Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção II

Opiniões socializantes que preparam o ambiente para a "Reforma Agrária": exposição e análise

Proposição 6

Impugnada

O regime do salariado é em si mesmo injusto e contrário à dignidade humana. O normal é que o homem, por natureza livre e igual a todos os outros homens, não tenha patrões e se beneficie de todo o fruto de seu labor. Viver de salário, na dependência de outrem, é aviltante. Ceder uma parte do produto de seu trabalho ao dono de uma terra que Deus fez para todos é odioso.

Cada qual deve ser proprietário da gleba que cultiva. Se não se dividirem logo as terras, aplique-se pelo menos ao campo o princípio da participação dos trabalhadores nos lucros, na gestão e na propriedade da empresa.

Afirmada

O regime do salariado respeita os direitos do legítimo proprietário e do trabalhador. É, pois, justo em si. Ele se aperfeiçoa muitas vezes com o regime da parceria agrícola.

Não é aviltante ter patrão. O homem humilde aceita, de bom grado até, a autoridade de seus superiores. Tal é a vontade de Deus, e São Paulo mandou que se lhes prestasse obediência (123).

Quanto à participação nos lucros, na gestão e na propriedade, é muito desejável nos casos, mais ou menos freqüentes ou raros, conforme os tempos e os lugares, em que for viável. Por isto a lei a pode favorecer, nunca porém impor.

 

Comentário

 

1 – Direito do homem ao fruto de seu trabalho

Vimos a legitimidade do direito de propriedade, segundo a doutrina da Igreja (124). O homem tem direito absoluto sobre o que resulta de sua atividade, e, pois, sobre o que ganhar, economizar e acumular. Neste sentido, disse-o de modo muito expressivo Leão XIII, o capital não é "senão o salário transformado" (125). O trabalho, no entanto, não é a única fonte da propriedade. O homem tem igualmente o direito de se apropriar dos bens móveis ou imóveis que não têm dono.

2 – Dar trabalho é fazer um benefício

Admitida, assim, a legitimidade do instituto da propriedade privada, que decorre da natureza, e portanto de Deus, Autor do universo, é fácil ver que o proprietário, quando aceita outrem para trabalhar em sua terra, lhe presta um benefício. E se paga o trabalho justa e condignamente, procede de modo reto.

Os comunistas e socialistas consideram injusto que o empregado não fique com todo o fruto de seu trabalho, isto é, com toda a colheita. Na lógica de seu sistema, que nega a propriedade, têm razão. Mas como a propriedade é legítima, cai por terra tudo quanto se conclui com base na injustiça desta.

3 – Legitimidade do regime do salariado

O regime do salariado é, pois, justo em si.

O fato de ser esse regime justo em tese não significa que não possa haver injustiças concretas em sua aplicação. Por isto que todo homem tem o direito de constituir família e de mantê-la com seu trabalho, o salário, além de ser proporcional a este, deve ser suficiente para tanto. É o salário familiar e mínimo definido por Pio XI (126).

4 – A lei não pode impor o regime de participação

Quanto à participação dos trabalhadores rurais nos lucros, na gestão e na propriedade da empresa, oferecerá vantagens em alguns casos, e também inconvenientes reais em outros. A lei não pode, pois, impor esta forma. Aliás, como poderia o Estado, sem indenização, ou mesmo com ela, decretar a participação de terceiros em bens que não lhe pertencem? E como poderia impor ao proprietário uma sociedade em que o operário participa dos lucros da empresa, mas ao mesmo tempo não se deve nem se pode querer que este – cuja situação econômica habitualmente não comporta – participe dos riscos e prejuízos? (127)

 

Textos Pontifícios

 

A propriedade privada é essencial ao bem comum

"... a própria natureza exige a repartição dos bens em domínios particulares, precisamente a fim de poderem as coisas criadas servir ao bem comum de modo ordenado e constante (128).

A propriedade privada resulta da mesma natureza

"A propriedade particular, já Nós o dissemos mais acima, é de direito natural para o homem: o exercício deste direito é coisa não só permitida, sobretudo a quem vive em sociedade, mas ainda absolutamente necessária" (129).

O direito do trabalhador ao salário dá origem à propriedade privada

"... como é fácil compreender, a razão intrínseca do trabalho empreendido por quem exerce uma arte lucrativa, o fim imediato visado pelo trabalhador, é conquistar um bem que lhe pertencerá como coisa própria. Porque, se ele põe à disposição de outrem suas forças e sua indústria, não é, evidentemente, por outro motivo senão para conseguir com que possa prover à sua sustentação e às necessidades da vida; e espera do seu trabalho, não só o direito ao salário, mas ainda um direito estrito e rigoroso a usar deste como entender. Portanto, se, reduzindo as suas despesas, chegou a fazer algumas economias, e se, para assegurar a sua conservação, as emprega, por exemplo, num campo, torna-se evidente que esse campo não é outra coisa senão o salário transformado: o terreno assim adquirido será propriedade do artífice com o mesmo título que a remuneração de seu trabalho. Mas, quem não vê que é precisamente nisso que consiste o direito de propriedade mobiliária e imobiliária?" (130)

O homem pode tornar-se legitimamente proprietário das coisas sem dono

"Títulos de aquisição do domínio são a ocupação de coisas sem dono...

De fato, não faz injustiça a ninguém, por mais que alguns digam o contrário, quem se apodera de uma coisa abandonada ou sem dono" (131).

O homem pode legitimamente tornar-se proprietário da terra

"O homem abrange pela sua inteligência uma infinidade de objetos, e às coisas presentes acrescenta e prende as coisas futuras; além disso, é senhor das suas ações; também, sob a direção da lei eterna e sob o governo universal da Providência Divina, ele é, de algum modo, para si a sua lei e sua providência. É por isso que tem o direito de escolher as coisas que julgar mais aptas, não só para prover ao presente, mas ainda ao futuro. De onde se segue que deve ter sob o seu domínio não só os produtos da terra, mas ainda a própria terra, que, pela sua fecundidade, ele vê estar destinada a ser a sua fornecedora no futuro. As necessidades do homem repetem-se perpetuamente: satisfeitas hoje, renascem amanhã com novas exigências. Foi preciso, portanto, para que ele pudesse realizar o seu direito em todo o tempo, que a natureza pusesse à sua disposição um elemento estável e permanente, capaz de lhe fornecer, perpetuamente os meios. Ora, esse elemento só podia ser a terra, com os seus recursos sempre fecundos" (132).

Um erro: afirmar que todo o fruto do trabalho pertence ao trabalhador

"Erram certamente os que não receiam enunciar este princípio, que tanto vale o trabalho e tanto deve ser a paga, quanto é o valor do que se produz; e que por isso na locação do próprio trabalho tem o operário direito de exigir para ele tudo o que produzir" (133).

É justo que o proprietário ganhe mais – e que os operários possam economizar

"O proprietário dos meios de produção, seja ele qual for – proprietário particular, associação de operários ou fundação – deve, sempre dentro dos limites do direito público da economia, ficar senhor de suas decisões econômicas. É evidente que seu rendimento é mais elevado que o de seus colaboradores. Mas resulta que a prosperidade material de todos os membros do povo, que é o fim da economia social, lhe impõe, a ele mais que aos outros, a obrigação de contribuir pela poupança para o aumento do capital nacional. Como é necessário, de outra parte, não perder de vista que é vantajoso ao mais alto ponto para uma sã economia social que este aumento do capital provenha de fontes tão numerosas quanto possível, por conseqüência é muito desejável que os operários possam, também eles, com o fruto de sua poupança, participar na constituição do capital nacional" (134).

O regime do salariado é conforme à justiça

"... os que dizem ser de sua natureza injusto o contrato de trabalho, e pretendem substituí-lo por um contrato de sociedade, dizem um absurdo e caluniam malignamente o Nosso Predecessor que, na Encíclica "Rerum Novarum", não só admite a legitimidade do salário, mas procura regulá-lo segundo as leis da justiça" (135).

O salário deve bastar para manter o operário

"Façam... o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem inclusive a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar a subsistência do operário sóbrio e honrado" (136)

O salário do pai de família deve bastar para a manutenção da esposa e filhos

"... na sociedade civil as condições econômicas e sociais estejam ordenadas por tal forma, que todo pai de família possa merecer e ganhar o necessário ao sustento próprio, da mulher e dos filhos, e conforme as diversas condições sociais e locais" (137).

A justiça não exige a participação dos operários nos lucros e na propriedade da empresa

"Não se estaria tampouco na verdade querendo afirmar que toda empresa particular é por natureza uma sociedade, na qual as relações entre os participantes sejam determinadas pelas regras da justiça distributiva, de sorte que todos indistintamente – proprietários ou não dos meios de produção – teriam direito à sua parte na propriedade ou pelo menos nos lucros da empresa. Tal concepção parte da hipótese de que toda empresa entra por natureza na esfera do direito público. Hipótese inexata: quer seja a empresa constituída sob forma de fundação ou de associação de todos os operários como co-proprietários, quer seja propriedade privada de um indivíduo que firma com todos os seus operários um contrato de trabalho, num caso como no outro, ela depende da ordem jurídica privada da vida econômica" (138).

A justiça não exige a participação do operário na propriedade e na gestão da empresa

"Por isso a doutrina social católica se pronuncia, entre outras questões, tão conscientemente pelo direito de propriedade individual. Aqui estão também os motivos profundos por que os Papas das Encíclicas sociais, e Nós mesmo, Nos recusamos a deduzir, quer direta, quer indiretamente, da natureza do contrato de trabalho o direito de co-propriedade do operário no capital da empresa e, consequentemente, seu direito de co-direção. Importava negar tal direito, pois por trás dele se enuncia um problema maior. O direito do indivíduo e da família à propriedade é uma conseqüência imediata da essência da pessoa, um direito da dignidade pessoal, um direito onerado, é verdade, por deveres sociais; não é porém exclusivamente uma função social" (139).

"Igual perigo se apresenta também quando se exige que os assalariados de uma empresa tenham direito de co-gerência econômica, nomeadamente quando o exercício deste direito depende, de fato, direta ou indiretamente, de organizações dirigidas por entidades alheias à empresa. Ora, nem a natureza do contrato de trabalho, nem a natureza da empresa, comportam necessariamente, por si mesmas, direito semelhante" (140).

O socialismo quer tirar aos proprietários a responsabilidade pela empresa

"Há já dezenas de anos que na maior parte desses países (os velhos países de indústria), e muitas vezes sob a influência decisiva do movimento social católico, se formou uma política social caracterizada pela evolução progressiva do direito do trabalho e, correlativamente, pela sujeição do proprietário privado, possuidor de meios de produção, a obrigações jurídicas em favor do operário.

Quem quiser levar mais avante a política social nesta mesma direção tropeça num limite, isto é, depara-se com o perigo de que a classe operária caia por sua vez nos erros do capital, os quais consistiam em subtrair, principalmente nas grandes empresas, a disposição dos meios de produção à responsabilidade pessoal do proprietário privado (indivíduo ou sociedade) para a colocar sob a responsabilidade de formas anônimas coletivas.

Uma mentalidade socialista acomodar-se-ia muito bem a semelhante situação. Mas esta não deixa de causar real inquietação a quem sabe da importância fundamental do direito de propriedade privada para favorecer iniciativas e fixar responsabilidades em matéria econômica" (141).

Cuidado com os erros relativos à reforma de estrutura das empresas

A participação dos trabalhadores nos lucros, na propriedade e na gestão da empresa conduz normalmente a uma reforma na estrutura desta. Pio XII acautela os fiéis contra as tendências erradas, freqüentes nesta matéria: "Fala-se hoje muito de uma reforma na estrutura da empresa, e aqueles que a promovem pensam em primeiro lugar em modificações jurídicas entre quantos dela são membros, sejam eles empreendedores, ou dependentes incorporados na empresa em virtude do contrato de trabalho.

À Nossa consideração não podiam, entretanto, escapar as tendências que em tais movimentos se infiltram, as quais não aplicam – como se apregoa – as incontestáveis normas do direito natural às mudadas condições do tempo, mas simplesmente as excluem. Por esta razão nas Nossas alocuções de 7 de maio de 1949 à União Internacional das Associações Patronais Católicas e de 3 de junho de 1950 ao Congresso Internacional de Estudos Sociais Nos mostramos opostos àquelas tendências, não, verdadeiramente, para favorecer os interesses materiais de um grupo de preferência a outro, mas para assegurar a sinceridade e a tranqüilidade de consciência a todos aqueles a quem estes problemas se referem" (142).

Cumpre manter a responsabilidade privada, na empresa

As reformas na estrutura da empresa podem conduzir à abolição da responsabilidade privada: erro grave contra o qual Pio XII premune os fiéis: "Nem poderíamos ignorar as alterações com que se desfiguravam as palavras de alta sabedoria de Nosso Glorioso Predecessor Pio XI, atribuindo o peso e a importância do programa social da Igreja, em nosso tempo, a uma observação de todo acessória acerca das eventuais modificações jurídicas nas relações entre os trabalhadores, sujeitos do contrato de trabalho, e a outra parte contratante; e, pelo contrário, passando mais ou menos em silêncio a parte principal da Encíclica "Quadragesimo Anno", que contém na realidade aquele programa, isto é, a idéia da ordem corporativa profissional de toda a economia. Quem se dispõe a tratar de problemas relativos à reforma da estrutura da empresa sem levar em conta que toda empresa particular está, por sua finalidade, estreitamente ligada ao conjunto da economia nacional, corre o risco de lançar premissas errôneas e falsas, com prejuízo para a inteira ordem econômica e social. Eis porque no próprio discurso de 3 de junho de 1950 esforçamo-Nos por colocar em sua justa luz o pensamento e a doutrina de Nosso Predecessor, a quem nada era mais alheio do que qualquer incentivo para prosseguir no caminho que conduz às formas de uma responsabilidade anônima coletiva" (143).


Notas:

(123) Tit. 2, 9.

(124) Secção I, Título II, Capítulo II.

(125) Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 6.

(126) Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 28 e seguintes.

(127) Sobre a participação dos empregados nos lucros, na gestão e na propriedade da empresa, o ponto de vista católico foi explanado em excelentes artigos do Prof. José de Azeredo Santos, no mensário de cultura "Catolicismo") (no. 17, de maio de 1952; no. 46, de outubro de 1954; e no. 47, de novembro de 1954).

(128) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 24.

(129) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 17.

(130) Idem, págs. 5-6.

(131) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, págs. 21-22.

(132) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 7.

(133) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 27.

(134) Pio XII, Discurso de 7 de maio de 1949, à IX Conferência da União Internacional das Associações Patronais Católicas – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XI, págs. 63-64.

(135) Pio XI, Encíclica "Quadragesimo Anno", de 15 de maio de 1931 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 27.

(136) Leão XIII, Encíclica "Rerum Novarum", de 15 de maio de 1891 – Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 32.

(137) Pio XI, Encíclica "Casti Connubii", de 31 de dezembro de 1930 – "Editora Vozes Ltda.", Petrópolis, pág. 53.

(138) Pio XII, Discurso de 7 de maio de 1949 à IX Conferência da União Internacional das Associações Patronais Católicas – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XI, pág. 63.

(139) Pio XII, Radiomensagem ao "Katholikentag" de Viena, de 14 de setembro de 1952 – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIV, pág. 314.

(140) Pio XII, Discurso de 3 de junho de 1950 aos membros do Congresso Internacional de Estudos Sociais e da Associação Internacional Social Cristã – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XII, pág. 101.

(141) Pio XII, Discurso de 3 de junho de 1950, aos membros do Congresso Internacional de Estudos Sociais e da Associação Internacional Social Cristã – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XII, págs. 100-101.

(142) Pio XII, Discurso de 31 de janeiro de 1952, ao Conselho Nacional da União Cristã dos Chefes de Empresa e Dirigentes, da Itália – UCID – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIII, pág. 463.

(143) Pio XII, discurso de 31 de janeiro de 1952, ao Conselho Nacional da União Cristã dos Chefes de Empresa e Dirigentes, da Itália – UCID – "Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIII, pág. 466.


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