Plinio Corrêa de Oliveira

 

Um homem

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O Legionário, N. 149, 8 de julho de 1934

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Hominem fortem quis inveniet? Procul, et de ultimis finibus pretium ejus. Confidit in eo cor Dei sui... Quem encontrará um homem forte? É em lugares longínquos que se deve procurar seu preço. O coração de seu Deus confia nele...

Na triste época de decadência em que hoje vivemos, podemos fazer perfeitamente uma adaptação, ao homem, dos elogios magníficos que a Bíblia Sagrada faz à mulher forte [cfr. Prov. 31, 10].

Realmente, enquanto a mulher perde completamente a noção de sua função social, e só pensa em romper os laços que a prendem ao lar para saciar sua sede de aventuras e de liberdade, o homem vê enfraquecer-se continuamente a fibra do seu temperamento viril que fazia dele, outrora, o Rei da Criação.

Diógenes procurava um homem com uma vela acesa em pleno meio-dia, nas ruas centrais de Atenas. Um Diógenes moderno já teria a seu serviço não mais simples velas, mas faroletes e holofotes, sem ser, por isto, mais bem sucedido em sua infrutífera pesquisa...

É que a humanidade, divorciada da Igreja, procurou criar um tipo de virilidade próprio: o homem realmente viril não deveria mais exceder pela austeridade rígida de seus costumes, pela operosidade incansável nos seus deveres, pela sujeição inflexível de todas as revoltas de sua inteligência e de todos os caprichos de sua imaginação à sublime disciplina espiritual da Igreja.

Pelo contrário, era no excesso do deboche, nos atrevimentos impudicos das aventuras equívocas, no orgulho vaidoso e estulto de sua inteligência ímpia, que sua virilidade deveria brilhar. Homem e homem forte, ele deveria sê-lo não para cooperar, como elemento útil, para a ordem geral, mas para se atirar cegamente contra todo o freio e toda a lei, desde que a isto o impelissem suas paixões. E foram os homens assim temperados, ou melhor, destemperados neste conceito torpe de virilidade, que conduziram o mundo, através dos desmandos acumulados por diversas gerações, ao estado em que hoje o vemos jazer.

E o homem forte passou a ser mais raro ainda do que a mulher forte, cujo preço, entretanto, a Sagrada Escritura diz que se deveria procurar nos confins da terra...

Todos nós, no entanto, tínhamos até há pouco, entre nós, um tipo magnífico de “homem forte”, com as qualidades sólidas e fundamentais que a expressão evoca: Dom Gastão [Dom Gastão Liberal Pinto].

Como todas as personalidades [ricas] em atributos, ele se apresentava, no labor cotidiano, sob aspectos psicológicos bem diversos que freqüentemente surpreendiam seus cooperadores, mas que para o bom observador se prendiam todos a um fundamento moral único.

Como conciliar, por exemplo, o seu senso de autoridade com a incomparável afabilidade e simplicidade de seu trato? Como explicar sua estupenda energia, com aquela sensibilidade afetuosa e delicada que tantas vezes nele pude observar? De que forma harmonizar, dentro de uma mesma mentalidade, aquela constante jovialidade e aquela compreensão austera e profundamente grave e séria de seus deveres? Como supor naquele Vigário Geral operoso, onipresente e onisciente quanto a tudo que dizia respeito à Arquidiocese, o sacerdote que passava horas inteiras, e até a noite toda, na presença do Santíssimo Sacramento, recolhido em profunda oração? A explicação está toda neste catolicismo integral, que é a característica de Dom Gastão.

Catolicamente falando, a autoridade de forma nenhuma se choca com a simplicidade. O homem deixa de ser simples quando ele quer tornar o direito de governar o próximo um atributo inerente à sua pessoa. Mas o titular de uma autoridade qualquer, seja ela eclesiástica ou civil, trairia a sua missão se, considerando-se embora mero depositário do poder divino, não exercesse com toda a firmeza, com a mais implacável pertinácia e, ao mesmo tempo, com a mais suave prudência, todos os atributos decorrentes do seu cargo.

A energia, por sua vez, numa alma bem formada, não é um impulso desordenado da vontade, imoderadamente atraído para algum objeto. É principalmente, ou mesmo unicamente, a direção forte da vontade no sentido de realizar os atos necessários para a consecução do fim último que sua inteligência compreendeu plenamente, e a que plenamente aderiu seu coração.

A jovialidade não exclui a gravidade de espírito. Pelo contrário, numa alma perfeita deve reinar uma alegria que irradie o esplendor de um espírito sério que soube tomar sobre os ombros sua cruz e seguir a Nosso Senhor, com o corpo coberto de chagas, talvez, e a alma a estourar de dor, mas sentindo cantar-lhe, no fundo do coração, a esperança da vida futura e a consolação balsâmica das promessas proclamadas no Sermão da Montanha: bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque deles é o Reino dos Céus [Mt. 5, 6].

E, principalmente, a ação não exclui a contemplação. É só aos pés de Jesus Sacramentado ou de Maria Santíssima que o apóstolo consegue a fecundidade de seu trabalho. O valor da colheita não depende tanto do número das sementes, como de sua qualidade. Ora, onde e como buscar a verdadeira semente espiritual senão numa união, numa fusão integral entre a alma do apóstolo e os Sagrados Corações? Apóstolos eucarísticos e mariais no sentido mais profundo e mais completo da palavra, eis a grande necessidade do nosso século. E se algum apóstolo quiser saber como será julgada sua vida no Tribunal Eterno, não indague tanto sobre os caminhos que palmilhou ou as gotas de suor que de sua fronte gotejaram. Indague, sim, das horas passadas de rosário em punho, aos pés do Tabernáculo.

Quando alguém consegue realizar o equilíbrio ideal entre tantos atributos aparentemente contraditórios, mas que se deduzem uns dos outros numa seqüência impecavelmente lógica, não é ele verdadeiramente um Homem com H maiúsculo, um destes homens-guindaste, capazes de levantar e transportar, sob o fluxo poderoso de seus exemplos, de suas obras e de sua piedade, não só muitos homens, mas muitas paróquias, uma diocese inteira?

Foi com uma saudade dolorosa que vimos partir da plataforma da estação o trem que o conduzia ao posto de comando a que o Supremo Pastor o destinara. Mas também nós quisemos ser homens. Vencendo o sentimento meramente humano que procurávamos dominar em nós, lembramo-nos somente das superiores necessidades da Igreja, que acabava de abrir um campo ainda mais largo à sua atividade apostólica. E foi “ex abundantia cordis” [com largueza de coração] que o demos à Diocese de São Carlos.


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