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O universo é uma catedral

 

 

 

 

Seção segunda

 

O Belo, o Bom e o Verdadeiro – A procura do Absoluto

 

A águia e o cordeiro

 

Imaginem que um cordeiro limpo, branco, encantador, se estivesse apascentando numa pradaria magnífica. De repente voa sobre ele uma água, e o convida:

- “Se quiseres, eu te pego pelas garras e te levo até o alto da montanha. Ali, terás algo de inimaginável. Mas tens que deixar a pradaria”.

Podem me crer, é uma verdadeira forma de martírio. É um holocausto, em que a pessoa ao pé-da-letra morre para reviver.

Há cordeiros que se recusam a sair do pasto. E dizem para a águia:

- “Quando te via daqui de baixo voar, eu te amava. Mas quando desces até mim, e me convidas a participar de teu vôo, tu me arrepias”.

Talvez acrescentem:

- “Tu me encantavas enquanto não me querias. A partir do momento que me queres, me assustas”.

De si para si, o cordeiro pondera:

- “Ela, ao mesmo tempo que me tira o indispensável, oferece-me um supérfluo tão abundante, que me arrepia. Minha mediocridade – il faut bien empregar o termo – recusa isso”.

Mas a inocência do cordeiro com facilidade leva-o a querer ser transportado pela águia. Ao contrário de suas partes pesadas, que perderam o gosto da inocência. As partes abdominais.

Esse sacrifício é leve na medida em que é feito de uma vez só. Se o cordeiro sobe olhando para a pradaria, ele em certo momento pede para a águia baixar. Ele tem de olhar para o píncaro do píncaro e esquecer da pradaria.

 

O Belo abre caminho para o Bem e a Verdade

 

O Pulchrum[61] serve de introdução e de encerramento para o estudo do Verum e do Bonum.

 

O Pulchrum é a face do Verum[62] e do Bonum[63], e enquanto ele não se mostra, não se conhece inteiramente o Verum e o Bonum.

 

Em muitas ocasiões, a pessoa se pergunta se o Pulchrum não é a explosão conjunta do Verum de do Bonum[64].

Quando o homem se encontra diante de certas formas de pulchrum, fica como que paralisado, sem poder agir mal.

O Pulchrum é o filho santo, nascido das castas núpcias entre a Verdade e o Bem.

A batalha contra a mediocracia[65] consiste muito mais em subir do que em golpear.

[O absoluto] é uma forma de luz que, quanto mais alta, mais se faz ver aos cegos, e uma forma de música que, quanto mais esplendorosa, mais se faz ouvir aos surdos.

O senso do absoluto levou, com o pecado original, uma pancada medonha, e todos os grandes pecados cometidos pela Humanidade prejudicaram ou trincaram o senso do absoluto, dando lugar à hipertrofia por demais ágil, forte, dinâmica das sensações periféricas.

Depois do dilúvio, dizem que a longevidade dos homens diminuiu por castigo. Não sei se será certo, mas isso é fácil de admitir como corolário, pois eu acho que quanto menos o homem tem o senso do absoluto, menos ele é longevo.

O absoluto cria a verdadeira perspectiva para a mente do homem, e assim faz bem a todo o sistema de reações dele. Isto, de si, o torna mais longevo; sua vitalidade, no que tem de mais ursprünglich[66], jorra melhor diante da idéia mais adamantina, mais exigente, mais lúcida, do que seja o absoluto.

 

O homem que passa a vida no efêmero torna-se efêmero[67].

 

Nossa Senhora faz participar aqueles que se dão a Ela sem reserva, aos escravos[68] dEla, Ela faz participar do senso do absoluto que há nEla, em grau inimaginável, abrindo com isso outra era histórica.

No fundo de todas as almas católicas, há campanários soterrados que soarão com todos os seus timbres quando Nossa Senhora resolver fazer soar, no Imaculado e Sapiencial Coração dEla, esta nota [do senso do absoluto]

 

A inocência entendida até o fim é o melhor e o mais exquis licor do senso do absoluto.

 

Seção terceira - A inocência

 

Algo... uma luz

 

A inocência está sempre à procura de algo. De algo que é cheio de luz, cheio de paz; cheio de ordenação, de concatenação e de força; cheio de tranqüilidade.

De algo que tem a capacidade de tudo mover; sem mover-se a si próprio.

De algo de inefável, de divino, de interior e de secreto.

De algo que tem, portanto, de ser a luz e a glória, o marco fundamental e a pedra de ângulo dos séculos futuros; que tem, portanto, de iluminar a Humanidade inteira, tem de inspirar os sistemas filosóficos, as instituições e os costumes; tem de despertar as escolas de arte e, muito mais do que isso, tem de inspirar os santos, e dar à Igreja novos e mais rutilantes dias de glória.

Deste algo que é o reflexo do olhar, do sorriso e da majestade de Nossa Senhora.

Que é, em verdade, este algo? Será ele palpável e definível? Ou deve ser colhido, na fugacidade de seus reflexos, para ser reconstruído interiormente, de modo todo especial, no íntimo de cada um de nós?

Foi este algo que brilhou na minha infância quando tive o primeiro choque com a impureza, e vi – no contraste com o horroroso, o cavernoso, o tenebroso, o execrando da impureza, em sua desordem e sordície fundamental; no que tem de recusável por definição e a prima facie – vi, nesse contraste, o sublime da pureza, em todas as suas glórias, seus ascendentes e suas superioridades.

Foi este algo que brilhou quando tive o primeiro choque com o igualitarismo, que rejeita tudo quanto é qualidade, tudo quanto é categoria, tudo quanto é classe. Que quer que todas as coisas sejam chulas: sem distinção, sem beleza, sem elevação, sem grandeza.

Vi, então, que o Universo todo afirma o ser sobre o não-ser, a ordem sobre a desordem, a categoria sobre o que não tem categoria. E, embevecido, considerei uma série de categorias que se vão quintessenciando umas às outras, subindo, galgando cada vez mais, até um ápice que é a categoria das categorias, a distinção das distinções, a classe das classes, a perfeição das perfeições. Forma de bem majestosa, grandiosa, régia! Forma de bem ao mesmo tempo tão acolhedora, que é desejosa de conter tudo em seus braços!

Foi este algo que brilhou em minha infância quando percebi que a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana é a verdadeira Igreja de Deus, e quando soube que existe a infalibilidade papal.

Foi este algo que brilhou quando tive os primeiros contatos de alma com a Idade Média, e no ódio que senti quando li os processos de Luís XVI e Maria Antonieta. Foi esse algo que brilhou quando me agarrei às rodas de uma carruagem, no palácio de Versailles[69].

Este algo foi o sorriso de minha infância, é a alegria da minha vida e minha esperança da eternidade.

Este algo produz na alma não sei que ordem, não sei que paz, não sei que certeza, não sei que segurança, não sei que intransigência de ferro e fogo, não sei que amor a isto e não sei que ódio ao que é o contrário disto, não sei que pouco-caso para com tudo o que não se relaciona com isto, não sei também que grau de afeto por toda a alma na qual se note ao menos um laivo disto.

 

*  *  *

Que é este algo?

No fundo, ele se relaciona com a ordenação do ser e talvez com a própria noção de ser, vista com clareza especial em reflexos dele, como o chapéu cônico usado pelas senhoras na Idade Média, ou o penacho de uma armadura. Esses reflexos – não só do ser criatura, mas também do Ser divino – nos convidam para a contemplação e para a ação, e para aquela sentença do livro dos Macabeus: “Por que nasci eu para ver a ruína de meu povo? De que nos serve pois o viver ainda?”[70]

Este algo, esta luz penetrou em cada um de nós no dia de nosso Batismo. Infelizmente, esta luz que devia caminhar e progredir, e dominar completamente a personalidade de cada um, faz o papel de luz que brilha nas trevas.

Somos como o Cristo do Corcovado em um dia em que as nuvens cobrem, ora uma, ora outra parte dEle. Essa é a nossa história. De muita glória, porque a luz não se extinguiu, se tivemos um mínimo de fidelidade. De muita tristeza, porque deveria ter iluminado o mundo inteiro.

Nossa Senhora disse em Fátima: “Por fim o meu Imaculado Coração triunfará”.

Não será que o primeiro triunfo dele será em nossas almas? Não será que ele vai entras nelas?

Não será que ele vai fazer entrar nelas este algo, esta luz que não se pode definir, mas que é o esplendor da vida terrena, para o qual fomos chamados?

Assim, desencadeada a maior tempestade de toda a História, esta graça fará surgir homens que sejam tochas, homens que sejam gládios, homens que sejam anjos.

Homens que sejam tais, que do brilho da personalidade deles brote finalmente o Reino de Maria![71]

 

Mantendo a harmonia dentro de si

 

As formas de prazer que conservam e desenvolvem o bem-estar plácido, sólido, tranqüilo, ameno, sorridente, são as formas verdadeiras de bem-estar, e não vale a pena sacrificar esse estado por nenhuma forma de prazer que traga perturbação.

A maior parte das pessoas são guitarras usadas como bumbo[72].

Viver é realizar a harmonia em si, colocá-la em torno de si, e batalhar para harmonizar, coordenar e concatenar todas as coisas.

 

Remédios para o nervosismo

 

Equilíbrio é o statu quo dinâmico, deleitável e lutador da harmonia.

Equilíbrio é a conservação dentro da harmonia.

Por isso, quem está bem posto [na harmonia] não pode ver um desequilíbrio, uma desarmonia, sem se sentir contestado em seu interior.

Muito mais do que se fosse ele o objeto da contestação.

Porque o que se contesta é aquela harmonia, que é Deus – mas é preciso ver Deus como harmonia para compreender isso.

O equilíbrio de toda a alma humana é capaz, à imitação de Deus de todos movimentos bons, honestos e legítimos de um modo encantador ou empolgante.

 

De maneira que o homem inteiramente equilibrado pode ter extremos de combatividade, na alegria de sua alma, e ao mesmo temo se encantar manuseando uma renda.

  

Ouvindo bater o coração de Dona Lucilia

 

Acho admirável a informação de que o som que a criança recém-nascida mais gosta de ouvir é o do batimento do coração da mãe. Inclusive do ponto de vista das tais interações de instintos, das afinidades que vão para a vida inteira. E são estas consonâncias que formam as dinastias.

O que Mamãe[73] sentia, eu sentia. O que ela não sentia, eu não sentia. Sem termos a necessidade de entrar em explicitações. Por um olhar, por um gesto, por um oferecimento de um pequeno objeto enquanto estávamos conversando. É uma conaturalidade em coisas muito profundas, e envolvendo a personalidade inteira, todos os modos de ser. E nesse sentido, sem falar na semelhança física devida a fatores hereditários, acho que uma afinidade muito profunda desse gênero pode produzir até uma tal ou qual semelhança física. Sobretudo tratando-se de mãe e filho.

 

Para o alto!

 

Um foco de luz que sobe à noite num céu sem nuvens, este é o facho da inocência.

 

Donde uma forma de audácia de voar para cima, para cima, que é uma espécie de embriaguez, porque a alma não se sente saciada em sua fome e sede de Justiça.

 

O próprio do senso do ser[74] é existir no homem como primeiro impulso voltado para essa ordem ideal.

Interessa saber como esse senso é, porque aí teremos uma descrição do primeiro lance e do fundo de quadro da inocência, para a vida inteira[75].

 

Rumo às culminâncias

 

A criança gosta que lhe narrem contos de fadas, que são irreais, porque lhe dizem algo que é verdade no reino do além; é um envelope fantasioso que contém uma verdade magnífica, oculta.

Através do senso do ser procura-se obscuramente uma ordem ideal, imaginando-a realizada em seres análogos aos que são conhecidos, idealizando seres[76] aqui conhecidos e, num grau mais alto, procurando ver em pessoas imaginárias, idéias e conceitos correlatos a tais seres.

Havendo inocência numa pessoa, e a fortiori se ela recebeu o Batismo, há uma preservação, um desenvolvimento do senso do ser, que faz com que, olhando para determinada coisa, ela imagine como seria essa coisa se fosse ainda mais excelente.

 

“E assim se encaminha para imaginar uma transesfera...”

 

Se a pessoa for fecunda em formar noções ideais, muito subconscientes, mas efetivas, a respeito do que a cerca, ela vai buscando um universo ideal.

Ela sabe que esse universo ideal não existe, mas tem a noção de que, de algum modo, deve existir.

E assim se encaminha para imaginar uma transesfera[77].

O movimento universal de tudo quanto existe é voltar-se para a culminância. E na culminância está Deus Nosso Senhor, que exprime plenamente aquilo que o ser pode exprimir[78].

 

Existir é uma glória

 

É uma glória ser, existir, pensar.

O ser já é de si um fato luminoso, expansivo, eu diria, em certo sentido, explosivo, irradiante de uma alegria harmônica: “Eu sou, eu existo, eu fui criado, que maravilha!”

Além do mais, como o ser é susceptível de ter dimensões, atingir a plenitude de suas dimensões é outra glória dentro da glória, que requinta, destila, dá uma projeção especial à glória de ser.

 

Continuamente, se a pessoa atentasse para o que é, veria, brilhando em tudo, esta glória.

 

O ser deve ser visto como uma espécie de luz que refulge, que rebrilha, que é magnífica.

 

E, por detrás de tudo, [aparece] a grandeza e, em conseqüência uma seriedade, uma intransigência, uma repulsa enormes em relação ao que contraria esse élan!.

 

Eu existo!

 

A criança nota não apenas que ela existe, mas que todo um mundo existe. Há o ser. Nisto consiste o senso do ser[79]: as coisas existem, e formam um todo[80].

No senso de que algo é, e de que eu mesmo sou congruente como Universo, está [em germe] a perfeição do amor de Deus.

O amor a si mesmo é um amor segundo, um amor subsidiário.

O conceito de Deus não é inato no homem[81], mas o senso do ser é tão amplo, e a luz que ele tem é tal, que o homem, pensando retamente, não precisa caminhar muito para chegar ao conceito de Deus[82].

A posição da alma em estado de inocência – em que a alma, por assim dizer, saiu das mãos de Deus – faz lembrar a inocência da mão do Criador.

 

Existe a harmonia, existe a perfeição!

 

O inocente tem um desejo[83] de encontrar reproduzida em todas as coisas, sobretudo em todos os homens, a harmonia absoluta.

Quando se diz à criança que [algo que fez] é feio, ela fica vermelha, porque contrariou uma das regras do ser, por onde lhe é mais sensível toda a ordem do ser: as coisas devem ser belas.

Se se der a uma criança um brinquedo esférico, ela, sem perceber; procura a esfera perfeita. Tanto que, se a esfera tiver um defeito e lhe derem uma esfera perfeita, ela deixa a esfera imperfeita.

A primeira operação mental, que mais interessa à criança, é verificar a existência do perfeito no perfectível[84].

O senso do perfeito é a matriz primeira em função da qual a criança fará todo o seu trabalho intelectual.

 

Um borbotão de certezas

 

A criança tem uma certeza, uma força de lógica[85] que é uma das maiores jóias do espírito humano e é o contrário do egoísmo pútrido do quinquagenário desabusado.

Dizer à criança “comece duvidando” mata nela algo de precioso, porque não se começa duvidando, uma vez que se têm certezas originárias que não permitem a dúvida[86].

Essa força, essa certeza primeira, essa energia de lógica, fazem brotar um borbotão de certezas iniciais[87], pelas quais a alma, se for fiel, fica dotada de certezas para a vida inteira, e cheia de luz[88]. E também de uma energia e uma capacidade de se sentir feliz dentro dessa atmosfera, que é como que a posse continuada do paraíso, ponto de partida para tudo.

 

E a serpente entra no “paraíso”

 

Vem depois a tentação de achar que o mundo dos arquétipos[89] e das belezas originárias, das certezas originárias, é um mundo muito alto, longínquo, pouco útil e portanto não manuseável.

Aparece, então, a tendência a ir esquecendo aquilo, lentamente.

Um riso malicioso é como ácido sulfúrico derramado nos olhos da criança.

E então a criança tem a primeira queda[90], solicitamente apoiada pelo ambiente que começa a dizer a ela que a realidade é apenas o palpável.

Se, antes de a criança ser tentada, ela amou o bem de tal modo que o fez com certo exclusivismo[91], quando começa a tentação, ela está armada. Se ela o amou sem exclusivismo, mas por diletantismo, está desarmada. De maneira que é no elemento mais originário da relação da criança com o bem que ela começa a se definir[92].

 

Quando entra o exclusivismo, entra a imolação. E quando vem a tentação, encontra um dique dentro da alma.

 

A criança e a bola

 

Pelas energias do senso do ser, a criança é levada a amar uma bola com as qualidades ideais da bola, sem tê-las explicitado.

Duas crianças brincam com duas bolas iguais. No modo de brincar, podem aparecer as características especiais do unum [isto é, do modo de ser uniforme] com que uma e outra criança vão tocar a vida, porque transparece algo de como se portaram por ocasião de suas primeiras percepções do ser.

Uma criança tem a tendência de olhar a bola, analisá-la e brincar; o outro põe a bola no corredor e mete um chute. São duas atitudes diante do ser e da vida: uma é voltada para a destruição, e outra para a contemplação[93].

 

As delícias da inocência

 

Para o inocente[94], ver que a ordem externa é coerente com a ordenação interna que ele tem, é um affaire pessoal capital, muito mais importante do que ter saúde e dinheiro. Aqui está a matriz do idealista.

O inocente anela toda forma de harmonia.

O corpo é uma morada deliciosa para a alma casta.

 

A castidade inteira não é só a repulsa da impureza; é a ordenação do espírito rumo ao que é maravilhoso.

 

O inocente é aberto a toda a escala da ordem do ser, de sorte que ora está nele entreter-se legitimamente com a formiga, ora procurar ver o sol.

 

Quem não sabe passar das estrelas aos vermes, não é digno das estrelas, nem dos vermes!

 

É da retidão temperamental que surge um começo de retidão doutrinária[95].

Como Paul Bourget pôs em evidência em sua célebre obra “Le Démon du Midi” – “cumpre viver como se pensa, sob pena de, mais cedo ou mais tarde, acabar por pensar como se viveu” (ob. cit., Librairie Plon, Paris, 1914, vol. II, p. 375). Assim, inspiradas pelo desregramento das tendências profundas, doutrinas novas eclodem.

É próprio da virtude cristã a reta disposição das potências da alma e, pois, o incremento da lucidez da inteligência iluminada pela graça e guiada pelo Magistério da Igreja.

É no vigor de alma que vem ao homem, pelo fato de Deus governar nele a razão, a razão dominar a vontade, e esta dominar a sensibilidade, que é preciso procurar a serena, nobre e eficientíssima força propulsora da Contra-Revolução[96].

 

Epílogo

 

Era uma noite de verão, não extraordinariamente bonita. Comum.

“O espírito que inspirou todas essas Catedrais se faz sentir, e então...

... mais vivemos no Céu do que na Terra”.

Catedral de Notre Dame de Paris vista à noiteA Catedral[97] estava iluminada e o automóvel em que eu vinha passava da rive gauche para a ilha.

E eu via a Catedral assim de lado, e numa focalização completamente fortuita. Naquele ângulo tomado ao acaso – se acaso existisse, e em algum sentido existe – olhei e achei tão belo, que fiquei com vontade de dizer ao chauffeur: Pára, que eu quero ficar aqui.

Eu sei que o resto é muito belo, mas creio que poucos olharam a Catedral deste ângulo e pararam. Eu queria ser dos poucos a dar a Nossa Senhora louvor deste ponto de vista, que os outros talvez não tenham louvado suficientemente.

Ao menos se diria que um peregrino vindo de longe amou o que muitos, por pressa ou por não terem recebido uma graça especial para aquilo, não chegaram a amar. E em todos os grandes monumentos da Cristandade, depois de admirar as maravilhas, eu tenho a tendência de ir admirando os pormenores, num ato de reparação, porque estes pormenores talvez não tenham sido amados como eles deveriam ser amados.

*  *  *

Do fundo de nossas inocências sobe algo que é luz, super-luz, mas ao mesmo tempo é penumbra, e é obscuridade, sem ser treva. É a idéia de todas as catedrais góticas do mundo. As que foram construídas e as que não foram construídas, dando uma idéia de conjunto de Deus que, entretanto, ainda é infinitamente mais do que isso. O espírito que inspirou todas essas catedrais como que se faz sentir, e então realmente mais vivemos no Céu do que na terra. E nosso desejo de uma outra vida e de conhecer um Outro, com “O” maiúsculo, tão interno em mim que é mais eu do que eu mesmo sou eu, mas tão superior a mim que eu não sou sequer um grão de poeira em comparação com Ele, esse meu desejo se realiza.

Eu digo:

- “Ah! Eu compreendo. O Céu deve ser assim”.

Nós amamos ainda mais o espírito eterno e invisível que criou tudo aquilo e parece dizer:

- “Meu filho, eu existo, vê estas coisas e compreende: isto é semelhante a Mim. Mas, por mais belo que isto seja, Eu sou infinitamente dissemelhante disto; tenho uma forma de beleza tão quintessenciada e superior, que só quando me vires verdadeiramente te darás conta do que Eu sou.

“Vem, meu filho. Vem, que Eu te espero. Luta durante algum tempo, que estou me preparando para te mostrar, no Céu, belezas ainda maiores, na proporção em que foi grande e dura a tua luta. Espera, e quando estiveres pronto para ver aquilo que Eu tinha intenção de que visses quando Eu te criei, Eu te chamarei.

“Meu filho, Eu sou a tua Catedral. A Catedral demasiadamente grande, a Catedral demasiadamente bela, a Catedral que fez sorrir nos lábios da Virgem um sorriso como nenhuma jóia fez florescer, nenhuma rosa e nenhuma das belas criaturas que Ela conheceu”.

Esta Catedral é Nosso Senhor Jesus Cristo, é o Coração de Jesus que pôs no Coração de Maria harmonias indizíveis.

Ali, tu conhecerás Aquele que disse de Si mesmo:

“Serei Eu mesmo tua recompensa demasiadamente grande”.

 

Há momentos, minha Mãe, em que minha alma se sente, no que tem de mais fundo, tocada por uma saudade indizível. Tenho saudades da época em que eu Vos amava e Vós me amáveis, na atmosfera primaveril de minha vida espiritual. Tenho saudades de Vós, Senhora, e do paraíso que punha em mim a grande comunicação que tinha convosco.

Não tendes também Vós, Senhora, saudades desse tempo? Não tendes saudades da bondade que havia naquele filho que fui?

Vinde, pois, ó a melhor de todas as mães, e pelo amor ao que desabrochava em mim, restaurai-me: recomponde em mim o amor a Vós, e fazei de mim a plena realização daquele filho sem mancha que eu teria sido, se não fosse tanta miséria.

Dai-me, ó mãe, um coração arrependido e humilhado, e fazei luzir novamente aos meus olhos aquilo que, pelo esplendor de vossa graça, eu começara amar tanto e tanto.

Lembrai-Vos, Senhora, deste David[98], e de toda a doçura que nele púnheis.

 

 

 

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[61] Devido a certa banalização da palavra belo em português, o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira muitas vezes lhe preferia o termo latino pulchrum, que significa a mesma coisa mas carrega outras conotações. Sobre o pulchrum em Santo Tomás, vide Summa Theologia, I, q. 5, a. 4; I, q. 39, a. 8; I-IIae, q. 27, a. 1 ad 3.

[62] Do latim: Verdadeiro

[63] Do latim: Bom. É interessante recordar, a esse respeito, a máxima da filosofia escolástica: “Ens et unum, verum, bonum convertuntur” (o ser e o uno, o verdadeiro e o bom são reversíveis).

[64] “O Belo na ordem criada é o esplendor de todos os transcendentais reunidos: do ser, do uno, do verdadeiro e do bom; ou, mais particularmente, é o fulgor de uma harmoniosa unidade de proporção na integridade das partes (splendor, proportio, integritas – cfr. Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q. 39, a. 8)”. Garrigou-Lagrange O. P., Divine Perfezioni, Roma, 1923, p. 337.

[65] Mediocracia: nesta frase, significa a ditadura dos medíocres.

[66] Do alemão: Primitiva, primeva, originária.

[67] Como esclarece o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira na mesma conferência, isto não se deve entender no sentido de que quem vive no efêmero necessariamente viva pouco, nem que viva necessariamente muito quem procura o absoluto; há uma intercorrência de muitas causas na determinação da longevidade de uma pessoa. Mas a busca do absoluto é uma das causas, e não das menores. Existem, na realidade, fatores não biológicos que interferem no bom funcionamento do corpo humano. Talleyrand deixou uma página inolvidável sobre este interessante tema, quando descreve os cuidados caridosos com que sua avó, Marie-Françoise de Rochechouart, princesa de Chalais, cuidava dos doentes das imediações de seu castelo. Ele assevera: “Os melhores remédios, receitados por médicos de grande fama (...), não lhes proporcionariam tão grande bem, pois faltar-lhes-iam os eficazes efeitos morais que facilitam a cura do povo: a obsequiosidade, o respeito, a fé e a gratidão. O homem possui uma alma e um corpo – e a primeira é que governa o último. Os feridos que receberam consolo, os enfermos em que se renovaram as esperanças, encontram-se já, por esse modo, predispostos à cura. Seu sangue circula melhor, seus humores se purificam, seus nervos se fortalecem, volvem-lhes o sono e o corpo se revigora. Nada é mais eficaz que a confiança. E ela atinge sua plenitude, quando emana dos cuidados e das atenções de uma grande dame, que é vista aureolada com todas as idéias de poder e proteção” (Talleyrand, Mémoires, Calman Lévy, Paris, 1891, 2 vols.).

[68] O Prof. Plínio Corrêa de Oliveira durante toda a sua vida foi entusiasta da escravidão de amor a Nossa Senhora, exposta por São Luís Maria Grignion de Montfort em seu “Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem” (Ed. Vozes e Ed. Paulinas, numerosas edições).

[69] Maravilhado com uma carruagem exposta no Palácio de Versailles (França), Plinio, quando contava apenas quatro anos, não quis acompanhar seu pai que o chamava para ir embora. E agarrou-se às rodas da mesma (cfr. João S. Clá Dias, Dona Lucilia, Artpress, São Paulo, 1995, I vol., p. 167).

[70] I Mac. II, 7 e 13.

[71] “Reino de Maria”: como já se viu, trata-se de uma expressão de São Luís Maria Grignion de Montfort (cfr. Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem,).

[72] Ou seja, fazem violência a si mesmas entrando em um estado de febricitação que não é pedido por seu temperamento e o prejudica. Assim como uma guitarra manuseada como bumbo se desarranjaria, também a agitação desregula o temperamento e gera o nervosismo, que é o “mal du siècle”.

[73] Dona Lucilia Corrêa de Oliveira, que teve recentemente sua biografia publicada (João S. Clá Dias, “Dona Lucilia”, Artpress, São Paulo, 1995), será objeto de um capítulo especial nessa coleção, no volume “Grandeza – Por um novo tipo humano” (em preparação).

[74] Senso do ser: a percepção que, em determinado momento, a criança tem de que ela existe, de que as coisas existem. Na concepção pliniana, essa percepção difusa inclui uma extraordinária riqueza.

[75] “Especialmente quereríamos notar aqui a semelhança que existe entre o primeiro olhar intelectual do menino e a contemplação simples do ancião que descobriu o verdadeiro sentido e o preço da vida, depois das provas e das desilusões que o tempo traz, a fim de nos prepararmos para a eternidade”. R. Garrigou-Lagrange. “El sentido común, la filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas”, Ed. Palabra, Madrid, 1980, p. 385. Citando o Pe. R. Garrigou-Lagrange não se deseja tomar posição face ao conjunto de teses teológico-filosóficas do ilustre teólogo, mas tão-só assinalar a expressiva semelhança, em pontos específicos, entre seu pensamento e o do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira.

[76] Idealizar, nesta frase, e em geral no vocabulário do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, significa despir determinada coisa de suas imperfeições, para imaginá-la perfeita, conforme às nossas mais altas aspirações.

[77] Ver supra, Quinto horizonte.

[78] O texto introdutório desta secção – “Algo... uma luz”  - ilustra esplendidamente todo esse processo, pois nos revela as cogitações infantis do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira.

[79] A palavra senso é aqui empregada com muita propriedade, pois não se trata de uma percepção explícita, conceptual, mas de algo que se sente confusamente.

[80] “A natureza se volta sobre si mesma não só quanto ao que há de individual nela, mas – e muito mais ainda – quanto ao que tem de comum. Todo ser está naturalmente inclinado a conservar não só o próprio individuo, mas também sua espécie e, em conseqüência, há de ter muito maior inclinação natural àquilo que é bem universal, em absoluto” (Santo Tomás de Aquino, Summa Theologica, I, q. 60, a. 5, ad 3).

[81] O Prof. Plínio Corrêa de Oliveira reafirma, com esta frase, a condenação da Igreja aos erros dos ontologistas, para os quais todas as idéias não são senão modificações da idéia de Deus (Denzinger, no.s 1659 ss.).

[82] Diz o Pe. R. Garrigou-Lagrange a respeito do primeiro olhar da inteligência sobre as coisas: “Desde este momento, o princípio de causalidade permite que nos elevemos ao conhecimento da existência de Deus, causa primeira. Esta elevação é inclusive um movimento espontâneo da inteligência do menino, quando contempla, por exemplo, o firmamento e as estrelas” (“El sentido común, la filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas”, Ed. Palabra, Madrid, 1980, p. 390).

[83] Trata-se, evidentemente, de um desejo inexpresso, um tender para.

[84] Ou seja, ela procura nos diversos objetos, todos perfectíveis, os reflexos de perfeição que neles se encontram.

[85] Não se trata, é claro, de uma capacidade de fazer silogismos, mas sim de avaliar de forma elementar os diversos objetos, avaliação esta extremamente lúcida pelo fato de a criança ainda não ter sido tisnada por pecados, incorrespondências e imperfeições.

[86] Afirma o Pe. R. Garrigou-Lagrange: “Sobre o primeiro dado da inteligência se apóiam as certezas primordiais e indestrutíveis que resistem a toda crítica, como o ouro a todos os ácidos” (“El sentido común, la filosofia del ser y las fórmulas dogmáticas”, Ed. Palabra, Madrid, 1980, p. 388).

[87] “A primeira apreensão intelectual leva, precisamente, ao ser inteligível das coisas sensíveis (...) [A inteligência] tem assim, em seu primeiro contacto com as coisas, uma primeira noção confusa do ser e do verdadeiro; tem igualmente uma intuição confusa dos primeiros princípios universais e necessários como leis fundamentais do real (é impossível que algo ao mesmo tempo exista e não exista, seja ou não seja da mesma natureza; ‘é impossível que algo aconteça sem nenhuma causa’)”. “Pode-se dizer com verdade que o primeiro olhar da inteligência humana sobre o real contém confusamente toda a verdade que a sabedoria filosófica descobrirá, que se elevará ao conhecimento do Ser supremo, Verdade primeira, o qual segundo a revelação se chama Aquele que é” (R. Garrigou-Lagrande, “El sentido común, la filosofia del ser y lãs fórmulas dogmáticas”, Ed. Palabra, Madrid, 1980, pp. 386 e 388).

[88] “Se for fiel”: para o Autor, a inocência, o senso de ser contêm inesgotáveis maravilhas. Mas, como é óbvio, a pessoa tem concomitantemente a tendência para o mal, fruto do pecado original, o que, na grande maioria dos casos, faz com que já na tenra infância comece um processo de rejeição que mais tarde vai desaguar no pecado.

[89] Um mundo em que só houvesse seres perfeitos, matrizes ou moldes dos seres realmente existentes.

[90] Esta queda ainda não é, na força do termo, um pecado, já que a criança plausivelmente ainda não tem o uso da razão. Mas é uma falta de correspondência incipiente, que pode projetar para o futuro pesadas conseqüências.

[91] Ou seja, excluindo o contrário daquilo que amava. Por exemplo, para amar seriamente a felicidade que vem de certa placidez, é preciso excluir a febricitação. As crianças, embora confusamente, percebem esse tipo de realidades melhor do que se poderia supor.

[92] É claro que esta definição não é irreversível. Sobretudo se a pessoa souber cultivar um sentimento de saudades em relação a essa época. Este é o sentido do famoso texto do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, que começa com as palavras “Há momentos, minha Mãe...”, e que o leitor encontrará no fim da presente secção.

[93] É bem de ver que a seleção de pensamentos do Prof. Plínio Corrêa de Oliveira sobre o senso do ser, que aqui apresentamos, não passa de “hors d’oeuvre” em relação a tudo o que ele elaborou sobre a matéria, no decorrer de reuniões que se realizaram ao longo de décadas.

[94] Como se percebe, o conceito pliniano de inocência vai muitíssimo além da acepção corrente da palavra. Não se trata apenas de não praticar o mal, mas sobretudo de aderir fortemente à harmonia do Verdadeiro, do Bom e do Belo. Inocente é quem não pecou contra aquele estado de espírito primevo de equilíbrio e de temperança, e por isso conserva-se aberto a todas as formas de maravilhoso e apetente delas.

[95] Sobre esta tese, muito cara ao Prof. Plínio Corrêa de Oliveira, ver Revolução e Contra-Revolução (I, V-2).

[96] Na concepção do autor, exposta magistralmente na obra Revolução e Contra-Revolução, Revolução é o processo quatro vezes secular que levou à derrocada a Civilização Cristã. Contra-Revolução é o movimento que visa restaurá-la.

[97] Notre-Dame, de Paris.

[98] Alusão ao Salmo 131, que começa com estas palavras “Lembrai-Vos, Senhor, de David, e de toda a sua doçura”.