Catolicismo, N° 392, Agosto de 1983 (www.catolicismo.com.br)

 

Ditatorialismo publicitário centrista

 

A dignidade da abertura consiste na neutralidade.

Com efeito, ela é o contrário da ditadura. E esta última não consiste em fechamento para todos, mas sim para um dos lados do tabuleiro político. Isto é, abertura para o lado em que se encontra o Poder, e fechamento para os que discordam do Poder. Não vem ao caso se a abertura é para a esquerda e o fechamento para a direita, ou vice-versa o contrário. Não é o colorido político do ditador que caracteriza a ditadura. E, por isto mesmo, a palavra ditadura se aplica tanto aos governos que fazem fechamento para a direita quanto aos que o fazem para a esquerda: "ditadura de direita", "ditadura de esquerda" são expressões que se encontram a qualquer momento em todos os lábios, se lêem em todos os jornais e se ouvem em todos os rádios e televisões.

Reduzindo a essa clareza elementar e óbvia conceitos já tão conhecidos, tenho a intenção de levar ao último grau da evidência a relação entre neutralidade e abertura. Uma abertura não neutra – disfarce-se como se queira – não é senão uma ditadura.

As correntes de pensamento e os órgãos de comunicação social favoráveis à abertura lucrariam muito tendo continuamente em vista esta verdade tão elementar.

Digo-o especialmente com referência a personalidades, emissoras e folhas que se ufanam de intitular-se centristas. Pois mais de uma vez violam a neutralidade "aberturista", julgando que ficam a salvo da pecha de ditatoriais pelo simples fato de usarem a etiqueta de centrista. Como se uma ditadura centrista constituísse uma contradição nos termos.

A mais ligeira análise revela ser isto inexato. Se um governo, para executar seu programa centrista, praticasse um fechamento tanto para a direita quanto para a esquerda, ele apresentaria evidentemente a grande característica ditatorial, a qual consiste em trancar a voz dos discordantes.

E não se julgue que a hipótese de uma ditadura centrista constitua uma quimera, um simples ente de razão. Para prová-lo, cito um exemplo histórico característico. Em função da política interna da França de seu tempo, Napoleão foi essencialmente um centrista. A França estava então esquartejada em duas facções irredutíveis: os republicanos e os monarquistas partidários dos Bourbons. Instalado no poder, o Corso perseguiu e reduziu ao silêncio os líderes de uma e outra França. E, pela força bruta, impôs seu regime centrista, mescla violentamente contraditória de vulgaridade revolucionária e de aparato régio, justapostos pelas garras da águia imperial nimbada de glória militar. No tempo, era esta a forma praticável de centrismo. De centrismo ditatorial.

Numa perspectiva anacrônica, o que estou afirmando só concerniria ao Estado com seus três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas, como já tive oportunidade de escrever, o Estado de hoje – máxime o do Brasil – não pode ser visto fora do contexto de mais dois outros poderes, estes não-oficiais. Mas tão influentes na condução da "res publica" quanto os três Poderes oficiais. Os dois Poderes não-estatais são a Publicidade (4º Poder) e o Episcopado (no Brasil, a CNBB – 5º Poder). O País não terá saído inteiramente da ditadura enquanto ressaibos de ditatorialismo perdurarem no 4º e 5º Poderes. E perduram. Paradoxalmente, foram o 4º e o 5º Poderes que mais fizeram pela abertura. E que mais agastados se manifestam com qualquer sobrevivência de ditatorialismo nos três Poderes do Estado.

Sem que os meios de comunicação social e a CNBB, cada qual nos termos e nos modos que lhe são específicos, timbrem invariavelmente numa nobre imparcialidade, o Brasil terá uma abertura comparável com uma túnica cheia de nódoas e rasgões.

Menciono um caso. Quando da recente passagem do chanceler francês Cheysson pelo Brasil, a Agência Boa Imprensa – Abim lhe formulou, em entrevista coletiva que ele concedeu no Aeroporto Santos Dumont, a seguinte pergunta:

"Um tópico do projeto com o qual o Partido Socialista Francês subiu ao poder diz: "Não pode haver um projeto socialista só para a França. O dilema "liberdade ou servidão", "socialismo ou barbárie", ultrapassa as fronteiras de nosso país". Tal pensamento é coerente com as múltiplas atitudes de apoio à Nicarágua sandinista, tomadas pelo governo francês desde que subiu ao poder.

"Em muito setores da opinião pública brasileira, quer essa máxima do projeto socialista, quer a política francesa face à Nicarágua comunista causam a maior estranheza. Parece-lhes haver nesse ideologismo socialista "missionário" um favorecimento universal da luta de classes e uma extrapolação da ação do governo francês para fora dos limites de seu país.

"Seria muito propício à boa ambientação da visita que o Sr. efetua, e da já anunciada visita do Presidente Mitterrand, que o Sr. fizesse, neste momento, uma declaração cabalmente elucidativa a esse respeito. Peço-a."

Por requinte de cortesia, a pergunta foi apresentada pelo repórter brasileiro da Abim, Sr. Heitor T. Takahashi, através de um jovem francês Sr. Guillaume Babinet, que lhe servia de intérprete.

Na pergunta, o leitor nada encontrará que destoe das melhores praxes do jornalismo. O entrevistador pode e deve interrogar o entrevistado sobre todo e qualquer assunto que a opinião pública, ou uma parcela desta, necessite conhecer a fim de formar-se uma idéia precisa sobre o pensamento, o programa e a ação do entrevistado na vida pública. Normalmente excluída, pois, a vida privada deste.

Pode ser que a pergunta pressuponha um desacordo entre entrevistador e entrevistado. Negar a legitimidade de tal desacordo importaria em negar a liberdade de qualquer jornalista de oposição fazer perguntas cortesmente incômodas a personalidades da situação: o contrário da abertura. Ditatorialismo publicitário genuíno, pois.

É este o reparo que tenho a fazer a recente noticiário de um dos mais prestigiosos órgãos da imprensa de nosso País, o "Jornal do Brasil". É o que veremos no próximo artigo.

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O conhecidíssimo "Jornal do Brasil", órgão centrista ufano, que se publica no Rio, consagrou uma referência de 103 linhas – num noticiário sobre a visita do chanceler francês Cheysson – à pergunta da Agência Boa Imprensa (Abim), a qual transcrevi em anterior artigo. Nessa referência, o repórter do jornal encontrou meios de empoleirar as seguintes críticas.

1.                  A agência Abim é uma "desconhecida". Isto é coleguismo jornalístico pseudocentrista! De fato, essa agência existe há trinta anos, e transmite seu noticiário e seu pensamento a 130 folhas do Brasil que o publicam regularmente, como o repórter "centrista" poderia ver no livro "Meio século de epopéia anticomunista", com 4 edições e 39 mil exemplares vendidos (Editora Vera Cruz, São Paulo, 1980, p. 187). "Desconhecida"? Dele, sim. Porém não lhe fica bem identificar-se com o mundo, e sentenciar que por isto ela é desconhecida de todo o mundo.

2.                  O repórter "centrista" pode saber posteriormente que ela é – horresco referens! – "gerida pela TFP". E daí?.... É bem o caso de dizer que esse inquisitorial centrista descobriu o óbvio, consignado aliás no próprio texto distribuído na ocasião, à imprensa, pela Abim.

3.                  Segundo esse mesmo repórter, a pergunta feita pelo representante da Abim era uma "pseudopergunta". O conceito é novo. Todo o mundo sabe o que é uma pergunta. O que seria uma pseudopergunta? – Seria uma pergunta que não pergunta nada. Examine o leitor o texto apresentado no artigo anterior e veja se ele não resulta em uma característica pergunta. De tal maneira era genuína a pergunta que, pouco adiante, o repórter até reconhece que o Sr. Cheysson a respondeu "com certa apreensão";

4.                  Continua o repórter: "A TFP se referia a ‘um tópico do projeto com o qual o Partido Socialista Francês subiu ao Poder’ (que como demonstra a cópia da pergunta não se referia à luta de classes, conceito que foi introduzido pelo tradutor)." - Nesta ponta de galho há muita coisa empoleirada. Antes de tudo, a impressão que pode causar a afirmação de que o tradutor acrescentara algo de próprio ao pensamento do Sr. Takahashi. O que cheira a falseamento. A realidade é outra. A certa altura da resposta, o representante da Abim, através de seu intérprete, lembrou ao chanceler Cheysson que a pergunta fazia também menção à luta de classes, elemento essencial do pensamento e da estratégia socialista, que o ministro habilmente esquivava de tratar. O chanceler francês retrucou que sabia perfeitamente o que estava dizendo, que falara dos direitos humanos e não da luta de classes. E passou a discorrer sobre a revolução sandinista na Nicarágua, deixando ao largo a questão da luta de classes...

Fazendo a propaganda socialista fora da França, o governo francês estimula implícita ou explicitamente a luta de classes nos outros países. Compreende-se, pois, que o Sr. Cheysson tenha querido a todo transe esquivar a pergunta. Daí a polida insistência do representante da Abim a respeito.

Tudo isto está gravado. Seria inútil, pois, contestá-lo.

Sentindo provavelmente a inconsistência de sua investida anti-TFP, o repórter ainda consagra bom espaço a um assunto já esclarecido por esta última, e velho de dois anos: os gastos efetuados com a divulgação da Mensagem das 13 TFPs, de cujo texto tive a honra de ser o autor.

A esta altura do artigo, verifico que já passei de muito o espaço-limite dedicado às minhas colaborações. Vou ter que "encolher o texto". E prevejo que um certo sabor de ironia, que está presente nas minhas referências aos comentários "empoleirados" na notícia do "Jornal do Brasil", ainda se tornará mais sensível. A esse propósito, um esclarecimento.

Por temperamento, feitio de espírito e educação, sou infenso à ironia. E ela não está presente nas minhas intenções, se bem que o esteja talvez no meu texto. É que escrevi apertado pela preocupação de ser sintético. E a ironia encurta o caminho das argumentações.

Na realidade, quis apenas fazer notar ao repórter do "Jornal do Brasil" – presumivelmente um jovem com muito entusiasmo e algum tanto de bílis – que o uso dos métodos e estilos que empregou torna impossível a uma corrente de opinião, a qual não dispõe do imenso capital necessário para ter um grande diário, os meios para fazer chegar cômoda e decorosamente seu pensamento ao público dos leitores do jornal em que escreve esse jovem. O que importa em coarctar a liberdade de expressão de tal corrente e em subtrair aos leitores do "Jornal do Brasil" o conhecimento do que pensa uma ponderável parcela da opinião nacional como é a TFP. Censura de imprensa, pois; e ditatorialismo centrista, exercidos por quem trabalha num órgão com grandes capitais, contra quem dispõe de recursos financeiros menos amplos.

Tal importa em um ditatorialismo centrista. Não pela força bruta de Bonaparte. Mas pela força do capital.

[Transcrito da “Folha de S. Paulo” de 9 e 13-8-83]