Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

 

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19 de dezembro de 1977 

A Baronesa e a Passionária

Até a queda do gabinete Chamberlain, aos primeiros estampidos da Segunda Guerra Mundial, Winston Churchill, sua personalidade e sua figura me eram mais ou menos indiferentes. Com efeito, na ótica do público brasileiro, o sucessor de Chamberlain até então se perdia na massa — aliás imponente — dos políticos ingleses de categoria. Porém, muito rapidamente as coisas mudaram. E o mundo percebeu que nas aflições em que se contorcia, o Reino Unido mais uma vez encontrara um grande homem que o levasse à vitória. 

 

A ascensão de Churchill foi em linha reta, até o zênite. As mais diversas formas de inteligência, de tino político e de coragem nele se foram patenteando e refulgindo. E cada vez mais, à medida que iam exigindo as contingências da luta. Quando a guerra terminou, Churchill foi o mais famoso dos vencedores. A propaganda aliada apresentava-o frequentemente ao lado dos outros dois — Roosevelt e Stalin — como que a querer nivelá-los. Mas o esforço foi inútil. E até contraproducente. Enquadrado entre o velho presidente ianque de olhar comum e de inexpressivo riso-padrão, de um lado, e do outro, o sinistro ditador soviético sob cujas sobrancelhas hirsutas faiscavam dois olhos ignaros a chispear ameaças, e sob cuja bigodeira farta e descuidada se delineavam lábios mais próprios para injuriar e beber do que para falar, a fisionomia superexpressiva de Churchill se destacava de um modo que quase se diria esplendoroso.

Para brilhar não basta obviamente ser muito expressivo. Cumpre ademais exprimir algo que valha. Fazia-o às catadupas o velho leão inglês. Em sua calva parecia reluzir um pensar diplomático vigoroso e subtil. Seus olhos — quanto haveria de dizer sobre eles! — exprimiam sucessivamente fascinantes profundidades de observação, reflexão, "humour" e gentileza aristocrática. Suas largas bochechas musculosas nada perderam do vigor, com a idade. Pareciam dois contrafortes faciais, a emoldurar vigorosamente a fisionomia tão altamente intelectualizada. E davam à face um não-sei-que de decidido, estável, quase se diria de perpétuo: símbolo expressivo da força multissecular da monarquia inglesa. Seus lábios, finos e de contorno incerto, pareciam acompanhar o movimento dos olhos e, pois, sempre prontos a se abrirem para uma ironia, uma palavra de ordem, um discurso monumental... ou um charuto.

Sinto que não estaria descrevendo Churchill por inteiro, se não lhe acrescentasse um traço. Membro autêntico da "gentry" inglesa, adornado — é bem este o termo — com o charme varonil de um aristocrata de alta classe, em Churchill coincidiam as rutilações da cultura universitária, do talento jornalístico, da oratória parlamentar e da glória militar, com, ademais, um não-sei-que de direto, positivo, desconcertantemente ativo, típico dos "businessmen" norte-americanos da "belle époque". É que sua mãe era uma ianque, filha de um estuante "self made man".

Estavam todas essas impressões bem firmadas em meu espírito, como aliás no de todo o mundo, quando deparei pela primeira vez, no jornal, com uma fotografia de sua esposa. Comecei a analisá-la com interesse: quem seria a inglesa que o grande homem escolhera para a participação inteira de sua vida, e para ser como que a versão, em ponto feminino, dos mil predicados que nele afloravam. O papel não seria fácil para ela...

Conversando certa vez sobre Churchill com o arquiduque Otto de Habsburg, dele ouvi um lúcido comentário. Está na ordem das coisas — dizia ele — e até entre os vegetais, que de vez em quando apareçam, nesta ou naquela variedade, espécimes gigantescos. São fenômenos da natureza. Churchill foi um deles. Ora — e sou eu que passo agora a comentar novamente — se fica bem a um homem ser um gigantesco fenômeno da natureza, é difícil para uma mulher sê-lo também. O gigantismo não é compatível com o charme feminino.

Quando, pois, me pus a analisar com curiosidade a foto da esposa do "fenômeno da natureza", perguntava-me se e como ela estava à altura do grande estadista. E bem antes de concluída, minha análise se transformara numa indiscutível admiração. 

 

Grande de rosto e de porte com um não-sei-que de nobremente aquilino no olhar e no perfil, Lady Churchill reunia entretanto todas as graças genuinamente femininas. Sua educação aristocrática lhe comunicara um charme evidente. Sua imponência coexistia elegantemente com uma afabilidade atraente. Apesar de vistosa era sumamente discreta. E sabia ser inteligente sem em nada disputar a seu brilhante esposo os olhares do público. No equilíbrio de tantas qualidades quase opostas, tudo era "dégagé" e nada era "recherché".

Nos quadros representando certos grandes homens do passado, os pintores se compraziam em realçar o personagem colocando perto dele, em segundo plano, alguma coluna com um belo jarro de flores. Ou alguma nobre cortina. Tal foi Lady Clementine Churchill: o fundo de quadro magnífico que realçava um esposo tão notável que parecia nada haver que o pudesse realçar.

Na semana que finda, li portanto com emoção a notícia de que falecera a baronesa Churchill (Elisabeth II lhe concedera este título após a morte do esposo).

Não posso ocultar, porém, que a essa emoção se associou um espanto rapidamente transformado em indignação.

A "Folha de S. Paulo" foi o jornal de nossa cidade que mais dados publicou sobre a vida de Lady Churchill. Realçou-lhe a perfeita união com o esposo, a íntima cooperação até na obra intelectual deste, e acabou por revelar que essa grande dama terminara sua vida na penúria, obrigada, para saldar seus modestos gastos, a vender até quadros pintados pelo falecido "premier".

 

 

Assim é o Estado moderno. No início do século XVIII, John Churchill ganhou para a Inglaterra várias batalhas. Por isto, foi elevado a Duque de Malborough e dotado com os abundantes recursos que lhe permitiram construir o magnífico castelo de Blenheim, mansão até hoje de um de seus descendentes. No século XX, a glória de John Churchill foi superada por um inglês da estirpe dele, isto é, por Winston, que não fez nada mais nem menos do que salvar a Inglaterra. E sua esposa morre na penúria!

Estou pressentindo à distância algum leitor socialista que uiva: estamos na época da igualdade e da justiça social!

Não disponho de mais espaço para responder a esta objeção, modelo perfeito de tolice. Justiça é retribuir a cada qual segundo seus méritos. E não é retribuir igualmente a gênios e mediocridades, heróis e pusilânimes, homens beneméritos ou egoistarrões. E se a viúva de um operário tem o direito a uma pensão correspondente ao honesto trabalho prestado por seu marido, não vejo por onde a viúva de um homem genial e benemérito não tenha direito a um "status" correspondente ao serviço de seu esposo, que salvou a pátria. 

 

Mas estou persuadido de que meu argumento não modificará o modo de pensar de socialistas e comunistas. Em via de regra, eles acham justo que a Passionária, a fera do comunismo espanhol nos idos do "Alzamiento" esteja hoje gozando dos confortáveis subsídios de deputado às Cortes de seu país. No exercício de um mandato para o qual sua velhice não lhe dá força, sua cultura não lhe dá títulos, e seu passado não lhe dá direito. E acham justo também que uma das maiores damas de nosso século morra na penúria...