Legionário, n.° 785, 24 de agosto de 1947

PADRE ALEIXO

Para atender ao pedido de um amigo, rompo hoje a linha de conduta que o "Legionário" vem seguindo invariavelmente em relação ao jornalista V. Cy, que, no "Estado de São Paulo”, tem atacado freqüentemente a Igreja. Como todo o mundo, leio há  muitos anos os artigos de V. Cy, em quem sempre admirei um dos jornalistas mais espirituosos, perspicazes e agradáveis do Brasil. Mais de uma vez tenho discordado de suas opiniões, e o "Legionário", em outros tempos, já andou publicamente em discussões com ele. Nada disto, porém, prejudicou o grande conceito que dele formei como jornalista. Uma das grandes qualidades que sempre reconheci nele foi a habilidade em escolher o assunto mais atual, para as suas crônicas, que tomavam com isto um interesse sempre palpitante. Ora, precisamente esta qualité maitresse vem faltando às publicações de V. Cy. Parece que o exílio voluntário a que ele se condenou, em Paquetá, o colocou tão longe dos homens e das coisas, que em geral os assuntos que escolhe já não tem o interesse de outros tempos. Por vezes, tem-se a impressão de que ele se esforça longamente à procura de um tema e, à mingua de resultados, se decide a contragosto a explorar esta ou aquela questão manifestamente sem atualidade nem interesse. Seus freqüentes ataques à religião se explicam assim a meu ver. Outrora, quando V. Cy atacava a Igreja, não se tinha a impressão contrafeita que alguns de seus artigos dão hoje. Podia-se discordar totalmente de suas idéias, reconhecendo embora o senso de oportunidade e a verve brilhantíssima do grande jornalista. Hoje, por vezes isto não se dá. Tem-se a sensação de que V. Cy, de quando em vez, toca em temas religiosos por falta de assunto, para suscitar polêmicas, réplicas e tréplicas que alimentem sua seção. A meu ver, melhor seria deixá-lo dizer, e é o que de nosso lado temos feito. Mas desta vez V. Cy foi muito longe. Não se pode admitir em política que os fins santificam os meios, e o mesmo não se pode admitir em jornalismo. Há expedientes lícitos para uso dos jornalistas sem tema. Mas ao jornalista não é licito servir-se de qualquer meio para se abastecer de assuntos...

Foi, contudo, o que fez no domingo passado nosso cronista de Paquetá. Em suas notas, que deveriam ser de atualidade, apresentando assuntos do dia que, por sua natureza, interessassem a coletividade, ele nos vem com um escândalo. Em princípio, em uma crônica como a de V. Cy, um escândalo só teria razão de ser caso exprimisse uma tendência geral dos costumes, um ato que, pelo risco próximo e grave de repetição, poderia transformar-se em hábito geral, etc. O resto, o caso de um homem que engolia uma laranja de uma só vez, de outro que tentou ir à Europa a nado, apostasias de sacerdotes, incestos, infanticídios, tudo isto enfim é extravagante, ou monstruoso, está pela própria natureza das coisas fora da vida habitual, normal, quotidiana, fora do campo dos interesses coletivos e sociais mais atuais e palpitantes. É o material para as crônicas policiais ou para os jornaizinhos sem linha.

Insistimos quanto ao caso de apostasias de sacerdotes. É inquestionável que elas são possíveis: nem sequer um fanático o poderia contestar. Seria preciso ser mentecapto para negar que elas existam. Não temos diante de nós a apostasia de um bispo? Logo nos primórdios do cristianismo, não tivemos a de Judas? Nosso Senhor profetizou Ele mesmo que tais apostasias ocorreriam. Pois o que significa, senão isto, a parábola do sal insípido, que só serve para ser atirado à rua e calcado aos pés?

A Igreja sabe e proclama que a observância dos mandamentos exige do homem grandes e terríveis sacrifícios. Ela chega, mesmo, a ensinar que sua moral é tão superior às simples forças da criatura que nenhum homem a poderia observar integralmente e duravelmente sem o auxílio da graça de Deus. A esta graça, cumpre-nos corresponder. E a correspondência se faz por meio de renúncias, de lances de heroísmo que às vezes exigem de nós o sacrifício de tudo quanto nos parece concretizar e consubstanciar a felicidade terrena. Se isto se diz dos deveres de um fiel, o que dizer dos de um padre, de um bispo? Quem não percebe que a natureza humana, confortada embora pelo auxílio sobrenatural, tem de fazer esforços incessantes para se manter sempre à altura de tão nobre e austera vocação?

Tudo isto considerado, se de outro lado tivermos em mente o número quase incontável de bispos e sacerdotes que a Igreja teve nestes vinte séculos, seria o caso de dizer que não nos admira que tenha havido defecções nas fileiras da hierarquia. O que nos admira é que elas tenham sido tão poucas...

V. Cy nos narra prolixamente o caso de um Padre Aleixo, que entrou muito cedo no seminário, por sugestão materna, exerceu o ministério em uma grande paróquia, e acabou deixando a batina para contrair "casamento" civil com certa moça. Porque razão acha V. Cy o caso tão digno de nota, que lhe consagra uma extensão considerável? Se o caso fosse freqüente, comum, teria interesse igual? Não percebe V. Cy que comentando tanto o fato, ele que afirma achá-lo inteiramente normal do ponto de vista moral, confessa implicitamente que o caso só é notável por sua raridade? E não compreende que casos escandalosos e raros assim não devem ser tratados como fatos freqüentes e comuns, sem grave injustiça?

Parece-me que no artigo, V. Cy faz uma charge contra as vocações "prematuras". Se o Pe. Aleixo não tivesse entrado tão cedo para o seminário, teria podido conhecer outros aspectos da vida, e teria evitado uma carreira para a qual não tinha vocação.

Há objeção mais debatida, mais conhecida, mais refutada? Para que o homem conheça os atrativos da vida inteiramente pagã e naturalista, não é necessário que tome contato com eles. Basta-lhe escutar as vozes interiores dos instintos e paixões postos em desordem depois do pecado original. Assim, para persuadir a um menino que não deve roubar, não é necessário levá-lo antes diante de cofres bem cheios, para lhe fazer sentir a fascinação do ouro. Nem é necessário fazer com que um jovem se embriague ou tome morfina, para depois de ter tido a experiência direta da coisa, se decidir a abster-se dela. Tanto é isto verdade, que se um educador sustentasse o contrário seria tido por doido. Percebemos todos, que a atração do roubo ou da embriaguez pode ser muito bem percebida e sentida até de longe. O mesmo se pode dizer da pretensa necessidade de entrar o seminarista tarde para o seminário. Dizer que este ou aquele padre apostata porque jamais soube no seminário que delícias poderia haver na vida crapulosa, é o mesmo que dizer que A ou B se tornou ladrão na idade adulta, porque foi educado em um ambiente muito fechado, onde ninguém lhe fez sentir as delícias do roubo, de sorte que, quando pela primeira vez as viu, estava desarmado.

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V. Cy termina seu artigo com uma censura à dona Camilla, mãe do padre Aleixo, porque induziu o filho a entrar para o seminário. Induziu, note-se, sem pressão alguma.

Pois se eu conhecesse essa dona Camilla mais ou menos hipotética, eu lhe beijaria as duas mãos em sinal de respeito, e a felicitaria com todo o calor, por ter desejado tanto ter um filho padre e por ter chegado a ver a ordenação de seu filho; e isto ainda que eu a conhecesse só depois de seu filho ter apostatado.

A mãe que, sem coação nem violência, encaminha seu filho para o serviço de Deus cultivando nele uma vocação precoce – jamais uma suposta vocação, criada pela força – uma tal mãe merece o respeito dos homens, e as lágrimas que verter pela apostasia de seu filho serão recolhidas pelos próprios anjos, tão nobres e preciosas aos olhos de Deus, quanto as lágrimas de emoção e de júbilo que ela derramou no dia da ordenação.