Legionário, Nº 711, 24 de março de 1946

Padre Sigaud

É amarga a coincidência, mas precisamente quando acontecimentos do maior vulto nos convidam e nos atraem, mais uma vez somos forçados a calar, para nos consagrarmos, inteiros, às tristes obrigações das despedidas. Nada, porém, é mais exigente em matéria de pontualidade do que o abraço com que se diz até logo ou adeus. Para tudo no mundo pode haver tempo, tudo pode ser remediado. Mas se a despedida não vem a tempo, o mal é sem remédio, logo que a separação se consuma. No domingo passado, despedimo-nos de um amigo fraterno: José Gustavo de Souza Queiroz. Fez a grande Viagem. Mas aqui ficaram nossas saudades, tão vivas, tão duráveis, que para ele morrer não significou partir. José Gustavo ficou entre nós, pela recordação de todos os momentos: "absens, adest".

Morrer nem sempre é partir. Dizem que "partir, c’est mourir un peu". Padre Sigaud parte graças a Deus para imensamente menos longe, por imensamente menos tempo. Nossa amizade é tal que podemos dizer que entre nós sua partida não significa "mourir un peu" mas viver com intensidade ainda maior.

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Quando, por volta de 1935, fiz pela primeira vez um retiro espiritual no Seminário do Espírito Santo, chamou-me a atenção um jovem Sacerdote que superintendia o serviço dos retirantes de modo notável. Prova de que as pessoas notáveis podem fazer notavelmente ainda mesmo as coisas menos notáveis. Ele era alto, magro, de busto largo e muito ereto. Um andar peculiaríssimo: movia as pernas sem que a posição e atitude do tronco se modificasse em nada com isto. Passadas rápidas e fortes, mas sem nenhuma agitação. Solas de borracha. O único ruído de seu andar era produzido pelo vasto panejamento da batina. O conjunto dava uma singular idéia de coisas heterogêneas, muito bem fundidas: força, resolução quase germânica; ao mesmo tempo uma delicadeza temperada nos amáveis moldes do "vieux style", com finuras que chegavam facilmente aos extremos da subtileza mineira. A mesma impressão dava a voz, muitíssimo grave, máscula, mas com um aveludado delicado e por vezes até afetuoso, cujo manejo indicava o hábito natural de jamais ter uma inflexão senão depois de uma pesagem instintiva e cuidadosa do como, do quando e do quanto a voz se poderia ou deveria elevar. E também as mãos grandes, fortes, mas delicadas e bem tratadas. Tudo isto, sem falar no principal, que é a cabeça. Uma cabeça talvez um pouco pequena para o corpo, na qual luziam olhos vivos, que atestavam ao primeiro lampejo, que aquela cabeça era "muito maior por dentro do que por fora". Nariz fortemente pronunciado, vigoroso, quase militar. Queixo e boca pequenos, delicados, muitíssimo subtis. Testa larga, cheia de pensamentos... e de reserva montanhesa. E, pairando sobre o conjunto, um ar de simpatia, de bondade, uma vontade de agradar e de bem fazer, que era a nota dominante de toda a sua personalidade.

A certa altura, esse jovem Sacerdote me abordou. Passeava eu a sós, por uma alameda do Seminário. Não quero dizer qual o assunto, hoje a milhas da atualidade, mas então muito delicado e importante. As circunstâncias colocavam em mãos dele uma deliberação de longo alcance para os interesses da Igreja no campo social. Ele queria saber como eu pensava. Notei que sua tendência era diversa da minha. Expus meu ponto de vista com franqueza. Meu interlocutor era desses de que se pode discordar sem os ofender, e que sabem opor argumento a argumento, pesando tão bem os que dão, quanto os que dá o adversário. Em linhas gerais, chegamos a acordo. Mas ele quis provas, para se decidir. Foi só depois de eu lhas ter enviado dias depois, que ele realmente tomou posição. Personalidade firme, mas honesta, que só se rende a argumentos, e que sabe que ser convencido por alguém, não é ser vencido.

Deste primeiro episódio, nasceu uma amizade. Há assuntos que ligam a fundo as almas. Esta amizade se estendeu ao longo de mais de dez anos em que os dois nos encontramos em todas as situações possíveis: da dor e do júbilo, da esperança e do passageiro desalento, da incerteza e da decisão. Juntos recebemos palmas, juntos recebemos censuras, nossos corações pulsaram segundo o mesmo ritmo, em presença de todos os assuntos da atualidade, passamos por tudo que pode unir e desunir homens. E posso dizer que a cada nova etapa mais se radicava em mim a convicção de suas qualidades peregrinas e verdadeiramente excepcionais.

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Como as enumerar? Mazarino dizia haver em Luiz XIV "de l'etoffe pour faire quattre rois". Algo de parecido se dá com o Padre Sigaud. Padre, inteiramente Padre, exclusivamente Padre, fazendo questão fechada em não ser senão Padre, ele leva o respeito ao estado sacerdotal até as mais delicadas minúcias. Nunca, por exemplo, assinaria seu nome sem o anteceder o título glorioso do Sacerdócio. Também jamais o vi, mesmo em momentos de repouso, senão com o traje eclesiástico absolutamente tão composto e completo como se usa comumente. Filho extremoso de sua Congregação, o Padre Sigaud é um autenticíssimo missionário do Verbo Divino. Este é o próprio fundo de sua alma, toda ela sacerdotal. Mas neste Sacerdote, três coisas podemos considerar.

Antes de tudo, o teólogo, em cujo feitio vejo os predicados que lhe vêm de sua ascendência francesa. Conhecendo a teologia até em seus menores meandros, o Pe. Sigaud tem, em suas idéias, em suas explicações, em seus escritos, uma precisão que é o distintivo do espírito francês. Não a precisão morta de uma coisa meramente teórica. Mas uma precisão cheia de luz, de vida, em que os "aperçus" práticos, a todo momento, ilustram e completam a mais alta expressão escolástica e doutrinária do pensamento. Nota-se ainda que o Pe. Sigaud tem, em tudo, um pouco de mineiro. Uma argúcia especial lhe dá um tino para perceber o erro até o fim, lhe descobrir a conexão com outros erros, e reconstituir assim por simples indícios sistemas inteiros, que é verdadeiramente o que de mais perfeito tenho visto no gênero. Assim, diante de uma simples opinião sobre sociologia, e outra sobre arte, o Pe. Sigaud pode, com toda a segurança, recompor toda a mentalidade de um homem, em certos casos. E com acerto surpreendente.

Ao lado do teólogo, um fino temperamento de artista. O Pe. Sigaud, se tivesse tempo, daria um crítico de arte, e quiçá um artista de primeira água. É um dom generalizado em sua família, de que ele largamente participa. E esta feição artística impregna toda uma série de hábitos, atitudes, costumes, opiniões suas, dando-lhes uma atração e um encanto pouco comum.

Por fim, o Pe. Sigaud tem a fibra de um verdadeiro homem de ação. Sabe ser macio como poucos. Sabe agradar. Mas sabe também, quando chegado o momento, cortar o que se deve cortar, e romper com o que se deve romper.

O Pe. Sigaud é verdadeiramente um chefe. Sabe fazer, mas sobretudo sabe arranjar quem faça, ensinar a fazer, dirigir na execução.

E com estas qualidades, nas suas mãos florescem as sementes mais difíceis em solo por vezes bem pedregoso.

Este o homem que o Brasil entrega à velha Ibéria. Que eu saiba, é o primeiro brasileiro que para lá vai, refazendo em sentido inverso, o caminho das caravelas, para lançar lá a semente que aqui elas lançaram, e fazer lá, a obra de Cristo que aqui fizeram os missionários e navegantes.

O Brasil restitui assim, por esta primícia de seu solo, o bem que recebeu. O simbolismo deste fato é eloqüente, poder-se-ia dizer, a primícia que enviamos está digna da alta e histórica missão que lhe incumbe.

No Brasil, como na Espanha ou em Portugal, o Pe. Sigaud poderá mostrar sempre aquilo que é: um filho diletíssimo da Virgem Santa, cumulado dos dons da natureza e da graça.

Nosso abraço não é de uma verdadeira despedida. Ficamos todos, sob o manto daquela Senhora que tem sido para nós a verdadeira Estrela do Mar. O manto de Nossa Senhora é suficientemente grande para cobrir esta imensa distância. E habitando sob este manto "sub umbra matris" habitaremos verdadeiramente sob o mesmo teto.