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O universo é uma catedral[1]

 

Primeiro horizonte

 

No mar, unidade e variedade

 

Um dos primeiros elementos de grandeza do mar é a unidade. Os mares da Terra comunicam-se entre si, e constituem uma imensa massa de água que cinge todo o globo terrestre.

Numa orla do mar, em qualquer parte do mundo, uma das considerações mais agradáveis que nos vem ao espírito é abarcar com os olhos a massa líquida que se estende diante de nós até as fímbrias do horizonte, e lembrar que essa massa líquida não se encerra ali, mas tem atrás de si imensidades a que se sucedem outras imensidades, para formar uma grande e única imensidade do mar que se move, que se joga e que brinca por toda a superfície da Terra.

Quanta variedade podemos observar no mar!

Ora se apresenta manso e sereno, parecendo satisfazer todos os desejos de paz, tranqüilidade e quietude de nossa alma.

Ora se move discreta e suavemente, deixando formar pequenas ondas que parecem brincar em sua superfície, fazendo sorrir e distender-se nosso espírito na consideração das realidades amenas e aprazíveis da vida.

Ora, por fim, ele se mostra majestoso e bravio, erguendo-se em movimentos sublimes, arremetendo furiosamente contra rochedos altaneiros e deslocando de seus abismos massas de água insondáveis.

Por vezes, o mar chega à terra célere e ofegante. Em outros momentos, caminha para ela tardio e preguiçoso, por ondas que morrem languidamente na praia.

E, outras vezes por fim, apresenta-se tão completamente parado, que parece contentar-se em ver a terra sem tocá-la.

Às vezes o mar é tão límpido que se vê até o fundo de suas águas através de uma grande massa líquida.

Outras vezes, porém, ele se mostra escuro, impenetrável, profundo e misterioso.

Ora seu murmúrio dá a impressão de uma carícia, que embala e faz dormir.

Ora não passa de um ruído de fundo, semelhante à prosa de um velho amigo que muitas vezes se ouviu.

Mas, pouco depois, ele nos fala com o rugido dominador de um rei, que parece impor sua vontade a todos os elementos.

Todas essas diversidades do mar não teriam para nós concatenação nem encanto, se não se apresentassem sobre o grande fundo de uma unidade fixa, invariável e grandiosa.

O mar em suas mil formas, mil rugidos! Nos furores magníficos, nas tranqüilidades esplendorosas!

O som, o cheiro da maresia, quem nunca sentiu, ou nunca prestou atenção, ou nunca se encantou, não compreende o que são as coisas. É inútil! Não viveu! É uma coisa única.

As cores, as tonalidades que variam, depois aquela espuma branca! Ela tem um papel na beleza do mar. Já se imaginou um mar sem espuma, como ficaria sem graça?

 

O Universo é uma Catedral, cujo fim é a glorificação de Deus.

 

O mar é o jardim de um palácio de sonhos

 

A música é uma ordem de notas. O Universo é uma música de realidades

 

No sol, guerra e vitória

 

A mais perfeita explicitação da biografia de um homem é a história do sol ao longo de um dia.

Há qualquer coisa na trajetória do sol que é penosa; ela exprime a glória e a prova de um homem.

Quando vai chegando perto do meio-dia e se aproxima o triunfo dele, o sol dardeja, mas coloca uma força no dardejar! Ele tira de dentro de si todas as forças que tem, e se esforça para cobrir todas as áreas que deve cobrir, um esforço magnífico e colossal. Se bem que não se fatigue, tem uma generosidade, um empenho, um dar-se, que é fenomenal!

 

Todo o Universo, de um modo ou de outro, é um símbolo de Deus

 

Diante do opus factum, o sol vai se retirando com dignidade; é uma gloriosa diminuição, como quem diz: eu cheguei a um tal ponto que não consigo cessar de repente.

Não é o sol que entra no escuro; é o mundo que está no escuro porque ele saiu.

Tudo se faz quieto e silencioso em torno dele porque ele dormiu.

O sol é a imagem da alma que, tocada pelo absoluto[2], vai dando, vai dando, vai dando.

A Providência determinou, e está na ordem do Universo, que o calendário do homem se marcasse pelo movimento dos astros, e que, considerando esse movimento, o homem tivesse o mais magnífico dos relógios feito pelo mais magnífico dos relojoeiros.

 

O símbolo

 

O símbolo torna visível o que era invisível.

O símbolo é a expressão material de alguma coisa imaterial, imponderável.

O espírito humano não capta essa coisa em toda a sua realidade enquanto não a tenha visto em expressão material.

Sempre que conseguimos ligar uma coisa abstrata a um símbolo, é como um cego que recuperasse a visão.

 

A lua essa consoladora

 

O marulho é amigo da lua.

A lua é a grande resistente, que não se conforma com as trevas, que prolonga a luz do sol, quando o sol está longe; que dá saudades do sol que não está presente, e que faz amigavelmente as vezes do sol, para consolar aqueles que choram o sol.

 

Deus criando os diversos objetos, como que me fala através deles.

Eles são, no fundo, bilhetes que Ele me escreveu, ou fotografias que me mandou, para eu saber como Ele é.

 

O pavão, ou o encanto do supérfluo

 

O pavão age segundo os instintos. Mas estes lhe foram dados por Deus.

Foi Deus quem lhe deu aquela cauda linda, e o instinto de desdobra-la, fazendo aquela roda, e de passear mostrando-a. Tudo acontece por pura vontade de Deus.

Quando o pavão abre sua cauda, a primeira impressão é de um tal bariolé[3], uma tal inter-mistura de cores, agradável, mas estonteante de rica, de ordenada e de atraente, que a pessoa fica um pouco agredida, no sentido de que é tão belo, tão belo, que sua capacidade de apreciar o belo fica agredida, meio arrombada.

Depois, numa segunda fase, após ter absorvido mais ou menos o aspecto geral, a pessoa começa a deitar os olhos nos pormenores, e é levada por outra impressão, que, no fundo, é a primeira impressão, mais explicitada.

Vê uns semicírculos com penas de cores diferentes, com qualquer coisa de sedoso, qualquer coisa do brilho da seda ou do cristal, da pedra preciosa.

Seria preciso imaginar uma pedra sedosa, ou uma seda pétrea para compreender o pavão.

E depois, dentro, há umas sub-cores que se acumulam e se revolvem umas nas outras, que em se olhando, se fica pasmo.

Às tantas, o pavão fecha a cauda e vai passear em outro lugar, tranqüilo e arrastando pelo chão aquela peça feita de pseudo-pedrarias incomparáveis (...) Aquilo que arrasta no chão é tão superior, que nada do chão, nenhuma sujeira cola ali.

A pessoa fica naquele entusiasmo, e os olhos caem, não mais sobre a cauda, mas sobre o pescoço do pavão. É um jogo de verde-azul misturados, éclatant[4] de beleza, e com aquela distinção de uma grande-dame.

A cabeça vira para trás, olha assim de cima, toma um recuo como quem diz: “Realidade, como te atreves a estar tão próxima do meu olhar! Afasta-te que eu te vejo igualmente bem de longe!”.

Fica-se admirado com tudo aquilo. E o pavão levanta um topetinho, que não seria necessário de nenhum modo para a beleza dele, mas tem o encanto do supérfluo.

Em certo momento, o pavão revela seu segredo. É quando ele levanta seu penacho, porque então vê a plenitude dele no que é que está, e o que é que explica todo o resto.

Porque o pavão é meio enigmático enquanto não levanta aquele penacho.

Vai-se ver o pavão várias vezes, em vários dias consecutivos, até o pavão se tornar banal. Quando ele se tornou banal, é que ele foi morar dentro de nós. Ele está como que incrustado na nossa alma, porque o próprio da admiração é ser aquisitiva.

 

As fantasmagorias da noite[5]

 

Fantasmagoria é um conjunto de impressões sensíveis, coerentes, dando uma noção central única, resultante da conjugação de todas as impressões.

A fantasmagoria do dia é resultante de impressões, na sua maioria objetivas. A nota é de verdade, bom-senso e proporção humana.

A fantasmagoria da noite é resultante de impressões em grande número, que talvez na sua maioria não correspondam à realidade... A nota é de mentira, inconsistência, mas de uma mentira que não tem atrás de si o vácuo, e sim um mistério de proporções maiores que o homem, atraente, e no qual se ocultam, ora elementos de uma suprema sabedoria, ora surpresas malfazejas, insidiosas, de ação nefasta rápida e difícil de perceber.

Os ruídos da cidade são os da máquina. No campo são principalmente os do reino animal de vida noturna.

Os vários aspectos da noite: repouso, mistério, crime, luta animal; solidão e meditação; as festas noturnas são mais solenes que as do dia.

O dia faz ver a realidade palpável, na sua clareza, coerência, proporção humana; tudo na natureza parece feito para ser cognoscível e dirigível pelo homem, para ser sujeita a ele e adaptada a ele como a seu rei.

À noite a natureza tem os aspectos irreais das sombras... tudo tem ar de fantasmas e parece conter fantasmas.

A luz da lua, em vez de iluminar a coisa para fazer ver como ela é, a ilumina para mostrar como é a própria luz da lua. Uma atmosfera extra-terrena banha tudo.

Os fogos fátuos e as reluzências são brilhantes, transitórias, arbitrárias no capricho de seu aparecimento e desaparecimento inopinado... Encantam, mas têm uma beleza que ofusca e, a tornar-se estável, faria mal. É portanto insidiosa...

Em geral, a causa dessas reluzências (ao contrário da luz do dia) não salta aos olhos: daí a impressão de resultar de forças misteriosas, extraterrenas e inquietantes por sua própria arbitrariedade e intensidade.

As sombras do dia são atraentes, risonhas, sem mistério. Não é o contrario contraditório da luz, mas é um contrário harmônico que ajuda a suporta-la.

As da noite nos inspiram sentimentos contraditórios. Ao mesmo tempo, nos dão uma tremenda nostalgia do dia e nos levam a desprezá-lo como acaciano e banal.

Os principais ruídos do dia são os do homem. Mesmo os da natureza, têm qualquer coisa de proporcional a ele. É evidente que tudo se move em função dele. As causas são evidentes. Os bichos se movem ao império da rotina pacífica da conservação e do trabalho.

À noite tudo é silêncio. Mas um silêncio em que se sente o mistério, porque não é só a ausência de movimento do que vive, mas é a intuição de que se movem sem ruído mil seres que de dia dormem.

Este silêncio só é entrecortado por zumbidos, ou ruídos inopinados, ou sons trágicos. Os animais que se movem, se fossem grandes, nos pareceriam monstruosos... ou de contos de fadas, como o rouxinol.

É o mata-mata. E mesmo o vôo rotineiro dos pássaros tem qualquer coisa de assustador e furtivo.

O retrospecto e o senso histórico florescem na noite.

A grande festa dada à noite é mais solene, por conaturalidade com tudo quanto há de mais pomposo, sob certo ponto de vista, na noite que no dia.

Sei que são ilusões. Mas Deus as criou para falar de Si e também do anti-Ele[6].

 

Da perfeição da humildade à da magnificência

 

Deus quer ser louvado em toda a escala dos seres criados por Ele, desde o pavão até a formiga, que vive no seio da terra, numa espécie de catacumba, na escuridão completa.

Há algo de magnífico no que a formiga faz de laborioso, de humilde, de contínuo. Dir-se-ia que o trabalho da formiga é profundamente raciocinado; dir-se-ia, se se pudesse dizer, que a formiga é racionalíssima, porque os formigueiros são feitos na perfeição.

Mas, de repente o homem olha, e vê no ar uma dessas borboletas azuis-verdes e fica encantadíssimo!

De modo que, se fizéssemos um quadro das criaturas que Deus criou, encontraríamos as mais diversas perfeições, desde a perfeição da humildade até a perfeição da magnificência.

Deus quer ser conhecido em todas as suas obras.

As criaturas existem na sua variedade, formando coleções, para apresentar a totalidade das possibilidades [de refletir a Deus].

Assim, podemos considerar uma coleção de pedras preciosas. Para a coleção ser completa, tem de haver nela muitas pedras. E o bonito é que a coleção seja tal que espelhe todas as possibilidades de ser bonito, de ser pedra.

O Koh-i-nor tem um brilho, uma beleza, que facilmente lembra a rutilância da inteligência divina.

Do mesmo modo é com os homens. As raças diferentes, as capacidades próprias a cada raça, tudo isso tem uma espécie de magnificência que exprime as perfeições de Deus.

Assim como Deus criou os pavões, deu ao homem talento para criar a seda. Que coisa bonita um tecido de seda de primeira categoria! O frufru da seda é lindo! Quando se pega a seda na mão e esfrega uma parte na outra, aquilo forma um contato delicioso.

Quando a marquesa andava, e a cauda de seu vestido se arrastava no chão, o reflexo da seda debaixo dos lustres podia ser uma beleza!

O ver muitas coisas de acordo com o que simbolizam aumenta os horizontes de modo fantástico e une as almas de modo fantástico também. Não se imagina como seria bonito e admirável se todos entendessem os símbolos como devem!

Os símbolos nos fazem ver a realidade tanto quanto o conhecimento abstrativo, apenas por outra via. Devemos desenvolver ambas as vias e não apenas uma.

 

A ponte que liga o visível ao invisível é o símbolo. Os homens seriam muito mais dados à reflexão se percebessem o valor simbólico das coisas.

 

A garça e seu pequeno mundo

 

[A garça] tem aquele corpo branco, de onde sai um pescoço delicado e elegantemente torneado, com uma cabeça pequena e um bico muito grande, que é símbolo da capacidade de captar, de prever e agir à distância.

Só se percebe que ela se move na ocasião em que, num passo elegante, com aquelas pernas compridas, abre a pata de palmípede e caminha.

É uma elegância no ir para a frente, com distinção, como quem comanda um império: ela manda com tanta finura e autoridade no minúsculo território onde ela é rainha, que dá gosto, a quem aprecia o princípio da autoridade, ver a garça mover-se

 

Elegância é a excelência que apresenta toda coisa que se faça notar por uma das inumeráveis combinações possíveis de força e leveza.

 

Em determinado momento, algum instinto se move na garça. Ela abre suas asas e voa: Adeus, pântanos! Adeus, insetos! Ela também tem o ar. Além de tudo, ela tem as vastidões, o sol que bate nas suas asas e a torna rutilante como se fosse feita de neve.

Suas pernas parecem filamentos que prolongam elegantemente sua estatura.

Ela corta o ar com um vôo muito mais elegante do que a elegância de seus passos. A garça vive os seus grandes dias.

 

A elegância é um primeiro estágio no caminho da sublimidade.

 

O gato é um “bibelot” que se move

 

Grandes homens não são aqueles que só se interessam pelas grandes coisas. São aqueles que sabem ver grandes horizontes nas coisas pequenas também.

No gato, animal extraordinariamente rico em aspectos, há de tudo.

Tigre em miniatura, é ele uma minúscula fera, que às vezes se manifesta arranhando, mordendo, saltando inopinadamente, assustando, ponto tudo em rebuliço e quebrando o que encontra.

Mas, quando o elemento fera se aquieta, o gato se mostra de modo oposto: encantadoramente vivaz, delicado e distinto em todos os seus gestos, expressivo em suas atitudes, carinhoso, mimoso, em suma um verdadeiro bibelot vivo.

Um bibelot, entretanto, que não tem certo ar de bagatela inseparável em geral até dos bibelots mais finos.

Porque em seu olhar, que tem algo de magnético e insondável, de reservado e de enigmático, o gato conserva a terrível e atraente superioridade do mistério.

 

 

O maravilhoso é para todos

 

Devemos querer as coisas pequenas por causa das grandes, e em ordem às grandes.

É preciso ter a alma feita de tal maneira que uma pessoa possa meditar sobre Carlos Magno e, ao mesmo tempo, ficar entusiasmada, e saber parar e se encantar quando vê num parque, de repente, uma joaninha.

 

Dizer “o maravilhoso não existe” é um modo de dizer “Deus não existe”.

 

Há uma concepção do Universo que considera Deus enquanto causa exemplar[7] da criação

Enquanto ser infinitamente belo, que se reflete de mil maneiras em todos os outros seres que criou.

De tal modo que não há nenhum ser que, a um título ou outro, não seja um reflexo da beleza incriada de Deus.

Mas, sobretudo, a beleza de Deus se reflete no conjunto hierárquico e harmônico de todos esses seres.

E não há, em certo sentido, melhor modo de conhecermos a beleza infinita e incriada de Deus do que analisando a beleza finita e criada do Universo.

Por exemplo, a beleza do mar.

 

A tendência ao maravilhoso é a tendência ao metafísico[8] enquanto expressa de modo simbólico; portanto, acessível a todo mundo.

 

 

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[1] Edições Brasil de Amanhã – Rua Javaés 681 – São Paulo – SP

1997

[2] Absoluto, senso do absoluto: os seres criados são o vestígio, a imagem e a semelhança do Criador. Portanto, em todas as coisas, de alguma forma reluz o absoluto. Ter o senso do absoluto é o saber ver em todas as coisas os aspectos que melhor refletem a Deus. Entre outros autores, explanou São Boaventura tal tese, por exemplo no Brevilóquio (Parte II, cap. XII) e no Itinerário da Mente para Deus (Cap. I,2). “A criação do mundo é como que um livro, no qual resplandece, representa-se e lê-se a Trindade criadora em três graus de expressão, a saber: como vestígio, como imagem e como semelhança” (Brevilóquio, II, XII). V. também Santo Tomás de Aquino, “Summa Theologica”, I q. 45 a. 7.

[3] Multicolorido.

[4] Rutilante.

[5] Estas “fantasmagorias da noite” foram escritas pelo Prof. Plínio Corrêa de Oliveira numa noite de insônia, na Fazenda Morro Alto (Amparo-SP). Não dispondo de papel à mão, ele as anotou numa folha em branco de um livro que estava lendo.

[6] O demônio.

[7] Santo Tomás de Aquino explica o que vem a ser causa exemplar: “A produção de qualquer coisa exige um modelo a fim de que o efeito tenha uma forma determinada, pois o artífice produz na matéria uma forma determinada segundo o modelo que ele considera (...) Deus mesmo é o primeiro modelo de todas as coisas” (Summa Theologica, 1, q. 44 a. 3).

[8] Neste trecho o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira emprega a palavra metafísico em seu sentido etimológico, ou seja, o que está para além do físico.