Plinio Corrêa de Oliveira

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

Janeiro de 1979 - Almoço oferecido pela "Folha de S. Paulo" aos colaboradores de sua secção "Tendências e Debates". Vê-se o prof. Plinio Corrêa de Oliveira à esquerda do diretor do jornal, Octávio Frias

9 de maio de 1971

O dinheiro não é valor supremo

A propósito da reforma agrária reclamada como que a grandes brados pelo MDB referi-me, em meu último artigo, ao velho Partido Democrático, do qual a presente milícia oposicionista é, de algum modo, um bisneto político.

Esta referência fez-me pensar também no adversário do PD, o velho PRP. E daí se apresentou à minha memória todo o panorama político e social da São Paulo de antes de 1930.

Como é natural, ao recordar a paulicéia da minha primeira mocidade — tinha eu, nessa ocasião, entre 21 e 22 anos — o contraste com a São Paulo de hoje me saltou vivamente aos olhos. Tentei então fazer uma lista dos pontos em que, por força de acontecimentos nacionais e internacionais, maiores tinham sido as modificações. E renunciei à tarefa pouco depois de a ter encetado.

A grande dificuldade que ela apresenta não está, a meu ver, em catalogar o elevado número das transformações ocorridas de então para cá. Ela consiste, isto sim, em que boa parte das mudanças mais importantes, das que determinaram todas as outras, é indefinível. Ou pelo menos, a explicitação de todas elas pediria tanto esforço, que importaria num trabalho sobre-humano.

* * *

Contudo, há uma transformação importante, que desejo comentar hoje. Trata-se da modificação mais ou menos subconsciente, que se operou na mentalidade de boa parte de meus conterrâneos, quanto à escala segundo a qual se mede a consideração atribuída aos indivíduos na sociedade. O que importa, de algum modo, na alteração do critério segundo o qual se dispõe a estratificação social.

Historiadores contemporâneos há, que vão dando novo vigor ao conceito de sociedade de ordem em oposição a sociedade de classe. Simplificando um pouco, pode-se dizer que — segundo tais historiadores — a sociedade de ordem é aquela em que a estratificação das camadas sociais se faz segundo dois critérios conjugados: 1) a missão especial de cada estrato, ou ordem, no País; 2) o grau de dignidade atribuído a essa missão, segundo critérios abstratos, em geral religiosos ou metafísicos.

Tomo um exemplo entre muitos outros. Em quase todas as nações cristãs da Europa, até a Revolução Francesa, a primeira categoria social era o clero (cujo acesso era franqueado, como se sabe, a grandes e pequenos). Fundava-se esta preeminência no caráter sagrado do sacerdócio, e também no fato de estar a seu cargo quase todo o ônus hoje atribuído aos Ministérios da Educação e da Saúde Pública. O segundo estrato social era o dos guerreiros, isto é, dos nobres, a quem incumbia fundamentalmente a missão — aureolada de uma glória toda particular — de derramar o sangue pelo País. O próprio do verdadeiro nobre era ser guerreiro. E o do guerreiro insigne era de ser nobre. Por isto, foram incontáveis os plebeus elevados à nobreza por feitos de guerra. Na nobreza também, ainda que em posição menos saliente, figurava a magistratura, pela respeitabilidade da função judiciária. E mais ou menos a título idêntico, entravam freqüentemente na mesma categoria social as grandes figuras da administração civil. Não faltaram monarcas que deram, por análogas razões, títulos de nobreza a personalidades insignes das letras ou da cultura.

O que fazia nisto tudo o dinheiro? — Ele era considerado um complemento útil, e em alguma medida necessário, da situação de uma pessoa. Por exemplo, um bispo, um general ou diplomata soíam ter os recursos necessários para sustentar decentemente sua situação. Mas — e é o que importa notar — a consideração de que eles gozavam não era determinada pelo peso do dinheiro, mas pela respeitabilidade intrínseca de sua função.

Isto se sentia muito no tocante à burguesia, que por ser a classe dos negociantes, era também a mais influente na vida econômica do país. Mas, segundo o consenso geral, por mais necessária e respeitável que fosse sua atuação em favor do bem comum, sua ação ficava — segundo as condições da época — circunscrita à esfera das atividades privadas. E não se revestia, por isto, do lustre especial de quem participava a um ou outro título, da gestão da coisa pública, na paz ou na guerra. Sua função era reconhecida como honrada. Não, porém, como especialmente honrosa. E isto porque a esfera da vida pública possui qualquer coisa de mais elevado e excelente do que a esfera da vida privada.

Obviamente, este critério não poderia ser aplicado sem matizes à nossa época, em que a gestão de interesses econômicos consideráveis, além de exigir, muitas vezes, uma capacidade intelectual relevante da esfera privada e acarreta, em tal caso, responsabilidades de grande porte no tocante à própria coisa pública.

Mas se imaginarmos a sociedade atual vista segundo os critérios prevalentes na sociedade de ordem, a pessoa ou a família responsável por uma função saliente na economia teria sua importância reconhecida, não diretamente em razão do peso material do seu dinheiro — visto apenas como meio de coligar e dirigir interesses privados — mas pela dignidade intrínseca de uma atividade de tanto alcance para a coisa pública. Coisa análoga, e até hipertrofiada, se dava em certas sociedades antigas. Por exemplo, na República de Veneza, onde a classe dos comerciantes, por sua importância peculiar na vida do Estado, ocupava o primeiro lugar e concentrava em suas mãos quase toda a direção do Estado.

Era também o que ocorria, a seu modo, em uma sociedade tão profundamente diversa das que a antecederam, como era a da paulicéia de antes de 30. Nela figuravam, em primeira plana, o fazendeiro rico, o indivíduo bem sucedido nas profissões liberais, o banqueiro, o comerciante ou o industrial. Entretanto, a consideração atribuída a essas pessoas não resultava diretamente do que tinham, mas da respeitabilidade da função que exerciam, e do valor pessoal que o exercício da função pressupunha. No fazendeiro se via mais o patriarca do que o ricaço. No advogado, médico ou engenheiro, mais o homem de saber do que o burguês abastado. E assim por diante. De sorte que a influência social dos cresos era mais ou menos a mesma — e às vezes menor — do que a das categorias que acabo de enumerar.

Era um sobrevivência adaptada do conceito tradicional de sociedade de ordem.

A este conceito de ordem, opõe-se o conceito marxista de classe. Uma vez que, segundo Marx, o fator determinante da História é a economia, os homens devem classificar-se unicamente segundo seu papel na produção econômica. A escala dos valores deve ser exclusivamente funcional, abstraindo de critérios religiosos ou morais como dignidade, honra etc. E dado que, segundo o marxismo, a produção resulta do trabalho, concluir-se-ia daí que a função máxima pertenceria às massas operárias.

A meu ver, os acontecimentos nacionais ocorridos depois de 1930, e mais ainda, o reflexo dos acontecimentos internacionais, produziu uma debilitação dos antigos conceitos honoríficos como critérios de estratificação social, e introduziu uma mentalidade diversa, apresentando em uma sociedade capitalista laivos de classismo marxista.

Em termos mais concretos, a importância atribuída às funções econômicas passou a decorrer principalmente da posse do dinheiro, instrumento material sempre mais eficiente para influenciar e pressionar. E paralelamente, as funções menos lucrativas e menos ligadas à produção — o magistério, a magistratura, a diplomacia, a carreira de armas, a vida cultural, a própria agricultura — perderam muito de seu lustre de outrora.

Lembro-me de um pequeno fato que ilustra bem a mudança de mentalidade a tal respeito. Contá-lo-ei com as alterações necessárias para não ser identificada a pessoa em jogo. Falava eu, há certo tempo atrás, com um coetâneo muito e muito bem sucedido em seus negócios. Contava-me como, no início de sua carreira, quisera ser general. Para isto, meteu-se na Escola Militar. A certa altura houve um desastre em casa. E ele, para acudir aos seus teve de interromper os estudos e entregar-se aos negócios. "Veja, Plinio, como foi bom: se não fosse minha dedicação à família, eu seria hoje um simples general" disse-me enfático o meu interlocutor. E eu fiquei a pensar... "Um simples general"... — Ser um grande homem de negócios é então mais do que ser um grande general? Ou um grande magistrado? Um fazendeiro de porte ou ainda um diplomata de realce? Ou, por fim, um abnegado eclesiástico, incumbido de representar Jesus Cristo na terra: "Sacerdos alter Christus"?...

Reconhecer ao capital enquanto fator de produção econômica, a grande importância que lhe cabe segundo as circunstâncias de nossos dias, nada mais justo. Mas proclamar, por esta forma, a absoluta superioridade da posse do dinheiro sobre todos ou quase todos os fatores intelectuais, religiosos ou morais de prestígio, não importa em colocar a economia como valor supremo? E não se cai assim, inadvertidamente, no marxismo?

Estas reflexões têm um sentido prático. Elas são um apelo a que se modifique esta mentalidade, que infelizmente vai ganhando terreno entre nós, e que se poderia condensar nesta fórmula: "fazer carreira é tornar-se rico; o resto é conversa fiada".

Com efeito, este exclusivismo importa em negar o fundamento religioso, moral e cultural da estratificação social, em afirmar o marxismo e atirar por terra até os próprios cresos.

* * *

Antes de terminar, parece-me de justiça assinalar que a sobrestima unilateral e quase exclusiva da potência econômica dos cresos não é fenômeno peculiar à plutocracia. É um estado de espírito que, de fora para dentro do Brasil, vai ganhando todas as camadas sociais.

E como evitar tal "cresolatria", se a vida é concebida de maneira atéia e como um corrida atrás das vantagens materiais do dinheiro, e não daquela honorificência que, de um ou outro modo, em um ou outro grau, em todas as classes se deve possuir?


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