Três Rumos

 

“O Legionário”, N.º 157, 28 de outubro de 1934

 

Granjeou o Sr. Getúlio Vargas, nos 4 anos em que exerceu a dignidade de chefe do Executivo Nacional, a fama de mestre na difícil arte de contemporizar. Por mais hábil que seja o atual Presidente da República na execução de sua clássica norma de “deixar como está, para ver como fica”, pensamos que S. Excelência não é um mestre, mas apenas um aluno inteligente e sagaz do inexcedível especialista em matéria de contemporizações que é o povo brasileiro.

Entre os papéis velhos de minha família, foi encontrada uma carta dirigida a meu avô por José Bonifácio. A carta era uma análise apaixonada da situação política e moral do Brasil de então. E, com uma insistência alarmante, afirmava o ilustre escritor paulista que o “Brasil caminhava para o abismo”, e que a decadência moral, os destinos da administração, a desordem das ambições haveriam de colocar forçosamente o Brasil diante de um dilema: ou entregar-se resolutamente à decadência ou, por meio de uma grande reação nacional, empreender uma reforma geral que não poupasse quaisquer desordens, desde as domésticas até às políticas.

Pensei que havia exagero na veemência do famoso missivista, e as desordens por ele narradas fizeram-me sorrir diante da enormidade dos escândalos sociais, políticos e administrativos que hoje ocorrem. Com o tempo, porém, convenci-me de que José Bonifácio tinha razão, e que já no seu tempo o Brasil estava caminhando para o abismo, cujos bordos há uns bons vinte anos, vimos rodeando imprudentemente.

Um outro povo qualquer que, ainda em vida de José Bonifácio, se tivesse posto em demanda do abismo, já nele teria caído, talvez antes do derradeiro cerrar de olhos de sua geração. Mas o Brasil é mestre entre os mestres na arte de contemporizar, e há muitos lustros já que ele vem fugindo ao severo dilema de José Bonifácio: não caímos ainda no fundo do abismo e nem empreendemos a reação moralizadora que nos deveria salvar. Pelo contrário, floresce a imoralidade, campeia a desordem em todos os terrenos da vida social e, ainda assim, estamos a nos reerguer de uma crise econômica sem igual, prontos para outros esbanjamentos e para outras imprudências que nos venha trazer outra crise ainda maior.

Se é possível, porém, contemporizar, como o tem feito o Brasil, diante das crises econômicas e das dificuldades políticas, há uma força que o mais hábil dos despistadores não consegue romper e que parece, finalmente, estar imprimindo mais velocidade à marcha morosa com que o Brasil caminha na estrada até aqui tão plana e horizontal de sua História.

Ninguém consegue deter a força de certas idéias quando elas surgem num meio social como resultante de um profundo mal-estar psicológico de um povo. Parece que o Brasil está enfim cansado de um regime de insinceridade para consigo mesmo, de uma tortuosidade mental que o levou a entoar loas à monarquia que tivemos, “por ser mais liberal do que uma república”, e à república que findou em 30, por nos ter proporcionado um executivo muito mais forte e disciplinador do que a monarquia, e oligarquias infinitamente mais sólidas do que a inofensiva coorte de condes e barões do Império. Da monarquia elogiavam as qualidades de excelente república; na república apreciavam a linha eminentemente monárquico-aristocrática. Os brasileiros só foram bons republicanos no tempo da Monarquia e só foram bons monarquistas depois de XV de Novembro. Sob o regime da união da Igreja e o Estado, procurava-se prestigiar a Igreja, quando na realidade se a oprimia. Proclamada a separação, tinha-se em vista diminuir a Igreja, banindo-a do Estado que doravante seria leigo. E, na prática, deu-se-lhe liberdade. Sempre a contradição de quem fugia de optar decididamente por um princípio e tirar dele todas as suas conseqüências. Cada vez que se era obrigado a tomar oficialmente uma atitude, tinha-se o cuidado de a colocar no maior antagonismo possível com a corrente de idéias contrária. Com que escrúpulo o Império zelou pelas “liberdades públicas” e com que zelo a República procurou “prestigiar a autoridade”. Com que cautelas de carcereiro o Estado brasileiro agrilhoava a Igreja, quando lhe dava no País a posição de rainha, e com que luxo de prudência tabelioas o Brasil leigo assegurou os direitos do Catolicismo, ao mesmo tempo que lhe infligia a humilhação máxima de o expulsar da vida pública do País!

Parece que, enfim, este período já passou. As correntes sinceras e integralmente voltadas para um ideal já estão apaixonando a opinião. Há uma ação católica florescente que não aspira a nada menos que o Estado integralmente cristão. Em contraposição a esta corrente, há os comunistas que anseiam pelo Estado integralmente ateu e, neste terreno, a única nota confusionista foi o apelo tardio e desesperado do Sr. Guaracy da Silveira aos “católicos liberais”, que lhe não acudiram ao chamado, em defesa do Estado leigo, porque está morta esta raça de gente no Brasil.

Os dois grandes partidos liberais-democráticos parecem querer manifestamente o famoso “governo do povo, para o povo, e pelo povo”, que constitui o sonho e o passatempo do Sr. Sampaio Dória ou do Sr. Mário Pinto Serva, não figurando mais, nos quadros destas organizações, os incongruentes defensores de uma “república forte”, qual a do Sr. Bernardes, por exemplo, que é bastante sensato para não ser demagogo e bastante tímido para não romper com a democracia.

O Integralismo, por fim, está cada vez mais conquistando posições, e não tem medo em zombar, dentro mesmo do templo do liberalismo que é a nossa Faculdade de Direito, dos ídolos vãos da democracia liberal. E, na extrema-direita do Integralismo, já vemos despontar a mais extremada das organizações reacionárias, os Patrianovistas, que realizam o “não plus ultra” da contra-revolução, substituindo o espiritualismo dos integralistas pelo catolicismo integral, seu espírito de hierarquia social, por uma tendência pronunciada a uma aristocracia quase feudal, e completando o princípio de autoridade de que os integralistas se mostram tão ciosos, pela fidelidade a um monarca de direito divino.

Há, pois, no pensamento brasileiro, uma força que eu chamaria centrífuga, neste sentido que procura desviar as mentalidades deste centro comum e amorfo em que se encontram, para tendências extremas, embora antagônicas.

Esta força atuará - permita-o Deus - com mais virulência sobre a apatia da alma nacional do que todas as crises financeiras com que tanto nossa burguesia se inquieta.

Mas, indagamos, no final destas considerações, qual dos rumos tomará o Brasil?

O que os Católicos escolherem.

É preciso que nos persuadamos, nós católicos, de que o Brasil somos nós.

A nós é que compete traçar as diretrizes que nós mesmos vamos seguir.

A nós é que incumbe chefiar orientar e decidir.

E só uma condição se exige de nós para que entremos no uso de tão excelsas prerrogativas: que não sejamos inferiores à nossa missão.