Legionário, n.º 339, 12 de março de 1939

REX PACIFICUS

Plinio Corrêa de Oliveira

No dia em que se desenrolam em Roma as cerimônias faustosas da coroação do novo Pontífice, deve ser grato aos corações católicos meditar atentamente as circunstâncias dentro das quais essa solenidade se realiza.

No século passado, em que o liberalismo político grassava pela Europa inteira, agravado por uma monomania democrática vizinha do delírio, as grandes solenidades pontifícias se desenrolavam não raramente sob o olhar hostil e a censura surda de grandes setores da opinião pública. Evidentemente, durante toda a vida da Igreja, nunca faltou a esta o amor de filhos dedicados e entusiastas. Entretanto, é incontestável que, no século passado, os fulgores dessas belas provas de amor alternavam sombriamente com o rancor igualitário daqueles que, na faina de destruir toda a ordem religiosa, política e social, não suportavam o espetáculo grandioso das cerimônias do Vaticano. Os argumentos não faltavam para servir de pretexto a tanto rancor. O primeiro deles, já antigo, era da autoria de Judas Iscariotes: por que gastar tanto dinheiro, em lugar de dar aos pobres? O outro, de sabor mais acentuadamente luterano: não haverá idolatria em se prestar a um homem tantas provas de sumo respeito? Finalmente, a blasfêmia anarquista não deixava de se fazer ouvir neste triste concerto: quando chegará o dia feliz em que enforcaremos o último Papa nas tripas do último rei?

A Santa Sé nunca deu atenção a tais rancores. Com uma sublime e desassombrada energia, ela continuou a manter intato seu magnífico e suntuoso cerimonial, que outra coisa não é senão a afirmação, através de cerimônias perceptíveis pelos sentidos, do princípio da autoridade, de que o Papa é o mais alto e mais sagrado representante na Terra.

Nas fileiras católicas, não faltou infelizmente quem tivesse a audácia de propor à Santa Sé que, para conciliar melhor as simpatias das massas, e vencer mais facilmente a revolução social que se fazia prenunciar de modo sinistro, o Papado se "democratizasse" e o Pontífice Romano renunciasse às manifestações exteriores e solenes de seu supremo poder.

A Igreja, entretanto, nunca deu ouvidos a essa falaciosa proposta. Não é de seu feitio transigir com o erro, ou procurar entabular com ele um duelo de subtilezas e astúcias. No momento em que o princípio de autoridade periclitava no mundo inteiro, pondo em risco a autoridade de todos os monarcas e chefes de Estado, não era o Vigário de Cristo, do Qual provém toda a autoridade, que tomaria ares de pactuar com a revolução. A missão da Igreja não consiste em se adaptar aos séculos, mas de adaptá-los a si própria. Ela nunca baixará até os erros dos homens, mas elevará a humanidade até si.

Por isso, enquanto as monarquias ruíam fragorosamente, as repúblicas se dissolviam na anarquia das crises sociais, e as mais antigas dentre as cortes sobreviventes se democratizavam a olhos vistos, o Vaticano conservou intacto seu grandioso cerimonial.

Vem, agora, o outro aspecto da questão.

* * *

Um verdadeiro vendaval político-social foi a conseqüência da pregação das doutrinas liberais. Esse vendaval suscitou a tendência geral para uma consolidação de autoridade. Todos os povos, outrora minados pela febre da liberdade, se sentem hoje trabalhados por uma intensa propaganda a favor da consolidação do Poder público, com preterição ou até supressão dos mais sagrados direitos da pessoa humana. Os novos césares, como o exige a natureza das doutrinas que pregam, sentem a necessidade de confirmar sua autoridade com os sinais exteriores do poder, desenvolvidos através de imponentes cerimônias cívicas. E, com isso, todo um cerimonial político renasce em nossos dias, que bem poderia ser chamado a liturgia faustosa dos novos ídolos que as massas levantam acima de si mesmas para lhes prestar adoração.

Interessante é notar, a esse propósito, o ambiente que cerca essa nova e estranha liturgia política. Duas notas a caracterizam: força e domínio. Atente-se para uma cerimônia nazista. Em algum imenso estádio da Alemanha, comprime-se uma multidão incontável, que se torna cada vez mais densa porque os ônibus e os trens despejam ondas humanas sempre mais numerosas. Para encher o tempo, inúmeros alto-falantes transmitem a voz de um locutor. Do que fala ele? Da luta do partido nazista, de suas vitórias passadas, dos inimigos que esmagou, esmaga e esmagará. Quando, ao cabo de uma longa série de injúrias e de ameaças, o locutor se cala para tomar fôlego, a multidão entoa cânticos guerreiros. Refletores deslumbrantes erguem para o céu colunas verticais. Uma tribuna imensa, composta de blocos graníticos pesados e brutais, se ergue no centro de tudo isso. De repente, estrugem gritos e urros de entusiasmo. É o "führer" que chega. As canções guerreiras redobram. Os canhões estrugem. A multidão ulula como um mar enfurecido. O "führer" começa a falar: do outro lado das fronteiras, Chamberlain treme de medo, apoiado em seu guarda-chuva; Daladier prefere fingir que não ouve, para não ter de brigar (como os meninos bem educados, quando passam perto dos moleques na rua e ouve seus insultos, fingindo não notar nada). Mussolini presta atenção: é tão bonito; quem sabe se ele conseguirá fazer igual! Roosevelt não entende bem como é que, tendo ele tantos milhões de dólares, Hitler não é amigo dos Estados Unidos. E os povos fracos da terra tremem. Para completar o quadro, seria suficiente que uma legião de demônios aparecesse no céu, vociferando em gritos agrestes: glória ao novo messias, a opressão, na terra, para os povos que não têm canhões! E o mundo inteiro aplaude ou treme; mas, quer aplaudindo, quer tremendo, secretamente admira!

É sob o signo dessa dura liturgia do ódio e da guerra, do sangue e da luta, que o mundo curva a cabeça em atitude respeitosa e admirativa. Nessas grandes festas públicas, não há outro gáudio senão o do orgulho exacerbado e do ódio satisfeito. Não são propriamente festas, esses tremendos "sabbats" cívicos. São bacanais em que as multidões não se embriagam mais, como no tempo dos césares, com o vinho capitoso e subtil das plantações itálicas, mas com o licor espiritual grosseiro, de um patriotismo levado até à loucura.

Enquanto isso, morre para o mundo e nasce placidamente para o Céu o Papa Pio XI. Sua morte não anunciada pelo troar dos canhões, mas pelo som paternal e suave dos sinos de São Pedro, que repercutem de campanário em campanário, até os extremos da China ou da Groenlândia. Nenhum Departamento de Propaganda engaiola as multidões para levá-las à força para Roma. Mas Roma se enche de uma multidão que faria babar de inveja o Ministério da Propaganda da Alemanha, e muitas repartições congêneres de outros países. Não há desfiles marciais de soldados, nem desenrolar de tropas agressivas. Apenas a "gendarmerie" pontifícia, que contém e policia paternalmente a multidão pacífica e enlutada.

Anuncia-se, depois, o novo Papa. Uma multidão aguarda seu nome. Outras multidões afluem de todas as ruas e de todos os becos de Roma, para saber quem foi o eleito. Todo o mundo aplaude. Mas, ainda aí, não há outro eco senão o das sonoras e musicais trombetas de prata dos arautos, as harmonias graves dos sinos da Cidade Eterna, e os vivas da multidão. Não, o Vaticano não é a caserna em que o gado humano é arregimentado para a carnificina, mas a casa suntuosa, porém acolhedora, do Pai comum, que é o lar espiritual de todos os povos da terra, que ali ombreiam uns com os outros, numa alegria despreocupada e pacífica, de que só o Vaticano, hoje em dia, é teatro.

Finalmente, anuncia-se a coroação do Papa. Nenhuma cerimônia, no mundo inteiro, é mais majestosa. Nenhuma, porém, é ao mesmo tempo mais pacífica, mais serena, mais familiar. O povo não treme diante de um ídolo, mas delira de contentamento diante de um Pai. O povo não se ajoelha diante de um algoz, mas beija reverente os pés daquele que é uma branca e suave figura. E na majestade de seu porte, a Santidade e a Majestade suprema do Criador.

E, no menor Estado do mundo, que é o Vaticano, uma das maiores multidões que a Itália - mesmo a fascista - tenha jamais contemplado, celebra, à sombra do Vigário de Cristo, ao mesmo tempo a mais pacífica e a mais jubilosa das cerimônias deste sinistro século de lutas e de guerras.