Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Precursores do totalitarismo

 

 

 

 

Legionário, 4 de junho de 1944, N. 617, pag. 5

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Não nos referimos aos precursores do totalitarismo fora da Cristandade, pois na antiguidade pagã a tirania totalitária era a regra. Queremos nos ocupar apenas do que o Apóstolo São Pedro classificaria de “volta ao vômito”, isto é, do ressurgimento do totalitarismo em plena era cristã, entre os povos do Ocidente. Para isto vamos apresentar o retrato moral de um Henrique IV e de um Frederico II pintado pela mão de mestre de Louis Veuillot. Veremos como este último principalmente é a imagem perfeita de Hitler. Veremos, ademais, por estas linhas, como teve início a “tomada de consciência de si mesma” da Sociedade política, germe das “soluções pluralistas” e de outros chavões derivados da “Igreja livre no Estado livre” de Montalembert.

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 Henrique IV (1050-1106) diante de São Gregório VII, em Canossa

“As sementes lançadas pelo século carolíngio germinaram nos mosteiros. Houve santos. Ia-se ver o feudalismo cristão. Os espíritos curtos que declamam contra o feudalismo deveriam considerar o que a Igreja fez dele. No auge do perigo, quando se acreditava que o mundo ia acabar, a Igreja trabalhava e não desesperava. Os claustros encerravam santos, e os santos são sempre grandes homens. Deles saíram esses bispos admiráveis, esses fundadores de novos mosteiros que convertiam os bárbaros e mesmo os celerados, refreavam o presente em sua decadência, preparavam o futuro.

Desde que o século XI começou, a cena se modifica. Os reis peregrinos são mais frequentes em Roma. O que eles ali iam buscar, o que eles ali achavam, um deles nos vai dizer por todos. Poucos príncipes tinham sido mais duros que o rei da Dinamarca e da Inglaterra. Canuto, o Grande, semipagão, posto que batizado, dócil aos conselhos de santo Egelnoth, arcebispo de Canterbury, foi a Roma, de onde escreveu à toda a nação dos ingleses (1027): que havendo empreendido essa santa viagem pela remissão de seus pecados, fizera o voto de levar uma vida exemplar e de governar segundo a justiça e a piedade, lamentando as faltas de sua mocidade, e resolvido a se corrigir com a ajuda de Deus. Incita então seus conselheiros e magistrados, se desejam conservar sua amizade e salvar suas almas, a cuidar de não transgredir nenhuma lei, nem em favor do homem poderoso, nem por temor do rei, nem no desígnio de encher o tesouro real; porque o rei não tem necessidade de dinheiro arrecadado pela injustiça.

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Mas essas luzes de Roma, que inflamavam santamente os reis bárbaros, não mais aqueciam os imperadores. O império, transferido aos alemães, de novo se tornou pagão; os sucessores de Carlos Magno se comportavam como herdeiros de César. Já naquela ocasião formulavam a estranha doutrina que o Império é o único soberano, o único proprietário de todo o mundo, a lei viva dos príncipes e dos particulares. A Igreja ficava sob o jugo. César desejava investir os bispos e fazer o Papa. O Papado, mal saía dos laços ignóbeis em que o haviam enleado os facciosos de Roma, devia lutar contra essa pretensão do poder secular. Para surpresa do Império, do mundo e da história, o Papado emergiu da masmorra em que o prendia um Crescêncio e o imperador Henrique IV se encontra em presença do monge Hildebrando, homem obscuro, que se tornou Gregório VII.

Gregório disse ao Imperador que somente Deus é soberano; que Jesus Cristo, Filho de Deus feito Homem, foi investido dessa soberania; que não há poder entre os homens, nem direito de mandar, que não venha de Deus e por Seu Verbo; e que não há intérprete infalível do Verbo Divino a não ser a Igreja Católica. Por conseguinte, acrescenta Gregório, o Imperador tenta, sem direito, se estabelecer como a lei viva do mundo, e o tenta em vão, porque a consciência dos povos releva da Igreja Católica e não do poder secular. A Igreja Católica não abandonará nem os povos, nem a si própria, nem Deus, mas pela voz de seu chefe decidirá os casos de consciência entre os povos e os reis.

O Pontífice apenas dispõe de seu direito, o Imperador dispõe de toda a força humana. Inicia-se a luta. Qualquer outra pessoa, a não ser um Papa, jamais a enfrentaria, ela era impossível mas os Papas sabem que eles se acham no mundo para fazer o impossível quando o interesse das almas o exige.

É vontade de Deus, será obra de Deus. Eles entram na luta contra toda esperança de sucesso, um outro a retoma, um outro ainda; derrotas se acumulam; e, um dia, quando todos os heróis morreram, os vitoriosos veem estrebuchar sobre seus túmulos.

São Gregório VII teve de início a seu favor a consciência e a admiração do gênero humano. Henrique IV lhe censura o fato de haver conquistado o favor do povo. Mas o favor do povo é passageiro, ele se dá, ele se retira. O generoso Pontífice morreu no exílio, e parecia vencido. Teve sucessores. Antes de ser elevado ao pontificado, havia designado quatro Papas; no momento de morrer, designou três, que reinaram depois dele. Que pode a força humana contra a Providência que suscita tais atletas, lhes dá uma tal constância e por tais meios prolonga sua nobre vida? Na realidade, o pontificado de São Gregório VII vai de São Leão IX (1048-1054), seu primeiro protetor e seu primeiro discípulo, ao pontificado de Pascoal II (1099-1118): 70 anos. O próprio Pascoal II teve sucessores cheios do mesmo espírito, santos e magnânimos, que, até Inocêncio IV (1243-1254), enfrentaram o poderio dos Césares alemães e abateram, se não suas pretensões, pelo menos sua esperança.

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Os Césares da Alemanha não foram homens de medíocre ambição. Aspiravam ao império do mundo, se pudessem contar com a conivência dos Papas.

Cem anos após Henrique IV, reinava Frederico Barba roxa (ou Barba ruiva). O Papa era Adriano IV, homem obscuro como Hildebrando. Criança, os monges ingleses lhe haviam aberto seu mosteiro, à cuja porta pedia a esmola de um pão. Eis o obstáculo do Império! Barba roxa, tendo sido aclamado imperador de Roma e do mundo, pretendia que isto não representasse um título vazio. Provocou uma consulta dos juristas bolonheses, que decidiram que, com efeito, o Imperador exercia de direito um domínio universal e absoluto sobre todo indivíduo, todo povo, toda cidade. Os juristas se pronunciaram contra as cidades lombardas, que reclamavam alguma liberdade. Além desses juristas, César tinha seus soldados e numerosos partidários na Itália.

Adriano, eleito Papa, fez dizer a esse soberbo, que lhe viesse render homenagem, e quis que ele segurasse as rédeas de sua montaria. Era a prática legal. Essa prática provava ao Imperador a existência de um direito acima de sua vontade. Os juristas, mais ainda os democratas, dão urros de cólera à lembrança dessas exigências papais. Eles desejam que os Imperadores sejam a lei viva... em suas mãos. As cidades lombardas aplaudiram o gesto do Papa, o Imperador se curvou.

Mais tarde, após dezoito anos de triunfos, depois de ter feito um antipapa que não defendeu as liberdades lombardas, Barba roxa se curvou ainda uma vez diante de Alexandre III, um pobre ancião que o poder imperial havia perseguido por toda a parte, arrasando as cidades que permaneciam em sua aliança. Quando o Imperador se viu com as mãos cheias de vitórias, se tornou necessário despedir o antipapa, que acompanhava a corte, e chamar o Papa legítimo, que se achava foragido. Procuraram-no por muito tempo. Recusou-se a entrar em negociações, a menos que César admitisse o direito das cidades. César tinha necessidade de paz e cedeu. O Papado havia libertado a Igreja e fundado as repúblicas italianas.

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 Frederico Barba Ruiva (1112-1190), no meio, flanqueado por dois dos seus filhos, o rei Henrique VI (esquerda) e o duque Frederico VI (direita)

Não foi o fim. Um novo Cesar se levantou para ser deus, e tinha um carácter novo. Nesse mundo formado pela Igreja, até aqui os próprios inimigos da Igreja eram cristãos. Frederico II foi verdadeiramente um pagão, e da pior espécie, da espécie hipócrita. Pupilo do grande Inocêncio III, começou de joelhos sua guerra cruel contra a Igreja e sua longa traição contra a cristandade. Tomou a cruz e maquinou a perda de Damiette; publicou leis contra os hereges e se propôs introduzir o Islamismo na Europa. Pavorosa figura de ingrato e de traidor, desleal, voluptuoso, vingativo, paciente, cheio de sedução, mentiroso até ao ponto de tirar a máscara para melhor mentir, pródigo em juramentos e sempre perjuro, multiplicando os tratados e não os executando nunca, convicto da própria notoriedade de sua duplicidade, e fazendo-se tão temido quanto o era menos estimado. Ao mesmo tempo que comunicava à Itália a infecção dos costumes muçulmanos, inundava-a de livros ímpios. Suas chancelarias aninhavam escribas que, sabiam lisonjear toda paixão, envenenar toda verdade. Ele os fazia difamar o que desejava fazer morrer. Aliava-se a todos os perversos; entorpecia, enganava ou intimidava os fiéis. Deus o suportou trinta anos.

Extenuava os soberanos com seus manifestos habilmente redigidos por Pedro des Vignes, chefe de seus escribas. O Papa Inocêncio IV dizia desses documentos que eram “o absinto açucarado pelas sereias”. Frederico neles se apresentava como o defensor dos reis, como o vingador de Deus. Desejava impedir que a Igreja se perdesse! Ela se achava, segundo a opinião dele, esmagada pelo poder e pelas riquezas; o imperador devia aliviá-la desses bens perniciosos. “Quando os Papas, dizia ele, levam vida humilde e apostólica, nesse tempo eles vêm anjos, curam os doentes, ressuscitam mortos e submetem os reis, não pelas armas, mas pela santidade”. A Igreja livre no Estado livre!

Ao próprio São Luís, Frederico escreveu nesse sentido, pedindo-lhe trabalhar com ele para livrar a Igreja do peso temporal. Enleava tudo em seus nós; via-se ainda jovem, sentia-se poderoso. Excomungado quatro vezes, havia extenuado quatro Papas. Mas Inocêncio IV, escapando aos seus juramentos e aos seus tratados, acabara de fulminá-lo pela quinta vez. Diante desse Pontífice espoliado, fugitivo e invicto, Frederico ia ver esfacelar-se a longa insolência de sua fortuna.

Inocêncio aceitou o debate diante dos reis. Sustentou o direito anterior e superior do Pontífice contra as pretensões ilegítimas do poder secular. Colocou claramente a questão, tal qual o Papado, que não tem nada a ocultar, sempre a colocou em face do mundo: ele disse que Jesus Cristo, verdadeiro Rei e Sacerdote, fundou, nas mãos do bem-aventurado Pedro, não somente o principado sacerdotal, mas ainda o principado real, e lhe confiou as rédeas dos dois impérios. “Então foi abolida a tirania, esse governo sem freio, que antes era geral sobre a terra. Constantino o abdicou nas mãos da Igreja; ele recebeu da Igreja, em troca, o título autêntico do poder cristão”. O Pontífice acrescenta que o poder da espada deriva da Igreja. Na coroação do Imperador, a Igreja lhe dá a espada; Ela tem o direito de lhe dizer: reponha tua espada na bainha. Quando, portanto, o Imperador, em vez de cortar o joio, corta os galhos férteis, em vez de proteger os inocentes, protege os malfeitores, ele prevarica; e não é usurpação, é caridade retirar-lhe a espada pelo uso da qual ele perde insensatamente o mundo e sua alma. – Tal foi a linguagem do Papa aos próprios reis, a linguagem do direito.

Em outras palavras, o Papa fez notar que Frederico, tão abundante em falsidades sobre os perigos com que a autoridade legítima e desarmada da Igreja ameaça os príncipes, tinha grande cuidado em silenciar sobre as pretensões dos imperadores ao domínio universal. Era o fato presente. Frederico e seus juristas davam aos soberanos apenas o título de reis provincianos; no mundo havia apenas províncias do império. Não podendo os imperadores ter a Igreja por cúmplice, desejaram destruí-la, a fim de que Ela não contrariasse sua ambição.

Entretanto os príncipes não ousaram defender a Igreja que os defendia, e o Papa apenas era apoiado pelo partido das liberdades municipais na Itália. Deus se serviu desse fraco meio para humilhar o imperador apóstata. Frederico foi derrotado pelos burgueses de Parma. Pouco depois tombou sob o braço vingador.

Morreu em seu leito, dizem uns que de morte natural, dizem outros que esganado por um de seus bastardos. De algum tempo àquela data os golpes se sucediam sobre sua cabeça. Perdeu seus parentes, seus amigos, seus conselheiros íntimos. Havia feito vasar os olhos de Pedro des Vignes, seu escriba favorito, suspeitado de querer envenená-lo, e esse miserável se matou por temer os tormentos que lhe podia infligir o senhor, cujas virtudes tanto havia louvado. Ele o conhecia! Consta que ao clarão da cólera divina, Frederico caiu em si e se arrependeu. Deus perseguiu sua raça: seus filhos morreram golpe sob golpe, acusados de fratricídio; nada restou de seu nome.

Assim terminou esse grande episódio da luta do Sacerdócio e do Império, depois de dois séculos inteiros. Durante esse tempo, o Papado havia feito as Cruzadas, vencido a heresia albigense, abençoado as ordens nascentes de São Francisco e de São Domingos, multiplicado as universidades, fundado as repúblicas italianas, quase vencido a tirania dos republicanos capitolinos que conspiravam com os Imperadores; o Papa havia dirigido o trabalho de civilização mais fecundo que jamais foi feito no mundo. Deus lhe concedeu algum repouso.”


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