Legionário, N.º 599, 30 de janeiro de 1944

Uma experiência que não deve ser esquecida

Quando os Aliados em 1918, trataram de reorganizar o mundo, tomaram por base ideológica de seu empreendimento os conceitos humanitários, filantrópicos, ligeiramente impregnados de otimismo evolucionista, que dominavam mais ou menos todos os estadistas ou jurisperitos do tempo, e que encontraram em Wodroow Wilson não só seu doutrinador mais convicto, mas sua encarnação mais característica.

A chave de cúpula que rematava todo o edifício oriundo dos princípios wilsoneanos era a Liga das Nações, vasto conselho de todos os povos do universo, em que as questões internacionais, resolvidas segundo a justiça e a equidade pelo voto das delegações presentes, já não pudessem gerar guerras de molde da que acabava de se encerrar.

Os povos pagãos antigos não conheceram este ideal. Para eles, a paz mundial não poderia ser realizada senão pela dominação de todos os povos sob o cetro de um só príncipe vencedor. A decantada "pax romana" não foi outra coisa. Só a Igreja Católica poderia revelar ao mundo as doutrinas capazes de fundamentar a concepção grandiosa de uma harmonia universal baseada na igualdade de direitos de todos os povos. Só ela poderia comunicar às inteligências bastante luz, às vontades bastante força para realizar este ideal. De fato, no passado só ela chegou a esboçar com nitidez, e a realizar com sua imperturbável e invencível paciência a estrutura supranacional do Ocidente. Não conheço estudo mais necessário para a solução dos problemas contemporâneos que o da estrutura ideológica e jurídica do Sacro Império Romano Germânico. Os tolos sorrirão diante da afirmativa. Na Idade Média os povos não conheciam o petróleo, nem os arranha-céus, nem os aviões. Naquele tempo, não se sabia nem construir nem destruir com a eficiência de hoje. O mundo ainda se retardava na contemplação da arte gótica, porque não tinha experimentado o sabor picante, ágil, subtil, da arte aerodinâmica. Dizer que o estudo do Sacro Império poderia contribuir em qualquer sentido para a solução dos problemas atuais seria tão ridículo quanto sugerir que para a solução dos problemas de trânsito em Nova York se estudassem as seges em uso na corte de Luís XV, ou as carruagens da corte de Maria Teresa. Do Sacro Império pouco se sabe além do que sobre ele disse Voltaire: "não foi sacro, nem império, nem romano", brincadeira fácil para quem, como Voltaire, tomava os termos em seu sentido literal, e não sabia debaixo de que ângulo profundo e verdadeiro o Império merecia bem os epítetos gloriosos de "sacro" e de "romano”. Depois de Voltaire, depois de Frederico II, veio Napoleão. Depois de Napoleão, o Tratado de Viena. Lutero cindira o Império. Voltaire ridicularizara a invalidez que lhe veio da cisão religiosa. Frederico II rompeu o equilíbrio político tão gravemente comprometido pela heresia protestante. O Tratado de Viena extinguiu o Sacro Império. O único protesto contra esta extinção foi do Núncio Apostólico. Nesse Congresso de Reis, só o embaixador do Papa compreendia tudo quanto perdia a Europa ocidental, monárquica e cristã, com essa medida política que representava a renúncia definitiva a um plano de federação de todas as monarquias cristãs sob a égide de São Pedro. A época dos sonhos de fraternidade universal parecia definitivamente rompida. A extinção do Sacro Império representou a adoção oficial, exclusiva, sem rebuços, da chamada "política de equilíbrio", que já vinha de longe. Não se esperou mais a paz, de qualquer entidade internacional.

A idéia de uma justiça universal para regular as relações entre os povos desapareceu como antiqualha gótica. O mundo esperou a paz da formação de dois grupos armados até os dentes, iguais em tudo, no ódio, na ambição, nas forças. O equilíbrio destes dois grupos tornaria a guerra igualmente arriscada para ambos. Daí o serem intransigentemente pacifistas, e tanto mais pacifistas quanto mais numerosos fossem os canhões, os aliados e as reservas de mantimentos de cada lado. Essa bela quimera redundou na guerra européia. O equilíbrio das forças não evitara a guerra, mas produzira outro resultado, inteiramente inesperado: o prolongamento das hostilidades, o alastramento da guerra ao mundo inteiro.

Era preciso voltar ao "sonho medieval" nascido do flanco da Igreja. O equilíbrio entre os adversários só produzira ódio. Quem sabe se uma estrutura universal seria capaz de gerar amor?

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Foi essa a gênese mais profunda da Liga das Nações. Os ideais filantrópicos, humanitários, evolucionistas do início do século XX se apoderaram do tema, e lhe deram um revestimento ideológico moderno. Restaurar-se-ia uma superestrutura de povos. Mas o Sacro Império era monárquico e cristão. A Revolução Francesa republicanizara e laicizara o mundo. A Liga das Nações, feita à imagem da nova Europa, republicana e laica, era um organismo de constituição republicana e laica, destinado a realizar no mundo de hoje a parte das funções do Sacro Império que o mundo republicano e laico seria capaz de compreender e aprovar.

Em outros termos, procurou-se ajeitar segundo as exigências do paladar moderno uma instituição muito antiga e muito venerável. Daí nasceu a Liga das Nações.

Evidentemente, esses paralelos entre ela e o Sacro Império não foram evocados pelos demiurgos que a fundaram. Seria para eles a última das humilhações, para sua obra a mais grave das injúrias, qualquer comparação com o velho edifício "anacrônico", "tirânico”, "gótico" do Sacro Império. Comparação injuriosa como a que assimilasse uma girl dos dancings então em voga, com uma múmia do tempo de Ramsés II. Mas o fundo das coisas não deixou de ser esse. A Liga das Nações, em suma, procurava ser, intencionalmente ou não, conscientemente ou não, a herdeira e continuadora de parte dos planos magníficos com que a Igreja dotara, tirando-os do tesouro da Revelação, o Sacro Império.

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Mas a Liga das Nações, leiga como era, não poderia admitir em seu grêmio o Santo Padre. O Papa, por toda parte onde está, é naturalmente o Mestre, o Pai, o Rei. Qualquer que fosse o lugar que lhe coubesse na mesa dos debates, a presidência seria onde seu representante se sentasse. Nem todo o "farol" jornalístico em torno dos grandes homens do momento, nem todas as maquinações dos bastidores conseguiriam evitar isto. O centro de gravidade seria inevitavelmente ele. Admiti-lo como presidente, ou não o admitir, era uma alternativa inevitável.

Apareceu, para o excluir, um magnífico pretexto. A Santa Sé não tinha território, muitos povos não reconhecem o Papa como soberano. Não seria possível, pois, admiti-lo como tal.

O Papa, pois, ficou posto à margem da Liga. Mas como é só ele que tem as Chaves que abrem e fecham, o poder de ligar e de desligar, sem Ele a Liga nada ligou. O mundo continuou tão desligado quanto antes. A Liga foi o maior fracasso diplomático dos tempos modernos.

Quando o edifício estava próximo do declive, quando já não estava distante o dia em que nas poltronas rareariam os ocupantes, o solo estalaria por debaixo dos pés dos que ficavam, uma atmosfera de debandada se generalizaria, a Liga convidou o Papa para fazer parte de seu cenáculo. Pio XI não quis. Era tarde...

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Bento XV recomendou expressamente aos católicos que distinguissem na Liga dois aspectos diversos. Por seu laicismo, estava cindida do único princípio que lhe poderia dar vitalidade, que é o Catolicismo. A idéia da justiça e da paz entre os povos nasceu da Revelação, e morrera em todos os lugares de onde a crença na Revelação fora excluída. Cultivar a paz em um mundo leigo, em uma organização leiga, é o mesmo que cultivar rosas ou lírios nos arenais do Saara. Assim, esperar da Liga um sucesso durável era positivamente contrariar a doutrina católica.

Mas, se a Liga não tinha base, muitos de seus objetivos eram bons. Na consecução desses objetivos, a Igreja poderia colaborar com a Liga, os católicos deveriam fazê-lo. Fazê-lo para promover algum bem, um bem módico, momentâneo, mas enfim um bem. Nunca, porém, para esperar da Liga uma salvação que só de Cristo e de sua Igreja se pode esperar.

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Fala-se muito na organização do mundo post-guerra. Queiram-no ou não o queiram os homens, o segredo da durabilidade, da dignidade, da glória dessa organização estará na situação que, nela, ao Sumo Pontífice se atribuir. Se o Papa for o centro do mundo novo, ele poderá durar. Se o mundo se organizar com preterição ou olvido da autoridade do Papa, o Papa continuará, mas o mundo ruirá mais uma vez. Porque o Papa é o centro da terra, o fundamento da ordem, a fonte de felicidade, da virtude e da glória. Com ele, com Cristo, tudo florescerá. Deus nos livre de que se queira organizar o mundo sem ele. Os escombros fumegantes da Europa atual, a desolação da Liga das Nações conspurcada, abandonada, ridicularizada, depois de tão ardentes esperanças, constituem a grande lição de que não nos devemos esquecer.