[O] VATICANO E O KREMLIN

 

O "Legionário" n.º 46, 10 de novembro de 1929

 

Em meio [à] efervescência política que provoca a questão da sucessão presidencial, a qual divide em partidos antagônicos as classes conservadoras do país, nota-se que uma propaganda astuta, dirigida por hábeis e discretas mãos estrangeiras, tenta lançar na sociedade brasileira os terríveis germens da dissolução social que já minam diversas nações da Europa, da América e até da Ásia.

O vírus soviético, inoculado a princípio exclusivamente nas classes operárias e servis que, pela sua ignorância, se mostram mais predispostas a receber e sustentar os princípios bolchevistas, manifestava-se de quando em quando através de greves violentas que bem caracterizavam o espírito que animava certa parte de nosso proletariado. Hoje, porém, as labaredas do incêndio que os agentes do sovietismo moscovita tentam atear no edifício político-social brasileiro, longe de crepitarem discretamente nos meios operários, estendendo-se às universidades e escolas superiores, atingem as camadas municipais e os poderes legislativos dos Estados da União.

Se já é assustador o triste espetáculo dos sucessos meramente políticos dos agitadores russos, o que dizer da infiltração dos ideais de Lenine no seio de nossas classes armadas? Qual o comentário que merecem os desumanos planos de massacre de superiores hierárquicos que, há meses, as autoridades do País descobriram entre os tripulantes das mais poderosas unidades da Marinha de Guerra?

Fiel ao seu princípio, nunca desmentido, de absoluta indiferença em relação às lutas políticas que se possam travar em torno das questões de interesse para a nação, "O Legionário" certamente silenciaria a respeito da propaganda política soviética, como o faz em relação à de outros partidos, se não o chamasse à liça a voz do dever. Os sentimentos patrióticos, dos quais "O Legionário" será sempre o porta-voz, revoltam-no contra esta campanha que se esconde com habilidade, para explodir bruscamente contra as mais santas tradições de nossa Pátria. O caráter de órgão essencialmente católico, de que se reveste "O Legionário", impõe-lhe o dever de, na medida de suas forças, dar o brado de alarma contra o inimigo astuto que, aos poucos, se introduz nesta imensa cidadela católica que, graças a Deus, é o Brasil.

O fulgurante escritor católico, que é o Sr. Tristão de Athayde, em recente e magistral trabalho sobre o momento político atual, afirmou, com uma agudeza de vistas magnífica, que os dois pólos do mundo político presentemente são o Kremlin e o Vaticano. Nada há de mais verdadeiro. Entre a civilização cristã e o caos assustador do sovietismo, há um destes abismos que nada pode preencher. As chagas sociais que a Igreja, segundo a palavra augusta e imortal de seu Pontífice Leão XIII, procura curar com o bálsamo suavíssimo das virtudes cristãs, sincera e inteligentemente praticadas, o sovietismo procura envenená-las com o sangue do massacre e avivá-las com o gume criminoso de sua espada implacável.

No entanto, telegramas vindos de Roma nos davam notícia de negociações entre Monsenhor Pacelli e o Sr. Ketinsky, respectivamente Núncio Apostólico e embaixador russo junto ao governo alemão, no sentido de se reatarem as relações diplomáticas entre o Kremlin e o Vaticano.

Telegramas posteriores anunciam que o governo soviético só negociaria com a Santa Sé se esta renunciasse a todas as prerrogativas de que gozava a Igreja sob o regime czarista e constrangesse seus fiéis a se contentarem com uma simples "liberdade relativa" dentro das igrejas.

As referidas negociações a respeito do reatamento das relações entre a Rússia e a Santa Sé foram desmentidas pela Chancelaria Pontifícia e pelo "Osservatore Romano". No entanto, convém tecer algumas ponderações.

Em primeiro lugar, é notável a redação dos referidos telegramas. Eles todos fazem supor que a Santa Sé, suplicando aos soviets que restabelecessem as relações diplomáticas, transigia com o comunismo. Convém porém notar que o único interesse que a Santa Sé pode ter em tal reatamento é o de difundir na Rússia atual, onde os escombros sinistros do cisma russo facilitam a tarefa do ateísmo soviético, as sublimes verdades da Religião Católica. É evidente que a propaganda católica tornar-se-ia extremamente fácil em um terreno onde a falsa religião ortodoxa e o materialismo, destruindo-se mutuamente, abririam o caminho que trilharia, vitorioso, o catolicismo. No entanto, qualquer propaganda católica, pelo fato de ser católica, será ao mesmo tempo anti-soviética. As autoridades soviéticas, verificando esta verdade, sempre se furtaram a um reatamento diplomático que, aliás, nunca foi pedido pelo Vaticano.

Julgamos necessário salientar estes aspectos do problema diplomático das relações entre o Kremlin e o Vaticano, para pôr em destaque os quatro seguintes pontos: 1) A Igreja Católica, mantendo intactos os princípios firmados por Leão XIII em sua luminosa Encíclica Rerum Novarum, coloca-se em relação à questão social, em um ponto de vista diametralmente oposto ao do comunismo; 2) esta posição da Igreja em face da questão social não pode, em caso algum, ser alterada, porquanto qualquer concessão feita aos ideais socialistas ou comunistas, fora dos limites traçados por Leão XIII, é, indubitavelmente, contrária aos princípios cristãos; 3) a Igreja não tentou negociar com o governo russo; 4) se o Vaticano estabelecesse relações diplomáticas com o Kremlin, de modo algum poderia este fato significar qualquer transigência da Igreja em matéria de princípios. Assim, por exemplo, o Santo Padre mantém um Núncio Apostólico junto ao rei da Inglaterra, chefe da seita anglicana, sem que, por isso, de modo algum, nossa Religião pactue com os erros do anglicanismo. Estas relações diplomáticas vêm a ser apenas uma conseqüência de um modus vivendi estabelecido entre os católicos, e sua Igreja, e o governo da nação com a qual as referidas relações se mantêm.

Como conclusão, é indispensável que se saliente que, além de péssimo patriota, será infiel à Religião Católica o brasileiro que, direta ou indiretamente, prestar seu apoio à campanha comunista que se vem desenvolvendo entre nós. Traindo os interesses de sua pátria, cujas portas abre assim aos propagandistas do saque e do morticínio, todo brasileiro que preste seu apoio a qualquer iniciativa concernente à questão social, fora dos princípios da Igreja, ataca seriamente os mais inabaláveis fundamentos da sociedade cristã.

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