Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

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7 de março de 1977

A epopéia de nobres inconformados

Chegou-me há dias uma notícia impressionante.

Instalado o terror vermelho na Indochina, nutrido grupo de vietnamitas - 94 homens, mulheres e também crianças - tinha que optar entre a submissão ao adversário e o suicídio. A submissão vexatória, revoltante, inaceitável. O suicídio, radicalmente contrário ao senso moral.

Não aceitando a alternativa, esses vietnamitas, nobremente inconformados, optaram por uma aventura trágica e fascinante. Em um barco de pesca de 26 metros, levando consigo certa quantidade de alimentos e combustível, fugiram de Saigon à demanda de terras abertas ao seu infortúnio, e de gentes sensíveis ao valor moral de tal epopéia.

A primeira dificuldade que encontraram consistiu em escapar às lanchas patrulheiras comunistas que faziam a guarda da costa. É fácil imaginar que riscos, que temores e que ardis esta faina exigiu.

Distanciados por fim dos vigias marítimos da ditadura comunista, tiveram os dignos aventureiros de enfrentar as terríveis tempestades de verão do mar da China meridional. Mais uma vez riscos, temores, lances de agilidade. E sobretudo proteção divina. Ainda nestes lances, ninguém morreu.

Como era de prever, a frágil embarcação dificilmente resistiria às múltiplas manobras a que, em tais condições, foi sujeita. Em seu leme produziu-se uma avaria, e a embarcação correu à deriva durante uma semana. Mais uma etapa, trágica, portanto. E, como é de se imaginar, ao longo de tudo isso os combustíveis e os alimentos se iam acabando.

Por fim, alegria! Os tripulantes avistaram a costa da Malásia, onde conseguiram chegar.

O leitor pode imaginar com que veneração, com que generosidade, teriam sido acolhidos os tripulantes desse barco, o qual mereceria largamente ser conservado em algum museu, e passar para a História com o nome de Barco da Dignidade. Pois as famílias que ele transportava eram mártires da dignidade, que recusaram a opção entre a escravidão e o suicídio.

Pois bem. Começa aí o mais triste da história. As autoridades de Kuala-Lumpur receberam os gloriosos trânsfugas... apenas pelo tempo necessário para reparos na embarcação. E, logo depois, obrigaram-nos a retornar ao mar, sem destino.

Não pense o leitor que esse caso é o único. Calcula-se em cerca de dois mil o número de refugiados sul-vietnamitas que vagueiam atualmente pelo alto mar, amontoados em embarcações impróprias para navegar naquelas águas.

E, como em Kuala-Lumpur, um após outro os portos do sudoeste asiático costumam rejeitá-los.

A Tailândia, na qual vivem 75 mil refugiados indochineses, na maioria cambojanos, recusa-se a receber mais esses dois mil desafortunados. Por isso, proíbe-os de descerem à terra. Mas tem a "generosidade" de lhes autorizar que permaneçam em águas nacionais.

Hong-Kong lhes permite descerem em terra descansando os membros exaustos e reanimando os corpos esquálidos, ao longo de permanências... temporárias. Nas Filipinas, nem isto. Dezenove infelizes, que apesar de tudo desceram em terra, foram aprisionados.

O governo indonésio recusou-se a acolher, sequer para reparos, uma dessas embarcações. Supercarregada e em mau estado, ela naufragou. A tripulação e os passageiros morreram.

Trinta e um náufragos de outro barco de pesca, entre os quais havia dez mulheres e catorze crianças, foram recolhidos pelo navio pesqueiro "Cap Erimo". Quando o navio chegou a Singapura, as autoridades proibiram o desembarque dos náufragos. Ele atravessou o Oceano Indico, e tentou deixar a "indesejável" carga humana no Iêmen. Mas também o Iêmen os recusou. Em seguida, os náufragos - pode-se imaginar em que condições morais e materiais - singraram para o Japão.

E aqui termino a história dos nobres e inconformados mártires da dignidade humana. Não lhe conheço o fim. Colhi-a no conceituado órgão parisiense "Rivarol", de setembro de 1976.

Como pôde dar-se isto com tais mártires, num mundo ribombante de tiradas sobre a dignidade humana?

E passo com esta pergunta à análise do conceito de "dignidade humana", tal qual ele existe nos ribombos da propaganda que, por todo lado, o celebra. E também na mentalidade de muita gente que, a titulo de mentalidade, só possui a que certa propaganda lhe sopra.

Haverá, do ponto de vista da dignidade humana, causa mais simpática e mais nobre que a desses dois mil inconformados? Haverá cidade de um passado cristão mais glorioso do que Paris, de uma cultura tradicional mais impregnada de dignidade, de uma influência mundial mais própria a irradiar um movimento de opinião mundial em prol desses infelizes mártires da dignidade?

Entretanto, não me consta que os órgãos de propaganda parisienses tenham dado maior repercussão ao fato. E se a deram, o certo é que sua repercussão morreu nos limites da cidade.

Sem dúvida, há explicações (ou melhor, atenuantes) para isso. A vida contemporânea, em contínuo torvelinho, as crises individuais, domésticas e profissionais, os problemas de saúde e outros tantos, de tal maneira lotam a atenção do homem da rua, que lhe embotam a sensibilidade.

Mas um fato é inegável. Era só tratar-se de esquerdistas, real ou supostamente maltratados em qualquer parte do mundo, que certa propaganda registraria o fato, sublimaria as vítimas, e desencadearia as piores invectivas contra os responsáveis pelas atrocidades.

Protestar em favor dos direitos humanos até mesmo de terroristas, quando autenticamente lesados: perfeito. Mas cabe aqui a pergunta: por que não reconhecer direitos humanos aos nobres inconformados do Vietnã?

- Que noção de dignidade humana é esta?

Nota: Os negritos são deste site.