Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Diferenças entre as mentalidades calvinista e luterana

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 15 de janeiro de 1972, sábado

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério tradicional da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

Os senhores sabem o que é o plateau de fromage? É um prato que se serve nos restaurantes - aliás muito aprazível - com toda espécie de queijos franceses. Então, vem com queijos tipo Gruyère, Camembère, Brie, Pont-l’Evêque, Chèvre e  uma porção de outras delícias do gênero; cada comensal se serve do que quiser.

O protestantismo é um plateau d’abominations, que tem abominações para todos os gostos e para todos os feitios humanos. De maneira que cada um pode ser tentado com a abominação que lhe é própria.

Os dois principais “queijos” desse plateau de fromage são o luteranismo e o calvinismo.

O luteranismo é essencialmente para gente de espírito não metafísico, não filosófico, gente de espírito terra-terra, que gosta das coisas materiais, que se alegra com elas, não gosta de pensar na morte, nem na razão de ser das coisas. Se tem um leitão assado, come e se regala; se fica doente, toma uma coisa qualquer para depois  mandar trazer outro prato para comer. São pessoas que gostam da vida - para usar a expressão deliciosa italiana - o tipo luterano “è contento d’essere al mondo”, está contente de existir só por existir. “Ah! que gostoso!...” 

Lutero era assim: um homem gorducho, repleto, super comilão, beberrão, que freqüentemente era trazido de padiola para casa bêbado. Ele arranjou para si uma aposentadoria enorme, pregou a heresia durante muito tempo, depois quando  atingiu uma idade de uns cinquenta e poucos anos para sessenta, ele se aposentou.  Toda noite ia para uma taverna onde ele era a grande vedete, conversava com as notabilidades provincianas, com pessoas de outras cidades que vinham falar consigo e tudo terminava em bebedeira, sendo ele conduzido em padiola para casa.

Há um certo gênero de gente, que tem um certo senso filosófico, mas desviado, errado, que dá então para amargurar a respeito da vida.

Vê um leitão assado e em vez de comê-lo, pensa: “Oh! a morte... Como é uma coisa terrível. Um dia estarei eu nessa posição de leitão assado, para os vermes em baixo da terra. No fundo, não sei o que é mais: ser leitão ou ser homem. Porque se o leitão serve de comida para o homem, este serve de alimento para o verme. De maneira que dentro de algum tempo também eu serei comida para o verme... Do que adianta viver?...”

 

Depois olha com raiva para o leitão e diz: “O que adianta comer?!... Esse prazer que terei de comer o leitão e que esse bobo aqui ao lado pensa que é um prazer tão gostoso, esse prazer está imbricado dentro da dor de viver! Acontece para mim uma porção de coisas de que não gosto; eu já amanheço aborrecido diante dos dissabores que vão me acontecer durante o dia, já fico irritado porque não entendo o sentido das coisas que se passam diante de mim...

“Eu, por outro lado, tenho dores, não tenho uma saúde boa, me sinto indisposto... Vejo diante de mim um sujeito bem disposto. Que direito tem ele de estar bem disposto e eu não?! Aliás, como a saúde humana é frágil... Como eu, de um momento para outro, posso ter um distúrbio. Não vale a pena até comer este leitão tentador, porque se eu ficar doente, do que adianta? Eu me revoltarei contra esse estômago imprestável que não digere o leitão!

“Então, é melhor eu não ter nada de prazeres. Eu da vida recuso a alegria, como sendo um pagamento que um Deus meio fraudulento pôs no meio desse “abacaxi” enorme que é a vida. Ele me pôs três, quatro, cinco alegriasinhas efêmeras dentro de um amontoado de situações e de coisas de que eu não gosto... Quer saber de uma coisa? Recuso tudo! Não tem nem alegria, nem nada, eu vou cuidar de levar uma vida calma, bem calculada para ter o menor número possível de aborrecimentos. Portanto que eu obtenha dinheiro para não me faltar nada; faço uma dieta para não ficar doente, ter poucos amigos para não me pedirem o que tenho e em que a minha alegria é a calma; dentro da calma, o tédio; dentro do tédio, a amargura.

“Também não me amolem! Eu não amolo ninguém. Misericórdia, nada! Ela é para os vagabundos e preguiçosos. Eu aqui faço o meu trabalho, ganho minha vida, vivo do que tenho. Essa canção para crianças “Au clair de la lune": "mon ami Pierrot, ouvre-moi ta porte, mon ami Pierrot...” (meu amigo Pierrot, abra sua porta) Não tem nada de amigo Pierrot, não! O sistema é do coração fechado, da mão fechada, da bolsa fechada e da porta fechada. Eu trabalhei, eu ganhei, eu arranjei! Cada um que se arranje! Se não puder se arranjar, que vá às favas, nada de caridade!

“Se quiserem, o governo que cobre um imposto igual para todos e distribua sem que eu tenha nada a ver com eles, por meio de repartições públicas e funcionários e é o máximo. É talvez bom para eles não começarem a bramir e não quererem me tirar o que eu tenho. Porque isto é um imposto que eu pago para a impostura, para este gênero de vagabundos que se chamam os pobres. Ou para esse gênero de imprestáveis que se chamam os doentes. Vá lá para eles. Ou então para os velhos imprevidentes que não fizeram o que eu fiz. De tanto comer leitão, eles ficaram doentes cedo demais, com arterioscleroses e outras coisas cedo demais.

“E outra: não economizaram, gastaram dinheiro em bebedeira. Depois vem querer se pendurar em mim, que fui sóbrio a vida inteira? Como eles vão fazer desordem, pago um imposto e pago para não ouvir falar neles. E nada mais! O resto é minha casa, é minha vida, meu deleite. Meu deleite é a amargura. Estou eu sentado dentro dela. E está acabado!”...

Risos perpassam o auditório, como quem diz mais ou menos o seguinte: “Dr. Plinio, eu não sou inteiramente assim, mas há coisas dessas em mim. Há horas em que me sinto assim. E francamente gostaria que o senhor me provasse que está errado. Porque eu ora sou homem do leitão, ora sou homem contra o leitão”...

Não é o momento de eu fazer a filípica [crítica] contra essas duas atitudes. Deixo os senhores adivinharem contra qual dos dois sou mais severo: se é contra o luterano ou se é contra o calvinista.

Vamos fazer um teste. Levantem o braço, os que acham que eu seja mais contra o luterano.

(Ninguém levantou o braço).

Eu preciso um dia fazer a descrição do luterano, porque do contrário, por contraste, parece quase um elogio. Um dia que me arrumarem uma gravura de Lutero para projetar, eu com prazer o farei. Aí, depois, ponho a pergunta aos senhores.

Será projetado agora um casal calvinista, de uma aldeia calvinista. Chegados à idade do egoísmo máximo, que é a idade da aposentadoria. Os sessenta anos é a idade em que o sujeito fecha as últimas torneiras de generosidade habitualmente. Segundo Napoleão, na idade mudara, fica-se venal. Acrescento eu (não sou Napoleão, não tenho autoridade para acrescentar, mas é minha observação): chega-se a uma certa outra idade, e se fica inexorável, implacável e o calvinismo se completa.

Eu vou projetar as duas figuras e faço um comentário para os senhores.

 

Eu nem sei se devo comentar... Os senhores estão vendo atrás deles uma capelinha calvinista da qual eles estão saindo. Os senhores estão vendo uma ogiva gótica, para “honra da firma”, o resto é uma casinha de madeira como outra qualquer, bem ordinarinha, capelinha mais ordinária que pode haver, sem beleza nenhuma, sem alegria nenhuma.

O homem - Os senhores estão vendo que ele olhando para o leitão, ele pensa na morte. Os senhores olham o que há de desesperado nele, de fixo, de calmo, de estável e sem nenhuma alegria, nenhuma esperança, aborrecido, mas com os problemas dele resolvidos. Não sei se os senhores notam que ele tem uma certa lógica, tem uma certa estabilidade e vai até o fim. Esse tridente dele - que parece com o tridente não sei se quem... - deve ser um instrumento de trabalho rural, para suspender feno provavelmente. Os senhores notem o jeito com que ele o segura: está com uma coisa estável, dir-se-ia quase que isso é um bastão de comando. Ele é inteiramente indiferente, N-A-N-E, em relação à mulher que está atrás, mas completamente!

Observem a boca amarga, as carnes caídas, nenhuma possibilidade de sorriso nem uma possibilidade de gentileza, nem uma possibilidade de misericórdia, nenhuma esperança. É típico de quem não está “contente de estar no mundo”, devorado por problemas metafísicos que resolveu mal. Notem sua roupeta, que a julgar pela mulher, que evidentemente está com um tragezinho dominical, ele deve estar com seu traje dominical. É uma roupa de trabalho mal disfarçada, um pouco limpinha, nem tem colarinho, o resto é macacão. Porque é a adoração do trabalho que tem o calvinista, pois o trabalho produz dinheiro, que produz segurança e evita de aumentar o número já considerável de aborrecimentos que se tem na vida. Aí está ele.

 

Olhem para ela: a cara ao mesmo tempo aflita, desesperada e estável. Ela é ainda mais aflita do que o marido. Meio segura, meio melótica, apóia-se nele. Poder-se-ia dizer que é uma trilogia: ela se apóia nele e ele se apóia no tridente. O tridente é a resultante do equilíbrio dos três. Como ela é a mulher, precisa estar um pouquinho mais arranjada do que o homem. Mas essa espécie de roupinha que ela usa por cima parece quase um avental de trabalho. Sua roupa é assim do tipo de certas seitas protestantes. O modo de pentear o cabelo é de “sister” protestante também. A única coisa que enfeita um pouquinho é um camafeu, desses provavelmente feitos para turistas e que dá um pouquinho de concessão a um pouquinho de enfeite e o resto é sinistro.

Os senhores podem imaginar esse casal, quando sai do culto calvinista, que é sequíssimo também: uma conferência, umas orações, com uns “padres” com uma simples batina preta, qualquer coisa de apenas mais pomposo do que uma igreja progressista. Quando eles voltam para casa: falam pouco, ele já deu o dinheiro, ela já fez a comida, servem-se sem quase conversar, cada um se afunda, ele numa poltrona e ela continua com a mania da limpeza, porque essa gente é atormentada pela mania de limpeza. É limpar a casa e caçar mosquito o dia inteiro. Quando chega a noite, eles tem um lanche frio e dormem tristes. Na manhã seguinte grande desabafo: vão trabalhar. A única coisa que lhes dá alegria é o trabalho. Como o trabalho não é o prazer da vida, todo o resto é triste. Aí está a falta de santidade do calvinismo, a lepra do calvinismo.

 Calvino (1509-1564), por Ticiano

Foi pena que eu não imaginei o meu auditório tão sensível a esse tema, do contrário teria trazido uma fotografia de Calvino porque ilustra perfeitamente isso.

Alguém trouxe da Europa para a minha irmã, maçãs francesas, que normalmente são deliciosas. E ela me mandou algumas. Em vez de eu encontrar a maçã vermelha, saudável, alegre, corada com que eu contava, deparei-me com uma maçã verdolenga. Eu pensei: que maçã esquisita essa que não anuncia nem um pouco o gosto da vida... Se seu conteúdo for o que promete a casca, deve ser uma maçã ácida e rebarbativa. Cortei um pedaço, comi e pensei com meus botões: isso deve ser uma maçã plantada por Calvino...

À noite, quando minha irmã me perguntou pelo telefone se tinha gostado da maçã, eu disse: “Não, é muito ácida”. Ela disse: “Pois olhe, é uma famosa marca de maçã pomme Calvin [maçã Calvino]”. – “Está perfeitamente explicitada: é péssima”.

(Pergunta: Existe alguma relação entre o pragmatismo, a sinarquia e o espírito calvinista?)

Muita. O pragmatista, o sinarquista só luxa para não ficar atrás da pessoa luterana. Ele tem complexo de inferioridade em relação ao aspecto sexual do luteranismo. Mas ele luxa com raiva; se pudesse, ele levava uma vida pobre, lambida, obscura e tristonha. E arrebenta de trabalhar. Por que? Também não se sabe...


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