Plinio Corrêa de Oliveira

 

A beleza das

desigualdades harmônicas

 

"Conversa com jovens", 05 de setembro de 1974

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a jovens cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto, por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


Colar de pérolas "Gradué" ou "en Chute" [*]

H á muitos anos eu li uma notícia de jornal que me deixou um pouco surpreso porque muitos, muitos anos atrás eu, naturalmente, tinha uma certa inexperiência de algumas coisas, não atinava com algumas coisas. Eu li a história de uma princesa russa que por ocasião da revolução bolchevista conseguiu escapar levando apenas, às escondidas, um magnífico colar, enorme, com magníficas pérolas.

Eram pérolas que se chamam “Chute”, quer dizer, queda, em que as menores atrás eram pequenininhas e depois iam crescendo, crescendo iguais dos dois lados, até chegar a uma pérola central enorme.

O bonito desse tipo de colar é que exatamente é muito difícil fazer uma coleção com pérolas iguais dos dois lados e todas elas tendo cada uma em relação à anterior e à posterior a mesma diferença.

Com pérola falsas, de fábrica, se faz com facilidade; mesmo reconstituição de pérolas japonesas assim não é difícil. Mas pérola verdadeira do Oriente, pegar milhares de parolas para escolher no meio delas as que constituem uma “Chute”, evidentemente é uma coisa muito difícil. Sobretudo se todas as pérolas são da mesma brancura, da mesma claridade, etc. Isso tem um valor extraordinário.

[A notícia] contava que a princesa — ela precisava viver —, foi para a Suíça e tinha esperança de que o regime comunista caísse logo. Naturalmente, era uma princesa nhonhô [**], e esperava que o comunismo caísse logo. Ela então evitava, tanto quanto possível, vender o colar.

Então ela procurou um joalheiro judeu da cidade onde vivia e fazia assim: ia cortando as pérolas de duas em duas. E cada tempo que acabava, por exemplo 15 dias, ela gastava uma pérola. Num mês ela tinha gasto o produto de duas pérolas. Ela vendia duas parolas, sempre para o mesmo joalheiro. E o joalheiro pagava pérola por pérola, e pagava o preço corrente, pérola por pérola.

Mas o joalheiro era muito esperto, muito melhor político do que a princesa. Basta dizer que era judeu e a princesa não era. O resultado: ele sabia que o comunismo não ia cair e compreendeu que o colar inteiro ia parar na mão dele.

Quando a princesa vendeu a última pérola, a pérola grande, ele reconstituiu o colar, foi a um centro joalheiro grande da Suíça e vendeu por uma fábula mais caro do que tinha comprado. Então acusaram-no de chantagem, de roubo.
“Você explorou a inocência, a falta de expediente comercial dessa senhora”.

“Não, não explorei, foi o negócio que nós fizemos com base em política. Ela tinha uma opinião política e organizou a venda de seu colar segundo uma opinião. Eu tinha outra opinião política e organizei a compra na base de minha opinião. Se o comunismo tivesse caído ela teria feito um bom negócio durante muito tempo [e teria] salvo parte importante de seu colar. Como o comunismo não caiu quem fez o bom negócio foi eu”.

Eu fiquei meio intrigado: como é que o conjunto das pérolas pode valer tanto mais do que a soma das pérolas, porque era bem o que estava no caso; somada todas as pérolas não valia a mesma coisa do que as pérolas vendidas como coleção.

É exatamente pela extraordinária raridade de encontrar as pérolas que fizessem essa harmonia. Aqui estava o principal, o melhor, o mais artístico, e o que valia mais dinheiro e era onde o lucro do joalheiro estava. Ele tinha pago pérola por pérola pelo seu verdadeiro valor, [mas] o conjunto valia muito mais do que pérola por pérola. Esta é a beleza.

Uma pérola pequena. A gente, de uma pérola pequena, podia perguntar que pulchrum [***] há em que essa pérola seja uma pérola pequena no colar; que pulchrum há em que essa pérola seja pequena. Não seria mais bonito que ela fosse grande também? Os entendidos acham que esses colares assim como o “Chute”, em queda, são muito mais poéticos do que dos colares em que todas as pedras são iguais e formam aquelas bolonas iguais. É intuitivo que é.

De maneira que nós chegamos até esse paradoxo, um colar com 50 pérolas harmonicamente desiguais é um colar mais bonito do que um colar com 50 pérolas iguais, mesmo com 50 pérolas iguais e maiores. Pode ser que valha mais um de 50 pérolas iguais e maiores, mas como beleza artística o colar com pérolas desiguais tem uma beleza artística maior.

Então qual é a beleza da pérola pequena? A beleza da pérola pequena nesse colar consiste exatamente na desigualdade. Ela faz parte de um todo desigual, harmônico. Nesse todo desigual harmônico, a beleza dela é de ser exatamente tão pequena que ela vá bem depois de uma, e tão grande que ela vá bem depois da outra. E nessa harmonia, nesse traço de união que ela forma entre duas pérolas de tamanho mais violentamente desiguais que está o pulchrum dela. É um pulchrum todo feito de correlações.

*   *   *

A majestosa rosa

Se aplicarmos isso ao universo que Deus criou — São Tomás de Aquino ensina exatamente isso —, e o que os joalheiros, os artistas, pensam  a respeito desses colares de pérolas desiguais, é precisamente o que são Tomás de Aquino ensina a respeito do mundo.

Ele ensina que Deus não poderia ter criado todas as criaturas iguais, porque nenhuma criatura tem a possibilidade de espelhar adequada mente a beleza de Deus. Porque a criatura é limitada é Deus é infinito. E para dar uma idéia da beleza de Deus seria preciso que houvesse criaturas desiguais, cada uma espelhando Deus a seu modo. Mas para serem desiguais, para espelharem, teriam que formar uma hierarquia, porque toda diferença dá em desigualdade. Donde o pulchrum da hierarquia é que pela desigualdade harmônica, — sem saltos, sem desproporções, uma desigualdade proporcionada —, se afirma a beleza de Deus na terra.

*   *   *

A pequena miosótis

T omemos por exemplo o reino das flores. A beleza de Deus não poderia exprimir-se igualmente numa enorme rosa e num pequeno miosótis, porque o miosótis tem um certo encanto por onde a gente olha aquilo e sorri; uma rosa majestosa não provoca o mesmo sorriso. Ora, algo da beleza de Deus, ou por onde Deus é infimamente gracioso não se pode exprimir na rosa, pode se exprimir no miosótis. Era preciso que houvesse a rosa e o miosótis no mundo do vegetal para se ter uma idéia de conjunto de predicados de Deus. Assim podemos falar de todas as outras flores que há. E isto se aplica também aos homens. Os homens devem ser desiguais porque é assim que eles exprimem melhor a Deus. Se os senhores quiserem tomem a mentalidade do homem que terá sido mais inteligente de nosso século, Winston Churchill, e compararem-no com o homem mais bobo de nosso século, — um que fosse, sem culpa própria, quase um débil mental, onde a razão está num estado de lusco-fusco. Entretanto, cada um espelha a Deus a seu modo, inclusive esse que é bobo, no que ele não é bobo espelha a Deus de algum modo que Churchill não exprimia. Ele é um miosótis do reino humano, que exprime a Deus de um modo que Churchill não exprimia.

O resultado é que precisa haver essa desigualdade para se ver a Deus. Qual a beleza do menor? É que junto com o outro dá a beleza de Deus.


NOTAS

[*] Colar "Gradué" ou "en chute": neste tipo de colares a pérola maior, uma pedra preciosa ou o elemento principal, se situa no centro do colar. As demais contas vão decrescendo pouco a pouco até o fêcho.

[**] Nhonhô” — Antiga forma de tratamento dos escravos para com os senhores ou dos serviçais para com as crianças do sexo masculino. Por analogia se usa o termo nos ambientes internos da família de almas de Plinio Corrêa de Oliveira para designar pessoas caprichosas, preguiçosas, acostumadas a terem seus caprichos atendidos sem maior esforço pessoal.

[***] Pulchrum: Devido a certa banalização da palavra belo em português, o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira muitas vezes lhe preferia o termo latino pulchrum, que significa a mesma coisa, mas carrega outras conotações. Sobre o pulchrum em Santo Tomás, vide Summa Theologia, I, q. 5, a. 4; I, q. 39, a. 8; I-IIae, q. 27, a. 1 ad 3.