Plinio Corrêa de Oliveira

 

Catedral de Orvieto:
magnífica síntese entre cor e forma
O gótico colorido

 

 

 

 

Santo do Dia, 23 de janeiro de 1981

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

Catedral de Orvieto (Itália), cuja construção foi iniciada em 1290, tendo sido concluída inteiramente na segunda metade do século XVI

            Convido os senhores a fazerem uma “viagem” ao passado e analisarmos um edifício que há muito tempo eu tinha a vontade de analisar com os senhores.

Quem admira monumentos góticos, se compraz – é o caso unânime nosso – em ver não somente as linhas do edifício, sua altaneria, mas também a pedra com que foram construídos. Em geral granito cinzento, com uma cor portanto meio indefinida, constituindo massas enormes, fortes, como se um chafariz brutal as fizesse jorrar da terra. Assim nós temos as catedrais, os castelos, as torres que emergem do chão, e que impressionam quem olha as coisas da Idade Media.

Algumas vezes ouvi conversas entre pessoas de uma meia cultura, e um gosto que qualificaria de mediano, a respeito da seguinte questão: as catedrais seriam mais bonitas se fossem pintadas? Porque o granito, de si, é como que incolor. Se há uma cor que pareça com a não cor, é o granito. Há uma beleza própria do granito cinzento. É uma maravilha, não há que discutir. Mas poder-se-ia perguntar se numa catedral são cabíveis outras formas de beleza. E, admitindo que o fossem, poder-se-ia perguntar qual das formas de beleza é maior. São coisas todas elas cabíveis.

Mais de uma vez ouvi pessoas fanáticas do purismo gótico, tendo porém  entendido pouco o estilo gótico, afirmarem: "Nunca! Pintar seria uma blasfêmia! Aquilo deve ser de granito! Não pode ser de uma outra coisa, porque perderia completamente sua beleza."

Concordo em que o granito é muito próprio para isso com sua cor, e seria lamentável que uma forma de beleza tal desaparecesse; não haveria lágrimas suficientes para chorar esse desaparecimento. Mas daí a dizer que é a única forma de beleza possível e que constitui uma “blasfêmia” imaginar que o granito possa ser pintado, isso contraria antes de tudo a realidade histórica.

Porque acurados estudos tem demonstrado, em Notre-Dame, em outros monumentos, que as estátuas de outrora eram pintadas. E que foi com a decadência do gosto que o povo tinha pelo gótico, com as chuvas, as tempestades, as neves, etc, aos poucos as tintas foram caindo e não foram renovadas. Mas para várias dessas figuras foi possível até reconstituir um pouco da pintura como seria. Ora, os homens conceberam essas maravilhas  com cores. É um pouco rápido ir dizendo que isso é uma blasfêmia, que esses sonhos e esses hinos de entusiasmo foram concebidos na atmosfera de uma blasfêmia. Quer dizer, não se pode admitir.

Recentemente ainda foi encontrado no subsolo de um Banco de Paris cabeças dos reis que ficavam no pórtico de Notre-Dame, formando uma galeria. Reis do Antigo Testamento, todos eles colocados em fila, um andar — exprimamo-nos assim.

Durante a Revolução Francesa, como eram figuras de reis, os bandidos as decapitaram, e essas cabeças foram jogadas no chão; ficaram os corpos sem cabeça. E uma pessoa piedosa arranjou um jeito de, durante a noite, tomar essas cabeças e enterrar no fundo na terra. Essa pessoa morreu. Essa boa ação, o Anjo da Guarda dela terá alegado, no momento em que foi julgada. E certamente terá tido um peso não pequeno, na avaliação que o Divino Juiz fez de sua vida. Peçamos a Nossa Senhora que essa avaliação tenha sido favorável e que sua alma já repouse em paz.

O fato é que tal pessoa não contou a ninguém e morreu. Anos atrás, fazendo escavações no subsolo desse Banco, notaram uma escultura. Mandaram mobilizar um departamento de belas artes ou coisa que o dera, na França, foram imediatamente lá e encontraram esse tesouro inigualável: as cabeças de todos os reis da catedral.

Então se deu esse fato maravilhoso: foram tiradas de dentro para a luz do sol e recolocadas sobre as estátuas. Onde estariam as almas dos que decapitaram? 

Foi feita a análise dessas cabeças, e verificaram-se partes ainda com pinturas. Então, deve-se conceber a coerência com o estilo gótico de edifícios pintados, quer catedrais, quer portanto também Paços municipais, castelos evidentemente na medida em que não eram fortalezas, mas eram residências.

 Vista parcial do hospital de Beaune (França – 1441), construído para abrigar doentes pobres da região 

Em princípio, as almas "éprises", entusiasmadas de síntese, não poderiam deixar de pensar o seguinte: se a forma é tão linda, não haverá um ornato de cor para essa forma? Por que dissociar a forma de tal maneira da cor?

O cinzento é bonito. Primeiro pelo rugoso e pelo batalhador da pedra, não tem dúvida. Mas é bonito também porque o cinzento faz pensar em qualquer cor. E quando se vê uma catedral cinzenta, o subconsciente apresenta, sucessiva e vagamente, várias cores para aquilo. É um dos encantos do cinzento. Como, aliás, eram as antigas fotografias em branco e preto, as quais, debaixo de certo ponto de vista, mais poéticas do que as fotos coloridas, porque a gente pode imaginar um colorido. Portanto não é verdade que na nossa imaginação fique aquela pedra inteiramente incolor. 

 

Auditório São Miguel, à Rua Dr. Martinico Prado, 246, na capital paulista, onde o Prof. Plinio estava proferindo o presente "Santo do Dia", cuja parede principal era revestida de granito 

Aliás, eu estou falando junto ao granito (no Auditório São Miguel, n.d.c.). Está longe de ser um granito que tenha sido alvejado, contra o qual se tenham batido, derrotadas as armas de adversários da Cristandade ou da Igreja. Um granito tão bem posto que eu me lembro que Dr. Adolpho Lindemberg, quando esteve comigo antes da inauguração do Auditório, olhando para este granito, me disse: “está tão bem encaixado e as pedras estão tão bem dispostas que eu vou mandar distribuir vinho aos operários que trabalharam nisso”. E, realmente, estão muito bem encaixadas.

A pedra tem a sua grandeza, o rugoso tem seu esplendor bélico, é verdade. Mas é ou não é verdade que a gente, subconscientemente, imagina sucessivos coloridos nessas pedras?

Muralhas da cidade de Ávila (Espanha)

Sempre pensei: é lindo a gente ver numa muralha cinzenta, de repente, acende-se uma luz dentro da igreja e aparece um vitral. É uma beleza, aquelas pedras preciosas dentro do granito, que beleza. Mas o natural da pedra preciosa não é estar encastoada na pedra bruta, mas numa jóia, num anel, num “pendentif”, em brincos, em colares, em diademas, em coroas. Isso é o natural.

Não haveria algo assim para os edifícios góticos?

Acho neste sentido altamente ilustrativa, uma das mais belas catedrais góticas existentes na Itália, toda colorida, e colorida pelos que a construíram, com a fachada em mosaico. Segundo o meu modo de entender, é um dos mais belos edifícios do mundo: é a Catedral de Orvieto. 

(inicia-se a projeção de slides)

 

Fiquei um pouco em silêncio, porque quis que o impacto da primeira vista fosse bem notado pelos senhores.

Os senhores estão vendo uma feeria de cores sobre uma fachada estritamente gótica. Não há aí o que não seja gótico e inclusive a rosácea. Esta última fica dentro de um quadrado, o qual quadrado não se diria bem exatamente gótico, tem qualquer coisa de clássico, mas que se encaixa tão perfeitamente ali dentro, que não se tem o que dizer.

A cor escolhida é a mais esplendorosa das cores: ouro. Toda a fachada é sobre fundo dourado. É um mosaico de tal qualidade, tão rutilante, tão magnífico, que tendo esta igreja vários séculos, ela dá a impressão de terminada ontem. E, neste sentido, ela não apresenta a poesia do granito, que fica mais belo à medida que envelhece. O velho granito que desafia a todos os tempos e todas as intempéries, tem sua beleza. Aqui, dir-se-ia que foi feito no ano passado e que só conheceu verões ou primaveras.

A igreja está novinha como se fosse de ontem. E os invernos e as tragédias da História escorregaram sobre ela sem a atingir em nada. Ela está magnífica, esplendorosa, sem alteração.

O granito fala da eternidade na medida em que ele resiste ao tempo e afirma a sua existência contra este. Passa o tempo, o granito fica. O mosaico de Orvieto se reporta à eternidade no sentido de que ignora o tempo. Não lhe resiste porque não tem nada que ver com ele... que não a atinge.  O mosaico está lá, a Catedral está lá.

 

Para que a impressão cromática ainda seja mais viva, os senhores vêem vários grupos nesses mosaicos. A começar em cima, os senhores vêem uma cena que é da coroação de Nossa Senhora. Depois os senhores vêem dos dois lados, à direita e à esquerda da rosácea, outro grupo.

Nós passamos para o pavimento térreo da catedral, no alto das portas, quer dentro das ogivas, quer fora das ogivas, grupos humanos também. Depois, no tímpano da porta central, mais figuras coloridas também. Os senhores estão vendo que o colorido está por toda parte. 

(Aparte: É toda a vida de Nossa Senhora)

É toda a vida de Nossa Senhora? Que magnífico! Então se compreende bem que em cima esteja a Coroação.

Essas cores não são espalhafatosas, mas todas muito vivas. Quem fez isto não tinha o gosto das cores pálidas, discretas, as quais tem sua beleza, que se perdem umas nas outras, que se confundem ou se fundem umas com as outras, o que tem a sua beleza. Mas não é a beleza desta fachada. Aqui está a beleza das cores definidas, que têm individualidade própria, que têm vida própria. E cada conjunto é uma sinfonia de cor especial. Os senhores vejam a beleza que representa essa distribuição colorida sobre a fachada, com as linhas góticas, tantas vezes elogiadas entre nós.

Aqui os senhores têm um exemplo concreto do que seria uma síntese entre a forma e a cor.

Velha disputa entre os artistas: o que apresenta mais esplendor, a forma ou a cor? Num quadro, o que é mais notável: o desenho ou o colorido?

Os senhores conhecem as duas grandes escolas italianas divergentes a esse respeito: a florentina, toda feita de desenho, pobre intencionalmente em colorido, para que o desenho ressalte. E a escola veneziana, magnífica em coloridos, e tendo apenas o desenho necessário para dar pretexto para as cores se mostrarem. Antes dessas duas escolas se diferenciarem e polemizarem, os senhores têm uma magnífica síntese das duas na catedral de Orvieto. 

 

Aqui os senhores  tem mais uma vez o portal. Os senhores notam aí a quantidade de trabalho em pedra, trabalho de cantaria nas coluninhas, na rosácea, no quadrângulo, nos florões, nos rebordos de todas as linhas de cima. Isto foi construído por gente que trabalhava sem pressa de acabar, sem pressa de ser aplaudida, e que morria em paz diante da igreja inacabada, certa de que as gerações futuras haveriam de completá-la.

Eu não vejo que seja possível fazer qualquer crítica, reserva, ter qualquer desacordo em relação a esta igreja. Pode-se preferir outras — depende do gosto individual — mas impugnar esta igreja em algo, eu não vejo que seja possível.

Há mais slides? 

 

Vejam os senhores que coisa admirável: vista de lado, os senhores percebem essa beleza sob um outro ângulo, um pouco menos vistoso. A luz dos mosaicos não incide tão diretamente sobre quem está olhando. Mas por causa disso, com a forma de beleza que não é a evidência viçosa do belo, mas é a discrição nobre do belo, que não se proclama, mas se insinua. E que tem o encanto do que é insinuado, enquanto o outro tem o esplendor do que é proclamado.

Não sei se haverá outras fotografias diferentes, mas nestas e em outras que tenho visto da Catedral de Orvieto — Orvieto que eu quis tanto e tanto visitar na Europa quando eu lá estive, mas não tive tempo, não me foi possível  — sempre me chamou a atenção uma coisa: a fotografia ignora o local onde a chapa foi batida, e procura isolar a catedral completamente do contexto. E eu compreendo, porque ela é tal que ao seu redor ou se constrói gótico ou sai vergonha...

A Catedral faz em torno de si um prodigioso gesto "N-A-N-E", de indiferença,  como quem diz: "Vós me ignorais? Mais ainda eu vos ignoro. Se não me quereis olhar e não quereis reconhecer a minha beleza, ela aqui está de pé para vos julgar. Um dia prestareis conta ao Juiz Eterno deste estado de alma que está no fundo de vós. Quanto a mim, minha conversa é com o sol, com a lua e com Deus!" 


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