Legionário, No 304, 10 de julho de 1938

O Estado-Pedagogo

Publicaram nossos jornais do dia 2 pp. que “foi assinado o decreto-lei instituindo no Ministério da Educação, como um de seus órgãos de cooperação, o Conselho Nacional de Cultura, que será o órgão de coordenação de todas as atividades concernentes ao desenvolvimento cultural, abrangendo, entre outras, as seguintes finalidades:

a) produção filosófica, científica e literária;

b) o cultivo das artes;

c) a difusão cultural entre as massas através dos diferentes processos de penetração espiritual, isto é o livro, o rádio, o cinema, o teatro, etc.;

d) a propaganda e a campanha em favor das causas patrióticas e humanitárias;

e) a educação física através de toda sorte de demonstrações coletivas;

f) o esporte coletivo.”

Esperemos porém, que o Estado Novo se oriente de modo conveniente. Para tanto, não lhe faltam as luzes de muitos dos auxiliares de que, com alto critério, se cercou.

Como se vê, a enumeração é formidável. Manda o respeito devido às autoridades constituídas que se suponha que este decreto será cumprido, e que não está fadado a ficar como letra morta, ao lado de numerosas outras resoluções legislativas de todos os períodos de nossa vida política, que dormitam placidamente nos arquivos ministeriais, sem nunca  ter entrado em vias de realização. O que, portanto, devemos supor, é que temos diante de nós o Estado Brasileiro assumindo a responsabilidade onerosa da formação e da educação do País.

Não vai o menor exagero nesta afirmação. O Estado Novo, por meio do referido decreto, assumiu nitidamente papel de Estado-pedagogo. Realmente, regulamentando a produção filosófica, literária e científica, o Estado Novo chama a si uma função que poderá ser preponderante na elaboração do pensamento brasileiro. Por outro lado, regulamentado o exercício de todos os meios de difusão do pensamento elaborado sob seu controle, o Estado Novo, depois de ter intervindo nos meios onde o pensamento se elabora, ainda chama a si a tarefa de difundir este pensamento. É o Estado, pois, que dirigirá os que ensinam e os que aprendem, os escritores e os leitores, os professores e os alunos, as elites e as massas. E, para isto, ele mobiliza os meios mais assombrosos e eficientes que a civilização põe ao seu alcance, a imprensa, o rádio, o cinema e o esporte.

*  *  *

Consideradas as coisas com serenidade, ninguém pode negar que, sob o ponto de vista rigorosamente teórico, a atitude que o Estado Novo assume em virtude de sua orientação atual é mais inteligente do que a do “État gendarme” [Estado policial]. A Igreja sempre protestou contra a aberração dos liberais, que consideravam que o Estado tem como única função policiar a sociedade. Cifrar-se o Estado à função simplesmente repressiva do policiamento é um disparate. Ou o Estado trata de preservar a mentalidade pública dos erros que a podem conduzir à rebelião e ao crime, ou ele será fatalmente esmagado pelas ondas crescentes das revoluções e das imoralidades que ele não poderá simplesmente coibir por via de repressão policial. Só um cego não pode ver isto. E um cego que não queira ver.

Com o referido decreto, o Estado Novo se aparelha, pois, a cumprir seu dever, intervindo em uma esfera legislativa até hoje deixada quase inculta, e na qual ele tem deveres dos mais graves, de que não poderia descurar sem incorrer em alta traição.

Vê-se, pois que não temos a tendência de corroer com restrições excessivas a esfera de ação de Estado. Muito pelo contrário, censurá-lo-íamos asperamente se ele não exercesse seus direitos em sua plenitude. O Estado deve interessar-se pela formação da mentalidade dos cidadãos. Esta verdade foi sempre proclamada pela Igreja, e só um espírito envenenado pela mais perniciosa peçonha de liberalismo poderia levantar contra isto qualquer contestação.

*   *   *

No entanto, o que até aqui dissemos corresponde apenas a uma parte da verdade. Agora, vejamos a outra parte.

O Estado-pedagogo deve interessar-se pela formação da mentalidade de seus cidadãos, dizíamos. Mas que mentalidade? Evidentemente, uma mentalidade iluminada pelo conhecimento da Verdade e dirigida para a prática do Bem. É lógico. Desde que o Estado se queira erigir em guia intelectual, ele deve, evidentemente, orientar os cidadãos para a Verdade e o Bem. Porque um guia que orientasse para o Erro e o Mal não seria um guia, mas um traidor.

Assim, pois, o Estado-pedagogo não pode ser um Estado laico. Ele precisa ter um conceito oficial sobre o que seja a Verdade e o Bem. Não lhe basta, ao Estado Novo, alfabetizar. Ele quer educar. O Estado Novo deve estar a mil léguas de distância das campanhas simplesmente alfabetisadoras  do Sr. Mário Pinto Serva ou da Sra. Chiquinha Rodrigues. O que estes insignes “leaders” liberais quereriam é que se ensinasse a ler, simplesmente a ler. Depois, cada qual que fizesse dessa aptidão o uso que quisesse. Não é assim o Estado Novo. Ele não tem o mito da pura instrução informativa. Ele quer educar, formar, guiar. E, para educar, ele precisa ter uma posição oficialmente tomada a respeito de Religião, de Filosofia, etc., etc. Um pedagogo sem um ideal de Verdade e de Beleza a realizar no educando é o mesmo que um guia ou um viandante que caminha sem rumo, ou um artista que pinta ou esculpe sem ter a intenção de representar qualquer figura.

Tome-se o primeiro “item” do decreto que citamos. Refere-se ele à “coordenação” das atividades filosóficas, científicas e literárias. O que quer dizer isto? “Coordenação”, evidentemente, não significa que cada qual poderá impingir ao próximo os sistemas filosóficos que preferir. Isto é descoordenação. Descoordenação e nada mais, acrescentaria um “speaker” famoso... Se o Estado precisa “coordenar”, ele precisa ter uma posição filosófica e religiosa própria. Não se trata aí de uma coisa facultativa. Coordenar é assim. E o que não for assim será simplesmente descoordenar.

*   *   *

No dia 5 de julho último, o Governo promulgou um decreto que poderá  ter conseqüências infinitamente maiores do que as do 5 de julho revolucionário. - Que devem pensar a este respeito os católicos, diretamente interessados no assunto?

Chegamos, agora, finalmente, ao caso. Segundo a doutrina católica expressa pela Santa Igreja de modo tão solene que os fiéis não a podem recusar, cabe à Igreja, em coordenação com o Estado, mas com direitos que tem primazia incomensurável sobre os deste, fazer a educação de um povo.

Um católico não pode deixar de reconhecer que a Santa Igreja é a depositária infalível da Verdade e a mestra indefectível do Bem. Se a função do Estado é de construir uma civilização alicerçada sobre o conhecimento da Verdade e a prática do Bem, seu dever fundamental consiste em dar todas as facilidades à difusão da doutrina católica, em colocar nas mãos da Santa Igreja de Deus todos os meios para desenvolver seu Apostolado, em professar oficialmente a doutrina católica, e, finalmente, em não se prestar à propagação de doutrinas contrárias à da Igreja, principalmente nos estabelecimentos públicos do ensino.

Em outros termos, em um país de católicos, a função educadora do Estado consiste, antes de tudo, em abrir campo para a função educadora da Igreja e em criar barreiras às doutrinas que se oponham a esta função. O que não for isto, ou o que for contra isto, é erro, e erro palmar.

Chegamos agora ao “ponto nevrálgico”.

O Estado brasileiro, oficialmente, é laico. Quer isto dizer que ele não tem Religião oficial, nem doutrina filosófica oficial. Como, pois, se fará esta “coordenação”, esta “educação” que ora o Estado empreende? Que doutrinas presidirão a essa coordenação?

O problema aí está. Devemos confiar em que ele seja resolvido com espírito prático, e em estreita harmonia de vistas com o Episcopado Nacional. O Episcopado é o primeiro a desejar que não se cuide atualmente de estabelecimento de uma Religião de Estado, e parece-nos que ele tem para isto razões das mais ponderáveis e dignas de atenção. No entanto, convém que a ação educacional do Estado Novo se faça sempre em conformidade com a doutrina católica e só com ela. Porque, para os católicos, é sem dúvida preferível, e muitíssimo preferível, que o Estado em lugar de ser um simples gendarme [policial], exerça sua função educadora de modo a proporcionar ao povo o conhecimento do Bem e da Verdade de que a Igreja é a única depositária. Entretanto, se em lugar disto o Estado ensinasse ou erro ou o mal, melhor ainda seria o “État gendarme”. Porque é melhor não dizer nada, do que dizer ou fazer o mal. Calar é ouro, diziam nossos maiores...

Esperemos, porém, que o Estado Novo se oriente de modo conveniente. Para tanto, não lhe faltam as luzes de muitos dos auxiliares de que, com alto critério, se cercou.