Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

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4 de outubro de 1978

Em casa de Da. Edeltrudes

Dona Edeltrudes é uma senhora sólida e expansiva. Sólida em todos os sentidos. Corpulenta, vendendo saúde, atravessou ela ilesa a existência até a crista dos cinqüenta anos, a que acaba de chegar. Tudo foi cedendo diante dela. E do alto em que se encontra, contempla a maturidade provecta que tem diante de si, e a velhice que já não está tão, tão longe, com a mesma atitude com que fendeu as vicissitudes dos anos que ficaram para trás.

Falei de atitudes de alma. E é bom que eu esclareça desde já que é sobretudo pela "force de frappe" [força de impacto, n.d.c.] de sua alma, que da. Edeltrudes tem vencido. Seu físico compacto não é senão a base material, o símbolo exterior de sua alma. Da. Edeltrudes é impávida. Ela gosta de enfrentar os obstáculos e vencê-los. Sua vida é uma vitória, eu já o disse. Não, porém, à maneira de César que, em missiva ao Senado Romano, assim descreveu sua vitória no Reino do Ponto: "Veni, vidi, vici - "Vim, vi, venci". Vitória tão pronta, tão fulminante, teria desapontado da. Edeltrudes. Ela gosta dos obstáculos. Gosta de que estes lhe resistam. Porque então ela pode fazer força e entregar-se, com volúpia de pormenores, ao prazer robusto – mais próprio a um varão que a uma dama – de quebrar, de esmigalhar e de pisar em cima do que resta.

A "force de frappe" psicológica de da. Edeltrudes repousa sobre alguns tantos preconceitos, prevenções e fobias hauridos nos primeiros anos da infância, e que veio conduzindo intactos através dos vagalhões da vida.

Os preconceitos de da. Edeltrudes são assim um tanto velhos. Em nossa época, em que a ponta-de-lança da intelectualidade "avançada" proclama a necessidade da volta ao paleolítico, da. Edeltrudes ainda crê no Progresso. E com "P" maiúsculo. Ela vota a esse mito um fervor que os mais inteligentes já sentiam empalidecer quando ela era menina. Mas da. Edeltrudes com nada disso se incomoda. Entre seus envelhecidos entusiasmos, está o da Revolução Francesa. Lafayete, Mirabeau, Danton, Marat, Robespierre, ela os confunde todos na mesma admiração excitada. Ela ainda declama contra a sanha sanguinária de Luís XVI e as bacanais de Maria Antonieta. Ela está certa de que, quando a Bastilha foi tomada, regurgitava de prisioneiros inocentes que definhavam em inumanos calabouços.

De lá para cá, essa mitologia de tal maneira foi varrida pelos ventos da História que, segundo imagino, nem acreditam nela os professores primários de qualquer fundo de sertão. De São Felix do Araguaia, por exemplo, onde faz mau pastoreio, fraca poesia e forte agitação, d. Pedro Casaldáliga.

Mas da. Edeltrudes que, diga-se de passagem, admira o irrequieto bispo sertanejo, resiste ao sopro dos ventos da História. E continua, sozinha mas desinibida, a vociferar contra o apático Luís XVI e a graciosa Maria Antonieta, como se fossem dois ogres.

A sólida e compacta senhora, bem entendido, é católica. Ou, pelo menos, pensa que o é. Nesta convicção, ela é aliás confirmada por alguns padres que conhece, e que com ela conversam sobre d. Casaldáliga e alguns congêneres, dos quais são amigos.

Percebi certa vez que ela tinha uma pontinha de simpatia ardida por Lutero. A agitação do heresiarca, sua corpulência despachada e seus costumes taverneiros, a divertem. E ela julga deleitosamente picante seu brado "los von Rom".

Da. Edeltrudes também gosta um tanto de Marx. Segundo ela, o Manifesto de 1848 está na ponta do progresso.

Se fosse alguém mostrar a da. Edeltrudes as contradições que há entre o progresso anacrônico e a modernidade paleolítica, se lhe dissessem que quem lê d. Casaldáliga tem dificuldade em se defender da impressão de que, para ele, o estado dos índios, nas suas tabas, é preferível ao que temos nós, civilizados, ela diria que é mentira. E se lhe mostrasse, neste sentido, um texto sugestivo, em letra de forma (cfr. Documento "Y-Juca-Pirama – O índio: aquele que deve morrer", pp. 21 a 23, assinado por ele e mais cinco bispos e seis padres missionários), ela não permitiria sequer que este texto fosse lido. E, imaginando estar com isto vitoriosa, encerraria a conversa com alguns desaforos.

Imagine-se agora que, na presença da animosa senhora, distraí-me e afirmei que a Bastilha se achava vazia, ou quase tanto, no dia 14 de julho. Não tardou ela em chamar-me de anacrônico, obsoleto etc. E acabou por me dizer que, para mim, o país ideal seria à maneira de uma imensa Bastilha, toda cercada de altas muralhas, dentro das quais os homens levassem a vida monótona e lúgubre dos sentenciados.

"Isto mesmo" – exclamei. "E, mais ainda. Sonho com que, em torres de vigia ao longo dos muros, se postassem soldados com moderníssimas metralhadoras. De quando em quando, de seis em seis metros, digamos, haveria dispositivos automáticos para disparar contra quem tentasse fugir. Se alguém não fosse atingido, esbarraria em pérfidos fios elétricos. No alto do muro, lâminas cortantes para seccionar os dedos de quem nelas se apoiasse. O trânsfuga insolente despencaria assim para o chão.”

Olhei bem de frente da. Edeltrudes. Ela inteira fremia: "É isso mesmo. Ainda bem que o sr. confessa hoje o que lhe vai dentro da alma. Eu bem que desconfiava que o sr. e todos esses devotos de Santos Inquisidores, o seu São Pio V, o seu São Raimundo de Penhaforte, o seu São Pedro de Arbués, que andam por aí, pensam assim". Ela conclamava desse modo os circunstantes a me cobrirem de desdém e de pedradas.

Eles, que me têm certa simpatia, estavam desolados à vista da minha manifestação de mórbida crueldade. Eu, porém, não me sentia moído nem quebrado pela robusta senhora. E nem deixei que ela pisasse longamente sobre mim.

Disse-lhe: "Não se zangue tanto, da. Edeltrudes. Ou antes, zangue-se. Zangue-se mais ainda, porque não há zanga que baste. Não se zangue porém contra mim. Pois esse regime das altas muralhas, não o quero e não o implantaria. Mas implantaram-no, não propriamente amigos seus, mas amigos de amigos seus. Acabo de descrever a nova muralha (como se não bastasse a existente) que a Alemanha comunista acaba de fazer chegar do Báltico à Checoslováquia, numa extensão de mais de mil quilômetros. E dotada com todos os aparelhamentos excogitados pelo progresso que a sra. tanto admira. Inclusive as lâminas corta-dedos. A obra foi supervisionada e ajudada por técnicos soviéticos".

Pensa o leitor que da. Edeltrudes explodiu? Quando ela se deu conta da cilada que eu lhe pregara, sua indignação contra as tais muralhas (perto das quais a Bastilha não passava de um brinquedo de criança) foi diminuindo. No fim de minha descrição, sua fisionomia deixava ver que ela estava achando compreensível, e quase simpática, a tal muralha.

Junto ao muro de Berlim, cruzes recordam pessoas assassinadas ao tentarem escapar do "paraíso" comunista

Mas os circunstantes estavam às gargalhadas.

Para defender-se, da. Edeltrudes me disse: "Dr. Plínio, isso tudo é fantasia sua. São os senhores reacionários, fanáticos, que inventaram coisas dessas".

Eu: - "Mas da. Edeltrudes, li tudo isso num jornal fanaticissimamente antifanático, que é o "New York Times". Foi o insuspeito Drew Middleton quem contou tudo isso".

Ela: - "Eu lá tenho obrigação de ler o "New York Times"?"

Eu: - "Realmente, não. Mas foi um matutino paulista, de boa circulação, que o publicou".

Ela: - "O sr. é um homem negativo. Não deixa em paz os comunistas".

Eu: - "E a senhora o que quer para eles é a tranqüilidade! Compreendo. São amigos de seus amigos. "Amigo de meu amigo, meu amigo é" - diz o velho provérbio".

Em torno de mim, os risos iam cessando, e todos iam falando baixinho sobre outros assuntos, para deixar menos mal-à-vontade da. Edeltrudes. E também eu mudei de assunto. Afinal, era ela a dona da casa...