A Primeira Desobediência

“O Legionário”, N.º 175, 7 de julho de 1935

 

Pela primeira vez em minha vida, encontro-me entre os cabecilhas de uma facção de revoltosos. Prevendo que o Padre Paulo desaprovaria qualquer homenagem especial que pretendesse prestar-lhe “O Legionário”, três traidores - José Pedro, José Filinto e eu - abusando dos cargos que ele nos confiou, resolvemos declarar-nos em oposição, e homenageá-lo mesmo contra seus desejos.

Na revolta, que é sempre um gesto de orgulho, quisemos, porém, não ser banais, pois que no nosso pobre Brasil nada há de mais banal, de mais comezinho, de mais próprio à vida de todos os dias do que desacatar uma autoridade, ou fazer uma revolução. Por esta razão, encontramos um meio de parecer “raffinés até mesmo na rebeldia, que é sempre uma atitude plebéia. Jactamo-nos de ter de antemão o apoio, para nossa indisciplina, de todas as autoridades eclesiásticas que, no entanto, não costumam sorrir às iniciativas de gênero tenentista, principalmente quando empreendidas no seio da Igreja.

A originalidade da aliança que obtivemos e a justiça dos motivos que nos levaram a esta atitude de desespero nos servirão certamente de atenuante aos olhos do Padre Paulo. E creio mesmo que será com a velha amizade de sempre que ele abençoará, depois da sagração, os três conspiradores que se amotinam contra ele exatamente no momento em que entra em retiro espiritual.

 Conversando com o Padre Paulo sobre questões de ação católica, tivemos freqüentemente o ensejo de pôr em evidência a estultice de certos católicos indisciplinados, que se julgam no direito de censurar o respectivo Bispo, por qualquer involuntário erro que cometa no governo da sua Diocese.

“Estultice” não é, para o caso, uma palavra excessiva. Porque, realmente, a complexidade da tarefa de um Bispo contemporâneo é tal que a menor Diocese, para ser regida com invariável acerto (se é que o invariável acerto se encontra nas ações humanas, quando não as assiste a infabilidade divina), exige de seu Bispo todas as qualidades que caracterizam um grande homem.

Ora, é estultice supor que a Igreja, ou qualquer outra organização existente neste mundo, consiga recrutar, em todos os cantos da terra, figuras invulgares de grandes homens, para os pôr ao serviço de seus princípios.

A primeira preocupação de um Bispo deve ser, naturalmente, de conhecer com toda a precisão possível o seu rebanho. Ora, hoje em dia, para auscultar o coração de uma humanidade que é dilacerada pela incredulidade e pelo sofrimento, que vaga ao sabor das mais desordenadas paixões, que se entrega à prática de tão diversos vícios, é necessário todo o tino de um sutilíssimo sociólogo e diante de tal tarefa teria susto o próprio Oliveira Viana.

Por outro lado, é surpreendente a dose de agilidade de espirito indispensável a um Bispo, para se afazer à complexidade dos mil e um assuntos dependentes de sua solução. Uma Igreja a construir, uma obra pia a dirigir, seminaristas que exigem desvelos contínuos, casos de consciência a resolver, complicações políticas a deslindar, problemas econômicos a enfrentar, tudo isto se junta ameaçadoramente em torno de um Bispo de nossos dias, a pôr à prova a sua confiança na Providência.

Por esta razão, costumo dizer que o Bispo perfeito, em nossos dias, deve aliar à santidade  um pouco do tino político de um Richelieu e um pouco da perícia financeira de um Colbert, para vencer todas a dificuldades que se encontram em seu caminho.

Sem o menor receio de errar, ou ao menos de exagerar, posso afirmar que é um Bispo desta têmpera que a Providência, por mãos do Santo Padre, acaba de colocar à testa da Diocese de Santos.

Padre Paulo encontrou florescente a Paróquia de Santa Cecília. Mas sobre seus ombros pesava uma terrível herança: a de todos os corações que Monsenhor Pedrosa havia conquistado, e lhe havia legado, para que deles tomasse posse.

Foi exatamente aí que sobreveio a Revolução de 1932, que desorganizou toda a nossa vida civil e religiosa, e que teve funesta influência, de modo todo particular, sobre a Congregação.

Qual foi a atitude do Padre Paulo? Desanimou? Não. Procurou reconquistar o terreno perdido? Também não. Pura e simplesmente, delineou contra o mal uma formidável contra-ofensiva, em que seu objetivo não era de reconduzir ao primitivo estado de pujança todas as iniciativas que encontrara, mas de elevar ao apogeu todas as obras que o incomparável zelo de Monsenhor Pedrosa havia criado.

Assisti a todas as suas lutas, e vi a admirável harmonia das qualidades que ele desdobrou no seu formidável contra-ataque.

Ameno no trato, ninguém o era mais do que ele. Qualquer pessoa que dele se aproximasse, recebia imediatamente o sorriso paternal do Vigário e o acolhimento generoso do amigo. Sua primeira arma foi sempre o sorriso, e ele o punha em uso até que ficasse provada à saciedade a sua ineficiência, em algum caso particular. Sobrevinha então a fase da energia. E, com uma perícia cirúrgica incomparável, com dois ou três talhes, amputava a dificuldade, anestesiando depois o paciente, com a doçura de expressões com que terminava suas reprimendas.

Se a doçura e a energia eram armas que usava alternadamente, duas armas havia de que nunca prescindia: a sua piedade e a sua inteligência.

A piedade foi a base de toda a sua atividade. E sua preocupação mais séria era de colocar um braseiro eucarístico dentro do coração de cada paroquiano. Para isto, não lhe bastava a palavra de Deus, distribuída com invariável eloqüência. Rezava, e rezava ardorosamente, até que o Céu se abrisse às suas preces.

Sua inteligência também nunca lhe fazia falta. Todas as soluções que deu aos seus diversos problemas, desde os menores até os mais importantes, foram essencialmente inteligentes, coerentes, entrosadas dentro de um largo plano geral de ação. E, sobre esta tripeça da piedade, da inteligência e da habilidade, assentou toda a sua obra, que ele transmitirá pujante ao seu sucessor.

A Diocese de Santos fez bem em se colocar sob o patrocínio de todos os habitantes do Céu. Pois que acreditamos que foi fruto da prece onipotente de todos os Santos e principalmente da Stella Maris, o magnífico presente que o Santo Padre deu aos fiéis santistas: um Bispo que ficará definitivamente - o futuro provará que tenho razão -  entre as grandes figuras da História Eclesiástica do Brasil.