Plinio Corrêa de Oliveira

 

EM DEFESA DA

AÇÃO CATÓLICA

O presente texto é transcrição da edição fac-símile comemorativa dos quarenta anos de lançamento do livro, editada em Março de 1983 pela  Artpress Papéis e Artes Gráficas Ltda - Rua Garibali, 404 - São Paulo - SP - Brasil

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“Catolicismo”, n° 150, de junho de 1963  

Para evitar as prescrições da História

Eloi de Magalhães Taveiro

 

Cada fase da existência nos oferece seus prazeres. Em meus tempos de estudante, sentia um particular interesse em fazer a pescaria de livros raros, nas numerosas casas – então prosaicamente chamadas “sebo” – que os vendiam em segunda mão.

Ao longo dessas pesquisas não raro me caíam nas mãos volumes dedicados pelo autor, a este ou àquele amigo, com expressões que traduziam, ora uma amizade terna ou bombástica, ora um sentimento de mal disfarçada superioridade, ora por fim o desejo de obter para a obra recém-nascida as boas graças de algum intelectual ilustre ou de algum crítico perigoso. Nunca fui propenso a colecionar autógrafos. Por isto, repunha na estante o volume, quando não me interessava. Mas me perguntava a mim mesmo: o que dirá o autor, se cá vier comprar livros, e vir que seu amigo vendeu assim por uns magros cruzeiros (mil-réis, dizia-se então) não só a obra como a dedicatória, não só a dedicatória como, em última análise, também a amizade?

E daí me vinha, com um sobressalto, outra idéia. Se eu algum dia escrever um livro, e encontrar dele algum exemplar com dedicatória, à venda em algum “sebo”, o que farei? Parecia-me que a melhor solução para evitar tão humilhante eventualidade, era a que vim a adotar: não publicar livro algum…

Recordava-me destas apreensões da juventude, ao coordenar idéias para o presente artigo. E dizia de mim para mim que este é um dissabor de que o autor de “Em Defesa da Ação Católica” está bem livre.

Com efeito, esgotada de há muito a edição de sua obra, grande para aqueles tempos (2.500 exemplares), e não tendo como atender à contínua solicitação de pessoas interessadas, chegou o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira a organizar por meio de alguns amigos, entre os quais eu, uma pesquisa em regra nos “sebos” de São Paulo e de outras cidades, na esperança de readquirir alguns volumes. A pesquisa se revelou inteiramente infrutífera. O Autor foi então ao extremo de pedir através de anúncio na imprensa que alguém lhe fizesse a gentileza de vender de segunda mão um exemplar de “Em Defesa da Ação Católica”, e não foi atendido.

De sorte que nada é mais improvável do que deparar ele em algum “sebo” com um volume de sua obra.  

Estrondo de bomba ou música harmoniosa?

“Habent sua fata libelli”. Este não é o único aspecto curioso da história deste livro singular.

Assim, por exemplo, se é bem verdade que “Em Defesa da Ação Católica” teve na época uma larga repercussão, é certo que não atingiu o que se chama propriamente grande público, mas ficou circunscrito a este ambiente especial, vasto mas ao mesmo tempo um tanto fechado, que se costuma chamar “meios católicos”. E sei que, paradoxalmente, nem o próprio Autor quis que sua obra transpusesse estes limites, por achar que, tratando de problemas específicos do movimento católico, só a esses meios podia interessar e fazer bem.

De outro lado, se é exato que ela repercutiu enormemente nesses meios, foi com o estrondo de uma bomba, e não com a suavidade de uma música. Bomba saudada por muitos como disparo oportuno e certeiro, contra ingentes perigos que se divisavam no horizonte, e recebida por outros como causa de dissenção e de escândalo, afirmação deplorável de um espírito estreito e retrógrado, apegado a doutrinas erradas e propenso a imaginar problemas inexistentes.

Estou a ver a vinte anos de distância as reações favoráveis e contrárias. Lembro-me ainda do entusiasmo com que li no “Legionário” as cartas de apoio de D. Helvecio Gomes de Oliveira, Arcebispo de Mariana, D. Atico Eusebio da Rocha, Arcebispo de Curitiba, D. João Becker, Arcebispo de Porto Alegre, D. Joaquim Domingues de Oliveira, Arcebispo de Florianópolis, D. Antonio Augusto de Assis, Arcebispo-Bispo de Jatubicabal, D. Otaviano Pereira de Albuquerque, Arcebispo-Bispo de Campos, D. Alberto José Gonçalves, Arcebispo-Bispo de Ribeirão Preto, D. José Maurício da Rocha, Bispo de Bragança, D. Henrique Cesar Fernandes Mourão, Bispo de Cafelândia, D. Antonio dos Santos, Bispo de Assis, D. Frei Luis de Santana, Bispo de Botucatu, D. Manuel da Silveira D’Elboux, Auxiliar de Ribeirão Preto (hoje Arcebispo de Curitiba), D. Ernesto de Paula, Bispo de Jacarezinho (hoje Bispo titular de Gerocesarea), D. Otavio Chagas de Miranda, Bispo de Pouso Alegre, D. frei Daniel Hostin, Bispo de Lajes, D. Juvencio de Brito, Bispo de Caetité, D. Francisco de Assis Pires, Bispo de Crato, D. Florencio Sisinio Vieira, Bispo de Amargosa, D. Severino Vieira, Bispo do Piauí, D. Frei Germano Vega Campón, Bispo Prelado de Jataí. Mais do que tudo, lembro-me da profunda impressão que causou em mim, como em todo o meio católico, a leitura do prefácio honroso com que D. Bento Aloisi Masella, esse Prelado que o Brasil venerava como o Núncio perfeito, e que por isto mesmo o Papa Pio XII quis revestir dos esplendores da Púrpura Romana, apresentou o livro a nosso público. Lembro-me também da reação contrária, sobre a qual é cedo – mesmo passados vinte anos – para falar longamente. Nao é, aliás, sem sacrifício que serei breve a respeito, pois teria especial prazer em deixar discorrer minha memória, completando suas possíveis lacunas com peças hauridas no rico e bem organizado arquivo do Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. Sonhos, entretanto, sobre os quais é supérfluo divagar, pois sei que nas atuais circunstâncias o autor de “Em Defesa da Ação Católica” não me daria a documentação tão desejada…

Seja como for, retomando o fio de minha narração, se olho para o passado lá está essa reação contrária, a que a objetividade histórica não pode fechar os olhos, e sobre ela uma palavra rápida não é demais.

 

As três fases de uma reação

Essa reação teve três etapas. Ela fracassou na primeira, e novamente fracassou na segunda. Porém alcançou pleno êxito na terceira.

A primeira etapa foi a das ameaças. Lembro-me ainda que, de volta de uma viagem a Minas, meu então jovem amigo José de Azeredo Santos – que seria depois tão conhecido como polemista de indomável coerência – nos informou bem humorado e divertido: “Estive com Frei BC, que me disse estar constituída uma comissão de teólogos para refutar o livro do Plinio. Ele se arrependerá – diz Frei BC – de o ter publicado”. Descansávamos tranqüilos, os que sustentávamos os princípios de “Em Defesa da Ação Católica”, pois sabíamos a obra analisada e esquadrinhada previamente por dois teólogos já célebres no Brasil, Mons. Mayer e Pe. Sigaud. Resolvemos esperar a refutação. Até maio de 1963 ela não veio. Também penso, escrevendo estas linhas, em um cartão de uma muito ilustre e respeitável personalidade. Diz o missivista que agradecia ao Dr. Plinio Corrêa de Oliveira o oferecimento do livro, e que em breve denunciaria de público os erros nele contidos. Vinte anos são passados… e nada se publicou. Assim, quanta coisa haveria que contar!

Fracassadas as ameaças de refutação, veio a fase do zunzum. O livro continha erros. Até numerosos erros. Não se dizia quais eram. Mas que os havia, havia. Já não se falava de refutação. Era somente a reafirmação insistente da mesma acusação imprecisa: há erros, há erros, há erros, martelou-se por todo o Brasil. A esta forma de ataque não faltava certa eloqüência: Napoleão dizia que a melhor figura de retórica é a repetição. Sem embargo disto, “Em Defesa da Ação Católica” continuava a se escoar rapidamente nas livrarias.

Por fim, o livro se esgotou. Ao longo deste tempo, realizara ele sua difícil missão, sobre a qual falarei adiante. Uma reedição não parecia, pois, oportuna. O zunzum também foi esmorecendo. Dir-se-ia que pela própria ordem natural das coisas o silêncio ia baixando sobre todo o “caso”. Era a terceira etapa que começava, plácida, envolvente, dominadora.

Mas em 1949, o silêncio se interrompeu inopinadamente. Do alto do Vaticano, uma voz se fez ouvir, que haveria de dissipar todas as dúvidas, e colocar numa situação de invulnerabilidade o livro, quer em relação à sua doutrina, quer à sua oportunidade. Foi a carta de louvor de Mons. Montini, então Substituto da Secretaria de Estado, escrita ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em nome do inesquecível Pio XII.

Manda a verdade que se diga haver continuado, apesar disto, o silêncio acerca do livro. Que eu saiba, é a única obra brasileira inteiramente e especificamente escrita sobre AC, que haja sido objeto de uma carta de louvor da parte do Vigário de Cristo. Entretanto, não me consta que costume ele ser citado por trabalhos e nas bibliografias que de quando em vez aparecem entre nós sobre Ação Católica.

E o silêncio continuou assim. Silêncio que só para evitar as prescrições com que a História pune as inércias excessivas, hoje só por alguns instantes se interrompe nas páginas de “Catolicismo”. Mas que depois disto continuará.  

O singular destino de um livro

Em suma, é tudo isto que explica que “Em Defesa da Ação Católica” não seja encontrável nos “sebos”. É que uns o guardam em suas estantes com carinho, como se contivesse precioso elixir. Outros o trancam na gaveta com pânico, como se fôra um frasco de arsênico. E assim a história desse livro teve um desfecho que nem eu, que assisti entusiasmado o seu lançamento, nem os seus apologistas ou os seus detratores, poderíamos imaginar naqueles remotos idos de junho de 1943.  

Movimento litúrgico, Ação Católica, ação social

A partir de 1935 aproximadamente, começaram a chegar ao Brasil as lufadas cheias de vitalidade, dos grandes movimentos que caracterizavam o surto religioso da Europa do primeiro pós-guerra. Era, antes de tudo,  o movimento litúrgico de que o grande D. Guéranger lançara já no século passado as bases em Solesmes[1], abrindo os olhos dos fiéis para o valor sobrenatural, a riqueza doutrinária e a incomparável beleza da Sagrada Liturgia. Esse movimento de renovação espiritual alcançava a plenitude de sua irradiação, precisamente no período 1918-1939, ao mesmo tempo que um grande surto apostólico, conduzido pela mão firme de Pio XI, se generalizava pelo orbe católico. A Ação Católica, que como organização de apostolado remontava de algum modo aos dias gloriosos de Pio IX, assumira sob Pio XI a plenitude de seus traços característicos. Era ela a mobilização de todos os leigos para, formando um só exército de elementos variegados, levar a cabo uma obra também essencialmente una e multiforme: a infusão total do espírito de Jesus Cristo na sociedade tão atormentada daqueles dias. A par deste esforço, e como harmônico complemento dele, se delineava uma admirável floração de obras de caráter social, inspiradas principalmente nas Encíclicas “Rerum Novarum” e “Quadragesimo Anno” e visando especificamente a apresentar e pôr em prática uma solução cristã para a questão social. Era a ação social.

Como é natural, estes três grandes elementos, que mutuamente se completavam, por isto mesmo se entrelaçavam. E para eles acorria, cheia de entusiasmo, a flor da mocidade católica, primeiro na Europa, e depois, por via de repercussão, também no Brasil.  

Nuvens no horizonte

Sempre que a Providência suscita um movimento bom, o espírito das trevas procura esgueirar-se nele, para o deturpar. Assim foi desde os primórdios da Igreja, quando as heresias eclodiam nas catacumbas, procurando arrastar para o mal o rebanho de Jesus Cristo já dizimado pelas perseguições. Assim vem sendo em nossos dias. E assim tentará o demonio agir até o fim dos tempos.

O espírito de nosso século, nascido da Revolução Francesa, infiltrou-se desse modo em certas fileiras do movimento litúrgico, da Ação Católica e da ação social. E procurou, sob pretexto de os hipervalorizar, apresentar deles uma feição deturpada segundo as máximas da Revolução.  

Liberdade, igualdade, fraternidade

Seria por demais longo referir aqui tudo quanto há nas páginas de “Em Defesa da Ação Católica” a respeito dessas infiltrações e dos numerosos aspectos que apresentavam. Mas uma enumeração esquemática dos traços principais do fenômeno já é de per si bastante ilustrativa.

O espírito da Revolução Francesa foi essencialmente laico e naturalista. O lema segundo o qual a Revolução intentou de reformar a sociedade era “liberdade, igualdade e fraternidade”. A influência desse espírito ou desse lema se encontra em cada um dos múltiplos erros refutados no livro de Plinio Corrêa de Oliveira.

* Igualitarismo -  Como se sabe, Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Igreja como uma sociedade hierárquica, na qual, segundo o ensinamento de São Pio X, a uns cabe ensinar, governar e santificar, e a outros ser governados, ensinados e santificados (cfr. Encíclica “Vehementer”, de 11-2-1906).

Como é natural, essa distinção da Igreja em duas classes não pode ser do agrado do ambiente moderno modelado pela Revolução. Não é de surpreender, pois, que em matéria de Ação católica tenha aparecido uma teoria que, em última análise, tendia a nivelar o Clero e os fiéis. Pio XI definira a Ação Católica como a participação dos leigos no apostolado hierárquico da Igreja. Como quem participa tem parte, argumentava-se, os leigos inscritos na AC têm parte da missão e da tarefa da Hierarquia. Ao contrário são, pois, hierarcas em miniatura. Não são mais meros súditos da Hierarquia, mas quase diríamos uma franja desta.

* Liberalismo - Nas fileiras da Ação Católica, ao mesmo passo que entrou um legítimo interesse e zelo pela Sagrada Liturgia, se esgueiraram também vários exageros do chamado “liturgicismo”.

A profissão desses erros – como é inerente ao espírito liberal – importava numa franca independência de crítica e de conduta face à doutrina ensinada pela Santa Sé e às práticas por ela aprovadadas, elogiadas e incentivadas.

Assim, a subestima da piedade privada e um certo exclusivismo em favor dos atos litúrgicos, uma atitude reticente para com a devoção a Nossa Senhora e aos Santos, como incompatíveis com uma formação “cristocêntrica”, certo menosprezo para com o Rosário, a Via Sacra, os Exercícios Espirituais de Santo Inácio, como práticas obsoletas, tudo isto constituía mostras de uma singular independência em relação aos numerosos documentos pontifícios para os quais não há palavras que bastem para recomendar tais devoções e práticas.

Talvez mais frisante ainda se mostrava a influência do liberalismo na opinião, sustentada em certos círculos, de que a Ação Católica não devia prescrever a seus membros regras especiais sobre a modéstia nos trajes, nem devia ter um regulamento impondo-lhes deveres especiais e penas para o caso de serem transgredidos tais deveres.

A mesma influência se patenteava ainda na idéia existente nos mesmos círculos, de que não era necessário o rigor na seleção dos membros da Ação Católica, embora paradoxalmente se sustentasse ser esta uma organização de elite.

* Fraternidade - A fraternidade revolucionária importa na negação de tudo quanto legitimamente separa ou distingue os homens: as fronteiras entre os povos, como entre as religiões ou as correntes filosóficas, políticas, etc.

No irmão separado, o verdadeiro católico vê tanto o irmão quanto a separação. Pelo contrário, o católico influenciado pela fraternidade à 1789 vê o irmão e se recusa a ver a separação.

Daí, em certos ambientes da Ação Católica, aparecer uma série de atitudes e de tendências interconfessionais. Não se tratava tão somente de promover um esclarecimento cortês com os cristãos separados, nos casos em que a prudência e o zelo o recomendam, mas de entrar em uma política de silêncios e até de concessões que em última análise, em lugar de esclarecer e converter, só servia para confundir e desedificar.

No terreno específico da AC, a conseqüência destes princípios eram a chamada “tática do terreno comum” e as demasias do apostolado dito “de infiltração”, que o livro de Plinio Corrêa de Oliveira detidamente analisa e refuta.

No terreno da ação social, tão importante, e no qual o apostolado clara e especificamente católico vinha alcançando tantos frutos, a fraternidade de sabor revolucionário influenciava muitos espíritos a favor dos sindicatos neutros. É, este, outro ponto de que o livro detidamente se ocupa.  

Repercussões das doutrinas inovadoras

Com quantas saudades olho, a esta altura do artigo, para os tempos plácidos e gloriosos, ativos e, dentro de sua nobre serenidade, também combativos, que antecederam aos dolorosos choques que sumariamente vou historiando! Em uma unidade total de pensamento e de ação, agrupava-se, no Rio em torno do vulto transbordante de vida, de atividade e de alegria do Cardeal Leme, em São Paulo em torno da figura hierática e veneranda de D.  Duarte Leopoldo e Silva, um escol de Sacerdotes, e de leigos de ambos os sexos, dos quais alguns já eram, e outros de futuro viriam a ser, a vários títulos, elementos exponenciais da vida brasileira. A cooperação era total. O entendimento mútuo era profundo. O célebre Padre Garrigou-Lagrange, que passou pelo Brasil por volta de 1937, me disse que era esta a nota que mais o impressionara na vida religiosa do País.

Mas, ao mesmo tempo que da Europa tanta coisa boa nos vinha, os germes do espírito de 1789, incubados em certos livros sobre a Sagrada Liturgia, a Ação católica e a ação social, vinham também. Surdamente, uma fermentação se foi generalizando. Como acabamos de lembrar, práticas de piedade excelentes passaram a ser criticadas como obsoletas. A comunhão “extra Missam” era apontada como gravemente incorreta do ponto de vista doutrinário. Um manual de piedade célebre, o Goffiné, cumulado de bênçãos e aprovações eclesiásticas, era indicado como o próprio símbolo de uma era eivada de sentimentalismo, de individualismo e de ignorância teológica, a qual era mister superar. As Congregações Marianas e outras associações eram apontadas como formas de organização e atividade apostólica anacrônicas e fadadas a um rápido perecimento, em benefício da AC, única a dever sobreviver.

Como é natural, onde estas idéias se espalhavam, formava-se certa reação. Na realidade, porém, as reações o mais das vezes eram esporádicas, momentâneas. O espírito do brasileiro, tão confiante, tão pacífico, tão propenso a aceitar o que vem de certas nações da Europa, como a França, a Alemanha, a Bélgica, é infenso ao tipo de reação que as circunstâncias exigiam. Era preciso fazer um rol dos erros, descobrir o nexo que entre todos eles existia, enunciar em seguida o substrato ideológico comum a todos, refutar cada erro de modo a lhe descer até as raízes envenenadas, e assim precatar os espíritos contra o insidioso ataque.

Sabia-se nos ambientes bem informados que o Núncio Apostólico, D. Bento Aloisi Masella, que vários Prelados se preocupavam com a situação, porém que, em sua sabedoria, não julgavam chegado o momento de uma intervenção oficial da Autoridade. Eu soube então que o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira pensou de si para si que o melhor seria que um leigo assumisse o papel de para-raio. Que por um livro consagrado à exposição concatenada e à refutação daqueles erros, se causasse um estrondo capaz de alertar as almas bem intencionadas mas por demais desavisadas, de sorte que a expansão do mal ficasse, se não tolhida, pelo menos circunscrita. Pois não seria possível evitar que o erro tragasse aqueles cujo espírito já estava profundamente preparado para lhe dar adesão.

E assim, honrado com um prefácio do Embaixador do Papa, e com o “imprimatur” dado “ex commissione” do Arcebispo D. José Gaspar, o livro saiu…  

De um estouro e do que se lhe seguiu

Do estouro que produziu, já falei. Pobre “Em Defesa da Ação Católica”: dele tudo se disse. Ora se afirmou que era obra de sapateiro trabalhando fora de seu mister: livro de leigo, que supunha conhecimentos de Teologia e Direito Canônico. Ora, para melhor combater o livro, se afirmava que um leigo jamais teria conseguido escrever tal trabalho. E então se lhe fazia a honra de lhe atribuir como autor, ora Mons. Mayer, ora o Pe. Sigaud. Honra muito grande, com efeito, mas que destoava da verdade histórica, pois que o livro fôra ditado pelo Dr. Plinio Corrêa de Oliveira ao longo de um mês de trabalho, em Santos, ao então jovem Secretário Arquidiocesano da JEC de São Paulo, José Carlos Castilho de Andrade – hoje grande esteio das atividades redatoriais de “Catolicismo” – que amavelmente se dispusera a tal.

Foi obtido o resultado a que a obra visava? Graças a Deus, sim. E isto não só pela mobilização em torno dos princípios de “Em Defesa da Ação Católica” de uma pleiade brilhante e prestigiosa de bons batalhadores, como também – e talvez principalmente – pela atitude de um enorme número de leitores… que não gostaram do livro. Acharam-no por demais categórico. Consideraram que era inoportuno. Não dissentiam de suas doutrinas mas reputavam inexistente ou insignificante o mal contra o qual fôra escrito. Mas enfim despertaram, e souberam manter uma atitude de prudência e alheiamento em relação aos inovadores e às inovações. A partir deste momento, o erro continuou a caminhar, mas desmascarado, e conquistando apenas quem simpatizasse com sua verdadeira face.

Este resultado obtido, o autor de “Em Defesa da Ação Católica” se recolheu, como é notório, ao silêncio, limitando-se a registrar nas páginas do “Legionário” os testemunhos de apoio, e a receber com paciente mutismo as agressões.

Passemos sobre a triste história destas últimas. Ela não foi curta. Mas foi pontilhada de grandes motivos de alegria para o Autor.

Com efeito, desses erros, dos quais se dizia que sua difusão era insignificante, ou até que haviam sido forjados pela imaginação do Presidente da Junta Arquidiocesana da Ação Católica de São Paulo, uma série de documentos pontifícios começou a se ocupar deles. Como se o Papa Pio XII tivesse por estranha e inexplicável coincidência forjado como existentes em vários países os mesmíssimos erros que o Dr. Plinio Corrêa de Oliveira anteriormente imaginara existirem no Brasil.

“Em Defesa da Ação Católica” foi publicado em junho de 1943. A Encíclica “Mystici Corporis” apareceu em 29 do mesmo mês. A Encíclica “Mediator Dei” é de 1947. A Constituição Apostólica “Bis Saeculari Die” foi publicada em 1948. No seu conjunto, esses três documentos enunciavam, refutavam e condenavam os principais erros sobre que versava o livro.

Também desses desvios se ocupou um grande literato: Antero de Figueiredo escreveu sobre idênticos erros existentes em sua Pátria o belo romance “Pessoas de Bem”.

Mas, dir-se-á, quem sabe se estes erros existentes na Europa, não existiam no Brasil. Que erro, de alguma importância, e de qualquer natureza, existiu na Europa sem desde logo passar para o Brasil? De qualquer forma, a Carta da Sagrada Congregação dos Seminários ao Venerando Episcopado Brasileiro, datada de 7 de março de 1950, deixa ver da parte da Santa Sé uma especial preocupação a respeito de semelhantes erros em nosso País. E, por fim, se “Em Defesa da Ação Católica” não tivesse por base senão uma série de invenções, como se explicaria que, na carta escrita ao Autor, em nome do Papa Pio XII, pelo então Substituto da Secretaria de Estado, Mons. Montini, se afirmasse que da difusão do livro muito bem se poderia augurar?

Mas a existência desses erros entre nós, pode ser confirmada por testemunhos eclesiásticos brasileiros de grande importância.

Antes de tudo, é de justiça lembrar o nome saudoso de Mons. Sales Brasil, o vitorioso contendor baiano de Monteiro Lobato. em seu livro “Os Grandes Louvores”, publicado no ano de 1943, com os olhos evidentemente postos na realidade nacional, ocupa-se ele de alguns problemas tratados por “Em Defesa da Ação Católica”. Ao lado deste nome, convém pôr outro, de fama internacional: o do grande teólogo Pe. Teixeira-Leite Penido, que em seu livro “O Corpo Místico”, de 1944, também menciona e refuta alguns dos erros apontados por “Em Defesa da Ação Católica”.

Mais ainda. Valor ímpar nesta matéria têm os documentos procedentes de venerandas figuras do Episcopado Nacional. A Província Eclesiástica de São Paulo dirigiu ao Clero, em agosto de 1942, uma circular alertando-o contra os excessos do liturgicismo. O saudoso Mons. Rosalvo Costa Rego, Vigário Capitular do Rio de Janeiro na vacância de D. Sebastião Leme, publicou em maio de 1943 uma Instrução sobre erros análogos. Anos depois, em 1953, uma voz potente como aquelas de que fala o Apocalipse, se ergueu nas fileiras da Hierarquia. Foi a de D. Antonio de Castro Mayer, que em sua memorável Carta Pastoral sobre Problemas do Apostolado Moderno, deu contra esses erros, sempre vivos, um golpe que ficará na História. Vieram de todo o País as manifestações de apoio ao ilustre Prelado, numerosas e expressivas, enfeixadas pela Editora Boa Imprensa em um precioso opúsculo intitulado “Repercussões”. Ao mesmo tempo, seu trabalho ia transpondo as fronteiras do Brasil. Editado na Espanha, na França, na Itália e na Argentina, comentado elogiosamente por folhas católicas de quase todos os quadrantes, era seu próprio sucesso a prova de que era autêntico e largamente difundido o perigo que ele visava evitar.

Em suma, a existência e a gravidade dos problemas abordados por “Em Defesa da Ação Católica” se tornaram claras como água.  

O leão com três patas

E o resultado do livro, qual foi? Eliminou ele os erros contra os quais fôra escrito?

Talvez não seja este o momento adequado para responder com toda a precisão a esta pergunta. Para não a deixar, entretanto, pelo menos sem uma tal ou qual resposta, e para não lembrar senão o que é notório, dolorosamente notório, posso referir – para documentar a crescente influência dos princípios da Revolução Francesa até em católicos que se proclamam tais – a tendência de várias figuras dos nossos meios católicos para o socialismo, e até a simpatia de algumas em relação ao comunismo. É o que deploram hoje, não só os católicos que pensam como esta folha, mas outros bem e bem distantes, de vários pontos de vista, das posições de “Catolicismo”.

Quanto ao liberalismo moral, ainda para não responder senão muito por alto, creio que bastaria mencionar a aceitação e os aplausos que vêm tendo há anos, em vários ambientes católicos, dois livros positivamente imorais que prefiro não mencionar por respeito ao seu autor…

Então, perguntar-se-á, de que adiantou publicar “Em Defesa da Ação Católica”?

Isto importaria em perguntar também do que adiantou publicar todos os livros e documentos eclesiásticos que acabo de citar.

Na realidade, adiantou muito. A esses livros e documentos devemos o fato de que, se tais erros existem, eles são objeto de reação e tristeza em muitos e muitos círculos; que assim lhes escapam à influência nefasta.

Devemos-lhe ainda o fato de que, se o erro continua a progredir, no entanto já não está mais garrulo nem ufano de si. Contra “Em Defesa da Ação Católica”, a reação dele foi uma polvorosa e depois silêncio. Quando chegou a “Bis Saeculari Die” ao Brasil, houve alguma polvorosa e muito silêncio. Poucos anos mais tarde, contra a Pastoral do grande D. Mayer foi um silêncio sem polvorosa. E um erro pouco ufano de si é como um leão de três patas… Sempre é qualquer coisa cortar a pata de um leão…[2]

A tarefa específica de “Em Defesa da Ação Católica” foi, numa hora em que os erros progrediam num passo rápido e triunfal, ter dado um brado de alarma que repercutiu pelo Brasil, fechou-lhes numerosos ambientes de norte a sul do País, e preparou assim definitivamente o terreno para a mais fácil compreensão dos documentos do Magistério eclesiástico, já existentes ou que ao longo dos anos haveriam de vir.

Que adianta fazer história?

Para que toda esta narração? A esta pergunta respondo com outra: de que adianta fazer História? E se é para fazer História, por que não dizer ao cabo de vinte anos uns fragmentos de verdade, daquela verdade histórica que, mesmo – ou principalmente – quando plena e integral, só pode ser benéfica à Igreja?

Todos sabem que o gesto de Leão XIII ao abrir aos estudiosos os arquivos do Vaticano, despertou receio em muitos católicos. Mas o imortal Pontífice obtemperou que a Igreja verdadeira não podia temer a História verdadeira.

Por que não narrar ao cabo de vinte anos – com o propósito de novamente retornar ao silêncio – um pouco dessa verdade histórica com que a Igreja só tem que lucrar?

*     *     *

Volto meus olhos para a Senhora da Conceição Aparecida, Rainha do Brasil, ao encerrar estas linhas. Antes de tudo, para Lhe agradecer, genuflexo, todo o bem que o livro de Plinio Corrêa de Oliveira pôde fazer. E, em segundo lugar, para Lhe implorar nos congregue a todos na unidade da verdade e da caridade, para o bem da Santa Igreja e grandeza cristã de nosso Brasil.

 

[1] É memorável, sobre o papel de D. Guéranger no movimento litúrgico universal, o artigo escrito no “Legionário” (13-2-1942) pelo pranteado Arquiabade da Congregação Beneditina Brasileira, D. Lourenço Zeller, Bispo titular de Dorilea.

[2] Pelo texto do presente documento, é óbvio que ele não se refere ao leão heráldico que se encontra no rubro estandarte da TFP. Aliás, tal estandarte só começou a ser usado a partir de 1963.  


 

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