto é, que tenham proporção entre si.

Imaginar uma escala com saltos seria mais ou menos como uma escada mal construída. O normal da escada é que seus degraus sejam todos da mesma altura. O que liga o ínfimo ao primeiro é uma escala de intermediários proporcionais entre si. De outro lado, é normal que o degrau que vai do primeiro ao segundo se repita até o fim. É uma espécie de corolário do outro princípio.

Então, analisando a ordem angélica, eu noto que esse princípio de harmonia está posto. Quer dizer, notamos uma grande uniformidade no modo pelo qual umas das coisas descem das outras, e há uma proporção. Quer dizer, assim como os mais altos anjos governam os outros, assim também depois isto se desenvolve até o fim. Temos assim uma hierarquia perfeitamente constituída, uma escala grande que obedece as regras de harmonia intrínseca a cada escala.

Por fim, lembrar aquelas famosas máximas do Pe. Ramière que explicam tão bem aquilo: unidade na variedade, os duplos extremos devem ser ligados entre si por uma verdadeira simetria, etc., etc., e todas as outras regras do Pe. Ramière se prendem perfeitamente a esta hierarquia dos anjos.

 

Conclusão: Deus quer a desigualdade; a desigualdade é boa e bela

O que se deduz daqui?  Deduzem-se duas coisas.

Em primeiro lugar, no que diz respeito à desigualdade, que Deus quer a desigualdade, e que essa desigualdade tem seus mais profundos significados na ordem da Providência.

Em segundo lugar, que essa desigualdade, em si mesma é boa, é bela, e é bela por razões que mostram também a beleza da desigualdade na Igreja, e a beleza da desigualdade na ordem feudal. A ordem feudal e a ordem eclesiástica representam, na terra, uma perfeita semelhança com a desigualdade da ordem angélica.

Então o igualitarismo é um mal, é diabólico

Numa ordem de idéias temos uma pergunta que fica de pé, que é a seguinte: poderíamos acabar dizendo que a desigualdade é um bem em si mesmo? Em si mesmo, é bom que a criação seja desigual? A desigualdade, em si, é um mal? Se isto é verdade, o igualitarismo, em si, é diabólico; se [isto] é falso, o igualitarismo é são.

Santo Tomás analisa esta questão, mas em termos estritamente filosóficos. Deixaria isto para outra aula.

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