O Cardeal da Providência

“O Legionário”, N.º 174, 23 de junho de 1935

 

Com as últimas notícias publicadas a respeito da alta direção das atividades católicas no Brasil, podemos dizer que toda uma etapa de nossa vida religiosa se encerra, para ceder o lugar a outra que se anuncia promissora e brilhante. A recente promulgação dos estatutos da Ação Católica Brasileira, a fixação da data em que se realizará o Congresso Eucarístico de Belo Horizonte, e sobretudo a notícia de que se reunirá em Concílio, brevemente, o Episcopado Nacional, constituem os marcos iniciais de uma inteira renovação de toda a nossa vida religiosa.

Parece-nos, portanto, da mais estrita justiça que no limiar de uma nova série de esforços e de lutas detenhamos por instantes nossa marcha, a fim de examinar o caminho percorrido.

Em 1915 - há vinte anos apenas - qual era a situação religiosa do Brasil? Como se apresenta ela em nossos dias? Quais as modificações operadas? É o que vamos examinar.

Em 1915, era desoladora nossa situação. O povo era católico. Mas nas mais altas camadas sociais as tradições católicas iam se diluindo cada vez mais, cedendo o passo aos costumes e à mentalidade do neopaganismo europeu e norte-americano, largamente importado através dos romances e do cinema. Nas elites intelectuais, o catolicismo deixara de existir, ou  existia na situação de mero sentimentalismo, sem a menor ligação com as convicções filosóficas, políticas ou científicas. Fortemente infeccionadas as elites intelectuais e sociais, o corpo social inteiro padecia, e, vindo do alto, o escândalo da incredulidade e do sibaritismo ganhava toda a massa da população.

Qual a situação em que enfrentava a Igreja a multiplicidade de tamanhos perigos?

Um Episcopado enérgico e um Clero altamente moralizado tentava em vão reagir à onda que se avolumava. Ainda não estava liquidada a pesada herança do Império, e a desorganização ainda afetava alguns dos pontos mais centrais de nossa vida religiosa: as Ordens religiosas apenas renascentes dos escombros; as irmandades leigas ainda insubmissas; e acima de tudo o Clero ainda muito pouco numeroso a absorver quase toda a sua atividade em ministrar os Sacramentos e distribuir a palavra de Deus, sem o tempo necessário para organizar associações, dirigir iniciativas, arregimentar elementos.

Aliás, a simples expressão “arregimentar elementos” faria sorrir naquela época, porque, a dizer a verdade, não havia elementos a arregimentar. Com a exceção de algumas irmandades insubmissas, e de uma ou outra raríssima associação religiosa realmente prestante, o laicato se desinteressava da ação católica, que não compreendia ou até nem mesmo conhecia. E precisamente por este motivo a mesa eucarística estava quase sempre deserta, freqüentada apenas por raras senhoras, ou por algum homem já idoso.

Muito escasso o Clero e quase nula a vida eucarística de nosso povo, pequeníssima sua cultura religiosa, diminutíssimo o laicato católico, que recrutava raros elementos no sexo piedoso, e quase não tinha representantes entre os homens, o que fazer?

Deus, no entanto, escreve direito por linhas tortas. Ou, como diz nosso venerado Arcebispo, “nós vemos tortas as linhas direitas em que escreve Deus”. E, em 1935, decorridos apenas 20 anos, o panorama se apresenta inteiramente mudado.

Atacado o gravíssimo perigo da escassez do Clero, pela ação perseverante da Obra das Vocações, a Santa Sé acaba de dar impulso decisivo à solução do problema pela fundação dos Seminários Centrais que, além de comportarem estudantes numerosos, dispõem de todos os elementos para formar Sacerdotes modelares.

A vida eucarística floresce em todas as camadas sociais, e atrai pelo seu esplendor a alma de velhos como de moços, de homens como de mulheres, de sábios como ignorantes. As estatísticas oficiais sobre o número de Comunhões distribuídas na Arquidiocese e nas Dioceses de Campinas e de Jaboticabal, as únicas cujo Anuário conheço, indicam o mais entusiástico “renouveau eucarístico.

A vida intelectual dos católicos tem outro aspecto. Não só o catolicismo vai reconquistando a posição de orientador  de todo o pensamento filosófico, científico e político dos intelectuais católicos, mas vai sendo defendido com denodo cada vez maior por uma plêiade de leigos, que vão conquistando gradualmente as Escolas Superiores, quer ocupando as cátedras, quer militando entre os alunos.

O laicato católico é cada vez mais numeroso. E o magnífico movimento da Federação Mariana é bem o índice mais expressivo da pujança do espirito religioso entre os leigos.

As instituições caminham para uma cabal recristianização. E a constituição de 1934 é um índice bem significativo do vigor da ofensiva católica neste terreno.

A esta altura, o Episcopado Nacional resolve enfeixar na organização da Ação Católica todas as atividades religiosas do laicato. Convoca, também, um Congresso Eucarístico em Belo Horizonte, no coração do País, para ser eco eloqüente do da Bahia. E um Concílio nacional se anuncia, em que se tratará de ordenar todo este progresso, e dar estímulo ainda maior a tantas dedicações que, de todos os lados, vêm oferecer à Igreja saber, talento, energia e atividade.

Uma figura se destaca, no meio de tantas iniciativas e de tantos triunfos. É a do Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro, que tem sido o marechal ardoroso e infatigável de todas estas vitórias.

Ainda em 1916, na pastoral dirigida aos fiéis de Olinda, seu olhar como que antevia o triunfo de hoje, no realismo são com que pôs a descoberto todas as chagas de nossa insuficiência religiosa.

Em todos os setores em que se operaram progressos, a figura do Cardeal aparece ligada às mais gloriosas realizações. Que triunfo mais esplêndido para a nossa vida eucarística do que a grandiosa procissão de 1922 ou o Congresso Eucarístico de 1932? E quem mais do que o Cardeal trabalhou para a realização destes dois grandiosos empreendimentos? Que afirmação mais vigorosa do pensamento católico do que o Instituto católico de Estudos Superiores, ora dirigido  por Tristão de Ataíde, e que nasceu sob os auspícios e o patrocínio amoroso, de todos os instantes, de Dom Sebastião Leme? Se por toda a parte floresce a ação do laicato católico, de onde lhe vieram estímulos mais vigorosos, simpatia mais eficiente, proteção mais constante, do que do Cardeal-Arcebispo do Rio de Janeiro? E se atualmente a ação católica se organiza, a quem se deve a obra ingente da conciliação dos pontos de vista contrários, da eliminação dos obstáculos, do triunfo sobre todas as dificuldades que toda a iniciativa como a Ação Católica tem de encontrar, até conciliar todos os entusiasmos, como acaba de acontecer?

O nome do segundo Cardeal da América Latina há de ficar nos fastos da História do Brasil.

Modesto, ele se oculta, em todos os grandes movimentos que empreende, faz brilhar sempre os ideais que o animam, apagando sua pessoa, colocando-se voluntariamente na sombra.

Um dia, porém, a justiça de Deus falará pela voz da História. E, neste dia, se verificará que a figura providencial de Dom Sebastião Leme se sobreporá à de todos os brasileiros de sua época, do ponto de vista da grandeza da obra realizada.

Chamam-no o Cardeal da Eucaristia, outros o Cardeal de Nossa Senhora, outros o Cardeal da mocidade. Ele, porém, será coroado pela História com um título ainda mais glorioso, que a todos os anteriores excederá: será o Cardeal da Providência.