Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

  Bookmark and Share

29 de abril de 1973 

Conversa com um homem mediano 

"Dr. Plinio, esqueceu-se de que é brasileiro?" Com essas palavras me abordou na rua um homem médio em tudo: meia idade, meia estatura, instrução média. Olhava-me sorrindo, mas através de seu sorriso, filtrava um pouco de agastamento.

A pergunta era surpreendente. E em razão do personagem, aliás simpático, apresentava alguma importância. Em nossos dias, a opinião dos homens medianos tem por vezes mais importância que a de quantos, a qualquer título, podem ser qualificados de exponenciais. Estes últimos dispõem, pela própria natureza das coisas, de alguma facilidade para formar um pensamento que escape à padronização geral das mentalidades. Assim, não raras vezes, se tornam pessoas isoladas, e pouco capazes de influenciar os acontecimentos. Pelo contrário, a maior parte dos homens medianos se defende mal da padronização e do bitolamento. Por isto mesmo, tem com os outros um modo de pensar comum, uma linguagem comum, o que lhes dá sérias possibilidades de obter o consenso de muitos outros. E também lhes confere uma importância que o homem isolado não tem.

O que acabo de dizer é verdadeiro, ainda quando o homem mediano pensa uma asneira. Pois poucas coisas são tão fortes, tão difíceis de se enfrentar com êxito quanto uma asneira que se tenha apoderado do espírito de grande número de homens medianos.

Bem cônscio dessa triste realidade, perguntei preocupadamente ao indivíduo que me interpelava, o que ele entendia por aquelas palavras. "Com tamanha asneira não se brinca", pensava eu.

Meu interlocutor, pelo visto, não tinha pressa. E não parecia interessado em saber se a tinha eu. Por isto, nem muito pausadamente, nem muito rapidamente, mas numa fluência bem mediana – como nele era de se esperar – entrou a explicar-se.

* * *

Começou ele por me dizer que lê todos os meus artigos na "Folha de São Paulo" (nisto, aliás, achei-o de uma paciência bem superior à média). Impressiona-o o fato de que tenho consagrado ultimamente, a assuntos ocorridos no Exterior, um interesse e um espaço pelo menos iguais aos que dedico a assuntos nacionais. Ora, acrescentou ele, sentenciosamente, no momento em que o Brasil se vai alçando vitoriosamente ao nível das grandes nações, precisamos olhar cada vez mais para dentro de nossas fronteiras e cada vez menos para fora. O patriotismo deveria levar-me a viver com maior intensidade esta grande hora nacional, etc., etc.

Tive vontade de lhe fechar sumariamente a boca, objetando que precisamente as nações de grande projeção internacional, pelo fato mesmo de sua projeção, têm no plano mundial direitos a defender e responsabilidades a carregar, que as obrigam a olhar muito mais para fora de suas próprias fronteiras do que as nações sem importância. E que por isto é normal que certos articulistas das grandes nações entrem a fundo e com freqüência em assuntos do Exterior. Seria fácil esmagá-lo ilustrando meu pensamento com a afirmação de que um porto-riquenho, um haitiano ou um guatemalteco têm muito mais direito de deter seus olhos quase só dentro do âmbito pátrio e de os fechar para o Exterior, do que um norte-americano, um inglês ou um japonês.

Mas é pouco amável esmagar quem quer que seja. As trombadas sofridas numa conversa podem às vezes doer tanto ou mais do que as de trânsito.

Entrei, então, por outro lado.

* * *

Comecei concordando. "É bem verdade, meu caro, que devemos ter mais amor à nossa pátria do que aos outros países. Mateus, primeiro os teus, diz o velho ditado". A fisionomia do interlocutor mediano mudou um pouco de matiz. O sorriso continuava, o agastamento desaparecia.

Prossegui: "Também é verdade, entretanto, que todos os fatos ocorridos no Exterior são menos importantes, para nosso País, do que todos os que se passam neste? Uma crise no MDB, uma mudança de diretório na Arena é necessariamente um fato mais importante para o Brasil do que a imposição da escola oficial comunista do Chile ou a ascensão do Perón na Argentina?"

Meu ouvinte estava embaraçado. Quando lhe falei da Arena e do MDB, sua fisionomia traduziu um desinteresse que se dissipou quando mencionei o tema chileno e o argentino. Via-se que ele se sentiria em conflito consigo mesmo se, só pelo prazer de manter seu ponto de vista, sustentasse apresentar um supremo interesse às nossas rinhas partidárias. Por isto, tentou uma escapatória: "O Sr. se preocupou tanto com o manifesto da TFP chilena. Enquanto isto, tem-se a impressão de que o Sr. vai se esquecendo de que o progressismo está demolindo nosso querido Brasil. Não lhe parece que está errado?"

A resposta me saltou da boca. O progressismo é uma realidade internacional. Por toda a parte tem ele a mesma doutrina, os mesmos objetivos estratégicos, os mesmos métodos de ação. O tema apresenta pois, interesse para todos os leitores cultos dos países em que ele exista.

O homem mediano objetou então, um pouco sofregamente: "Mas valeu a pena o Sr. escrever três artigos para provar que a TFP chilena não merecia a pecha de insubordinada por censurar a política de Paulo VI no Chile?"

"Lendo o manifesto da TFP chilena – respondi – não poucos brasileiros, legitimamente ciosos de acatar as leis da Igreja, se terão perguntado se a TFP andina não teria passado dos limites. Essa pergunta atingiria por ricochete a própria TFP brasileira. Explanando a doutrina de tantos santos e grandes teólogos sobre a matéria, efetuei uma legítima defesa preventiva. Independente desse aspecto, fiz uma obra positiva, ao explanar a verdadeira doutrina sobre o assunto, o que em todos os tempos e em todos os lugares, é intrinsecamente um bem".

"Digamos. Mas quanto aos êxitos de Perón e Allende? Que repercussão tem eles no Brasil?"

Positivamente, o homem mediano negava o óbvio, e assim fazia descer sua argumentação para um nível abaixo da média. Via-se que ele punha certa paixão no que dizia.

"Toda vitória das esquerdas fora de nosso País encoraja nossos esquerdistas, que a celebram como prova de que o mundo inteiro progride irreversivelmente para o comunismo. Submeter os acontecimentos internacionais a uma análise inflexível, que mostre ser um mito esta irreversibilidade, tem o condão de desalentar o leitor esquerdista, diminuindo-lhe assim a capacidade de lutar".

"De mais a mais – prossegui - o esquerdista identifica a marcha rumo ao comunismo com o progresso. Mostrando que a esquerdização traz no Chile, como na Rússia ou em Cuba, a queda da produção e o retrocesso, induzo o leitor esquerdista a dissociar os conceitos do comunismo e de progresso. E assim lhe corto o penacho".

* * *

Positivamente, o homem mediano estava agastado. O sorriso desaparecera, e, num tom agressivo, ele me perguntou: "E o sr. imagina que os esquerdistas o lêem? Quem o lê são apenas os homens de centro como eu, ou então esse punhado de fanáticos que formam no Brasil a direita".

Respondi com afabilidade: "Estou certo de que os fanáticos de esquerda não têm isenção de ânimo para me ler. Viso, entretanto, dar aos centristas como o Sr. ou aos direitistas que o Sr. injustamente detesta, argumentos para discutir validamente com os esquerdistas, diminuindo-lhes o ímpeto e abaixando-lhes o topete". E conclui sorrindo: "É uma ajuda, caro leitor".

* * *

Meu sorriso, e o efeito calmante da palavra "ajuda", parecem ter tranquilizado novamente o homem mediano. Aproveitei o momento para terminar a conversa cordialmente. Perguntei-lhe de sua vida. Ele me falou da profissão, da casa, dos netos. Tinha muito que me contar. Estava alegre e comunicativo. E asseguro que tive menos dificuldades em lhe rebater os argumentos na primeira parte da conversa, do que em arranjar jeito de me despedir dele sem lhe cortar ex abrupto as narrações clássicas – e aliás simpáticas – sobre os netinhos.


Home