"Folha de S. Paulo", 25 de novembro de 1977

A Casa Branca responde

Consoante os princípios que me honro de ter professado e posto em prática ao longo da vida, considero-me obrigado a um especial desvelo pela situação dos heróicos vietnamitas expostos no Mar da China à fome", à sede", às intempéries e aos riscos, por não se terem conformado com viver sob a férula comunista. Consagrei especialmente a eles um artigo na "Folha" ("A epopéia de nobres inconformados", 7-3-77). E, além disto, me referi mais de uma vez à tragédia destes inconformados heróis em outros artigos ou mensagens, também publicados pela "Folha".

Dando voz ao clamor de alma de milhares de brasileiros que a tal respeito pensam e sentem como eu, dirigi-me, igualmente, por telex, a Paulo VI e ao Presidente Carter, pedindo-lhes que desenvolvam por inteiro, em benefício daqueles gloriosos e desafortunados navegantes, a poderosa atuação correspondente às altas funções que exercem.

Ao supremo magistrado da América do Norte, meu apelo sensibilizou. Correto, atencioso, incumbiu ele a Sra. Patricia M. Derian, secretária de Estado-Assistente para os Assuntos Humanitários, que me respondesse à mensagem.

Eis os textos essenciais da missiva que assim recebi:

"Desde a queda da Indochina nas mãos dos comunistas, em 1975, o governo dos Estados Unidos assumiu um papel de liderança na assistência àquelas desafortunadas pessoas que fugiram de suas antigas pátrias. Acolhemos 146 mil refugiados indochineses nos Estados Unidos e iniciamos um novo programa para admitir mais quinze mil, dos quais sete mil vietnamitas que fugiram em pequenos barcos. Nós participamos da angústia que o sr. sente ao pensar nos fugitivos que estão sendo rechaçados por algumas nações asiáticas; mas também consideramos que muitos daqueles países vizinhos são subdesenvolvidos, com grandes populações e poucos recurvos para prover às necessidades de seu próprio povo.

"Estamos trabalhando em estreita ligação com a Alta Comissão para Refugiados das Nações Unidas (UNHCR), a fim de dar assistência a esses refugiados que precisam ficar em acampamentos, e para apoiar os esforços da UNHCR no sentido de obter um maior grau de envolvimento internacional no programa de ajuda a refugiados da Indochina.

"Até aqui, dezoito outras nações, além dos Estados Unidos, ofereceram condições para a reinstalação dos refugiados indochineses. A França, por exemplo, está aceitando mil refugiados por mês. Muitos países estão contribuindo com fundos para o sustento e a manutenção dos refugiados em nações que lhes dão um primeiro asilo. Infelizmente, a comunidade internacional não proporcionou nem de longe o número e as condições de acolhimento necessários para resolver o problema; nem tem havido o adequado apoio financeiro ao programa da UNHCR. Assim, muito falta para ser feito, especialmente na esfera internacional. Estamos continuando nossos esforços diplomáticos junto aos países asiáticos vizinhos, a fim de conseguir uma aceitação mais ampla para o recolhimento e instalação dos refugiados.(...)

"Muito se progrediu nos últimos meses para aliviar os sofrimentos deles, e espero que muito mais possa ser feito com a ajuda de homens e mulheres de todos os lugares, preocupados com essa questão. Atenciosamente etc."

* * *

Registrando com simpatia o tom gentil da resposta, passo a analisar vários dados que esta me comunica.

Todos sabemos que os Estados Unidos assumiram "um papel de liderança na assistência àquelas desafortunadas pessoas que fugiram de suas antigas pátrias". Sabemos também — e a carta omite dizer, evitando timidamente, de começo a fim, qualquer referência ao comunismo e aos comunistas — qual foi o motivo dessa fuga.

Os EUA assumiram outrora, com o povo vietnamita, os notórios compromissos que o mundo inteiro conhece. Por vários anos, americanos e sul-vietnamitas lutaram lado a lado contra o inimigo comum. E tendo-os abandonado, por fim, à sanha desses inimigos, é bem natural que a América do Norte tenha assumido "um papel de liderança" na assistência às vitimas de tão trágico abandono.

A esse respeito, não pode haver a menor dúvida.

A distinta missivista que me escreveu por encargo do presidente Carter parece mencionar com uma segurança vizinha da ufania o número de refugiados ("indochineses", diz ela, e portanto não apenas vietnamitas) aos quais a América do Norte abriu suas fronteiras.

Confesso não perceber o motivo dessa ufania.

Absolutamente falando, o número desses refugiados é considerável. Mas, dada a prodigiosa capacidade de absorção dos EUA, não estou certo de que estes se tenham desobrigado, simplesmente com isto, dos deveres de honra resultantes de sua "liderança" assistencial.

Com efeito, a amplitude das obrigações assumidas pelos EUA, ao aceitarem essa liderança, não pode medir-se apenas pelo número de refugiados aceitos em território americano. Seria necessário conhecer o total dos refugiados especificamente vietnamitas, e o dos seus companheiros de outras nações indochinesas (já que a carta fala destes). Em seguida, cumpriria averiguar qual o total efetivo dos refugiados que a América do Norte pode agasalhar em seu amplo e opulento território. E, por fim, confrontando estes dados, dizer se a grande nação setentrional faz pelos vietnamitas — que especialmente tenho em vista neste artigo — tudo quanto pode e deve.

Os Estados Unidos são a terra dos inquéritos, dos cálculos e das estatísticas. Tudo leva a crer que suas autoridades disponham destes dados. Pena é que a Sra. Patricia M. Derian não nos tenha comunicado. Pois só de posse deles é que me seria possível apalpar com as mãos a procedência dos motivos em que ela funda sua segurança ou sua ufania.

"Tudo quanto pode e deve", disse mais atrás. Especifico: tudo quanto os EUA podem e devem fazer dentro de suas fronteiras. Pois que fora delas a Casa Branca dispõe de uma esfera de ação imensa, e que também deveria estar ao serviço dos vietnamitas anticomunistas.

* * *

Nesta ordem de idéias, permito-me lembrar que, há meses atrás, o Presidente Carter agia junto a todas as nações ibero-americanas do Continente, no sentido de respeitarem integralmente os direitos humanos, dos quais ele se arvorara em campeão mundial. Bem entendido, os beneficiários diretos de sua ação eram os comunistas, ou suspeitos de tal, processados ou condenados nessas várias nações.

Deitando os olhos naquela ocasião sobre a Ibero-América, o Sr. Carter tinha em mente os direitos humanos que, como todo ser racional, também os comunistas, paracomunistas, cripto-comunistas, comunistóides e congêneres, sem dúvida têm. E que têm principalmente aqueles que, em uma ou outra nação, sejam suspeitados sem fundamento.

Mas o Sr. Carter não deveria perder de vista que, na sua maciça maioria, esses são agressores da soberania das nações ibero-americanas, tenazmente atacada, nas últimas décadas, pela guerra psicológica revolucionária e pelos cometimentos cruentos de Moscou.

Ora, seria muito lógico se o Presidente Carter, olhando para o mundo ibero-americano, se tivesse lembrado dos direitos humanos dos refugiados indochineses anticomunistas. Por que não pediu ele a todos esses governos um cálculo sobre o número de refugiados que poderiam acolher nas vastidões ainda inabitadas da América Latina? Por que não propôs concomitantemente, a esses governos, uma ajuda assistencial dos EUA para o estabelecimento desses trânsfugas, em condições produtivas? Por que não pediu às várias macropotências do Ocidente um apoio financeiro para esse gasto?

Essas são algumas das perguntas que me vieram à mente à leitura da carta acima.

Sobre as outras direi algo mais tarde.