"Folha de S. Paulo", 9 de abril de 1977

Imparcialidade faceira ante tema macabro

Há cerca de meio ano, o mundo inteiro tinha sua atenção chamada para um acontecimento sensacional: morrera Mao Tse-tung. As páginas de toda a imprensa se abriram para extensos necrológios, para o noticiário minucioso de tudo quanto se chegou a saber sobre as circunstâncias de sua morte, para a avaliação cuidadosa das repercussões do acontecimento na política interna da China, no jogo diplomático do Extremo Oriente, nas relações China-Rússia, no porvir do maoismo fora da China etc., etc.

No Ocidente, toda essa matéria publicitária foi tratada, o mais das vezes, com uma imparcialidade faceira.

Explico-me. A imparcialidade verdadeira não tem os olhos voltados para o público, mas apenas sobre o fato que lhe compete julgar. Por isso, é-lhe inerente uma espécie de sem-cerimônia. Enuncia ela as qualidades sem desejo de agradar, e os defeitos sem receio de desgostar. Não se preocupa em provar sua própria autenticidade. Ela é o que é. E está acabado.

A faceirice, pelo contrário, conduz à inautenticidade. Em primeiro lugar, porque o faceiro é propenso a ostentar qualidades que não tem. E também a apresentar sob luz favorável as qualidades que tem. De sorte que estas, se bem que autênticas, tomam o brilho suspeito e de mau gosto da jóia falsa quando é de má qualidade.

A faceirice da imparcialidade modelou muitos comentários sobre Mao.

Era de se prever.

E ocorreu.

A meu ver, muitos jornais - e, bem entendido, não menos TVs e rádios - trataram o tema Mao com os olhos voltados para o público, como a lhe dizer: "veja como sou imparcial".

Isto os levou a não divulgar sobre o falecido chefe comunista muita coisa altamente desfavorável, que só por isso poderia ser tachada de parcial pelos maníacos da imparcialidade.

Les morts vont vite... Mao já começa a ser soterrado no esquecimento geral, apesar de toda a publicidade feita a propósito de sua morte.

Será talvez este o momento mais oportuno para lembrar a respeito dele alguns dados que, mencionados nos dias de seus funerais, poderiam não cair bem nos ouvidos, não só dos ultraimparciais, como dos sentimentais.

Isto me leva a inteirar meus leitores dos seguintes fatos que encontro no artigo-editorial de Marcel Clément, publicado no influente quinzenário parisiense "L’Homme Nouveau" (19-9-76).

O tema é de estarrecer.

Julgue antes o leitor.

O prof. Richard L. Walker é um especialista de temas da China comunista. A pedido da subcomissão de Segurança Interna do Senado norte-americano, procedeu ele a um estudo sobre o conjunto da ação de Mao, com base em amplíssima consulta de fontes. Seu trabalho consciencioso e lúcido foi publicado na revista americana "Issue and Studies" vol. III. n.º 12, set. 71).

Informa o prof. Walker que, segundo as fontes mais circunspectas, o comunismo chinês matou 34 milhões e 300 mil pessoas. Fontes menos rigoristas elevam o número de vítimas - sempre segundo o prof. Walker - a 63 milhões e 784 mil mortos. Ou seja, mais da metade da população brasileira.

Dou aqui preferência às estimativas mais circunspectas:

 

Acontecimentos históricos Vítimas

 

1- Primeira guerra civil 1927/36 250.000

2- Combates da guerra sino-japonesa - 1937/45 50.000

3- Segunda guerra civil - 1945/49 1.250.000

4- Reforma agrária antes da "libertação" 500.000

5- Campanhas políticas de liquidação 1949/58 15.000.000

6- Guerra da Coréia 500.000

7- O "grande salto para frente e as comunas" 1.000.000

8- Lutas contra minorias nacionais, inclusive no Tibete 500.000

9- A grande revolução cultural proletária e suas seqüelas 250.000

10- Mortos nos campos de trabalho forçado e quando

do questionamento das fronteiras 13.000.000

Total 34.300.000

 

Faço notar que há lacunas nessa sinistra estatística.

Com efeito, sendo o relatório de 1971, e tendo Mao morrido em 1976, o total deveria ser atualizado com os "frutos" de mais cinco anos de governo do líder chinês.

De outro lado, este é apenas o número de mortos. Sob regimes de força como o de Mao, há uma óbvia relação entre as mortes, as torturas, os maus tratos, etc. Isto é, quando o número de mortos é elevado, o número de pessoas torturadas, espancadas, inutilizadas, ou simplesmente presas é ainda muito maior. Parece-me que só no dia do Juízo Final se saberá qual o número de vítimas do comunismo chinês tragicamente maltratadas na alma ou no corpo. Menciono apenas um dado. O relatório de 1955 da ONU computou em 20 a 25 milhões o número de prisioneiros nos campos de concentração chineses para "reeducação pelo trabalho". Imagine o leitor tudo que disto se segue.

Ademais, no quadro acima haveria que acrescentar o número de mortos na guerra do Vietnã. Pois nesta, embora oficialmente alheio aos campos de batalha, teve parte ponderável o comunismo chinês, sócio da agressão soviética.

Isto constatado, as reflexões enxameiam.

Exporei só duas. Ei-las.

É inegável que os preciosos dados do prof. Walker apresentam um aspecto de principal importância na história do falecido ditador. Seria talvez difícil explicar que emaranhado de circunstâncias levou grande número de órgãos de comunicação social a silenciar sobre esse rio de sangue que a China maoista derramou. É certo, porém, que para isto concorreu a imparcialidade faceira.

Em segundo lugar, estarrece que figuras de tanto destaque na luta pelos direitos humanos não tenham aproveitado a morte de Mao para dirigir a seus sucessores um apelo mundial a fim de que consintam numa investigação imparcial, e exaustiva das garantias de vida, liberdade e trabalho do povo chinês.

Por exemplo, como teria ficado bem essa iniciativa a certos bispos que se deleitam em aparecer na fina ponta da mais exacerbada reivindicação dos direitos humanos em nações garantidas por regimes anticomunistas, nas quais abusos contra tais direitos, se foram cometidos, é certo que o foram em quantidades astronomicamente menores do que os da China maoista!

E aqui vem a última pergunta deste artigo.

Breve.

Incisiva, talvez.

Mas logicamente inevitável.

Quando tanto furor pró direitos humanos investe sobre governos anticomunistas, e tanto silêncio se faz sobre um governo comunista, patenteia-se um favorecimento do comunismo.

Neste caso, é realmente só em favor dos direitos humanos que este furor sopra?

* * *

Sumário:

É preciso reconhecer que em um ponto Mao Tse-tung (o famoso Mao) foi único na História: 35 milhões de vítimas, segundo uns: 64 milhões, dizem outros!

Como explicar o silêncio de grande número de órgãos de comunicação social sobre esse espantoso rio de sangue?

Por que figuras de destaque na luta pelos direitos humanos, como certos bispos, não aproveitaram a morte de Mao para fazer um apelo ao atual governo chinês no sentido de permitir uma investigação sobre a violação dos direitos humanos?

Ao lado desse inexplicável silêncio, um furor pró direitos humanos investe sobre governos anticomunistas.

À vista disso, o que há realmente por detrás desse furor pró direitos humanos?