Legionário, N.º 627, 13 de agosto de 1944

Dom Vital

Como dizíamos em nosso último artigo, a opinião pública não conhece senão muito confusamente Dom Vital. Ela sabe vagamente que foi um rijo campeão da causa católica, pugnaz e inflexível, que chegou a sofrer pena de cadeia para cumprir seu dever de Bispo. Tem-se a impressão de que os problemas que Dom Vital enfrentou já não têm qualquer proporção ou nexo com os de nossos dias. É uma figura de interesse exclusivamente histórico. Passou. Certa fama que lhe resta não é senão o eco amortecido do muito alarido que em torno de si levantou. Como foi grande e foi Bispo, é razoável que de quando em vez os católicos lhe prestem alguma homenagem. E é quanto basta. Entre nós, católicos, é evidente que as coisas não se passam tão simplesmente. Conhece-se melhor Dom Vital, sabe-se que lutou contra todas as astúcias e toda a violência da seita maçônica, e que morreu mártir de sua fidelidade ao Romano Pontífice. Ainda aí, porém, há muita superficialidade ou mesmo muita ignorância que dissipar. Não se sabe que a luta de Dom Vital estende até nossos dias seus efeitos benéficos, não se reflete que Dom Vital não nos legou apenas louros, mas exemplos, que não nos basta guardar uns mas devemos imitar outros; que o apostolado de Dom Vital está longe de se ter encerrado nos dias de sua vida, porque seu espírito, seu método, suas virtudes foram para o Brasil um verdadeiro legado espiritual, a indicação dos caminhos em que devemos nos firmar, se quisermos chegar à realização dos desígnios que a Providência tem para nós.  E porque nada disto se sabe em certos meios não é raro vermos a glorificação de Dom Vital promovida por pessoas que, se vivessem no tempo dele, teriam liderado o partido dos “panos quentes” que tanto o fez sofrer; e que perante os problemas dos dias de hoje mantém uma conduta diametralmente oposta a todo o exemplo que Dom Vital nos legou.

A título de apagada contribuição para a magnificência do centenário do grande Pastor olindense, consagremos a Dom Vital algumas laudas da edição de hoje.

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Não é possível compreender todo o alcance da “questão religiosa” que foi a grande cruz, o grande martírio de Dom Vital, sem uma análise metódica de todos os aspectos do problema, do ponto de vista do direito canônico, da legislação temporal, da situação religiosa e política do país quando o conflito entre a Igreja e o Estado se manifestou.

Antes de tudo, os fatos.

Desde as primeiras eras da evangelização do Brasil os missionários católicos, fiéis ao costume universalmente seguido pela Igreja, instituíram várias irmandades, confrarias, e associações de fiéis, destinadas a estimular nos mais fervorosos o espírito da Igreja, e difundir na sociedade os benefícios espirituais e temporais da influência cristã.  Essas sociedades contaram desde logo, no Brasil, não só com o ardente devotamento de seus membros como ainda com a simpatia da população, toda ela intensamente católica. Por isto, receberam grandes donativos e legados, constituídos por terras, prédios urbanos, dinheiro, alfaias de valor, etc., etc. Com o curso do tempo, esses patrimônios se valorizaram e acabaram por atingir cifras das mais consideráveis. Nas fileiras dos irmãos viam-se em geral as pessoas de maior destaque político e social. Não faltavam, pois, a tais confrarias, os elementos naturais convenientes a um fecundíssimo desempenho de sua missão. Infelizmente, porém, os frutos produzidos para a Igreja por essas irmandades estavam muito abaixo do que se poderia esperar. Aos poucos se introduziria nelas o mais completo laxismo. A piedade de seus membros era rotineira e sem fervor e se exprimia muito mais pelo fausto puramente material das cerimônias religiosas teatralizadas pela música profana, pelo aparato dos irmãos, pelo estampido dos rojões e morteiros, do que por uma devoção interior fecunda e vivaz. Daí infelizmente, uma dolorosa dissonância entre os deveres impostos aos irmãos pelos estatutos das respectivas confrarias, e o teor habitual de sua vida privada. O ambiente religioso era, pois, de tibieza e modorra, e não se podia falar nem em seleção, nem em formação, nem em exclusão de membros faltosos. Entrava quem quisesse. E não saía... nem quem não quisesse mais ficar. Ainda que o irmão ou irmã deixasse de freqüentar, repudiasse a Fé católica, rompesse com a Igreja, em certas irmandades continuava irmão, convocado regularmente para os atos coletivos, por meio de avisos públicos e particulares. Podia não pertencer mais à Igreja Católica: continuava, porém, irmão. Em outros termos, o nível não poderia ser mais medíocre, e a irmandade já não estava em condições de compreender e desempenhar sua verdadeira finalidade. É o que se poderia dizer a priori, já que as obras são vãs onde falta a vida interior. É o que os fatos diziam e até clamavam com uma evidência infelizmente inexorável. As irmandades empregavam seu patrimônio sobretudo para alívio dos próprios irmãos, aliás pouco necessitados em geral. De obras espirituais ou temporais de caridade cristã, vaguíssimos resquícios. Evidentemente, as irmandades deste jaez não podiam nem compreender, nem amar, nem defender devidamente os grandes interesses da Igreja Católica. O homem animal não percebe as coisas que são de Deus, diz o Espírito Santo. E é “homem animal” todo aquele que faz da felicidade terrena o fim mais ardente de seu coração, portando-se para com as coisas da Igreja com a frieza de quem trata com teoremas de geometria. Em via de regra, e salvas as exceções que mesmo nos piores tempos florescem discretamente à sombra dos santuários, era desses “homens animais” que se constituíam as irmandades ao tempo de Dom Vital.

Para compreender toda a gravidade de tal situação, é preciso acrescentar que o apostolado leigo foi, em todos os tempos, o instrumento de ação predileto da Hierarquia Eclesiástica. Papas, Bispos e Padres timbraram, em todos os tempos, em arregimentar fiéis para os dirigir nas fainas do apostolado e da caridade. Sendo precisamente esses prediletíssimos meios de influência e de ação que se encontravam tão fundamente corrompidos no tempo de Dom Vital, compreende-se facilmente com quanto ardor um Bispo zeloso deveria almejar sua regeneração. Não é próprio do espírito da Igreja, destruir, romper, esmagar inconsideradamente o que existe. Antes de extinguir as irmandades, cumpria tentar regenerá-las. Bispo modelar segundo o Coração de Jesus, foi o que Dom Vital tentou desde logo, fiel à norma evangélica de não romper o arbusto partido, nem extinguir a mecha que ainda fumega.

Por debaixo dessa tarefa de regeneração se ocultava porém um problema ainda mais grave. A maçonaria havia invadido subrepticiamente as irmandades. Impossível regenerá-las sem as libertar previamente de qualquer influência maçônica. Mas, para isto, seria necessário romper com a maçonaria, que estava espalhada de alto abaixo em todos os degraus da hierarquia social e política do país. Lutar com a maçonaria nas irmandades era perturbar e dilacerar toda a contextura da sociedade brasileira. Por outro lado, entretanto, os maçons estavam todos excomungados, e era mister aplicar-lhes as penas canônicas fulminadas pela Santas Sé.

Este, o terrível problema que Dom Vital encontrou. Como veremos em outro artigo, se era este o problema, não eram estas as únicas complicações que lhe davam aspecto ainda mais temeroso.