Catolicismo Nº 13 - Janeiro de 1952

 

SOB O SIGNO DA CONFUSÃO E DA ESPERANÇA

 

Já me tem tocado várias vezes o encargo de escrever, para um jornal, o artigo clássico de passagem de ano, em que o leitor espera que se ponham em ordem as impressões do ano findo, e aguarda alguns prognósticos para o ano novo. Confesso que jamais senti dificuldade em realizar a tarefa. Com um pouco de memória, solidez nos princípios, coerência no pensamento, não é difícil, habitualmente, analisar e sistematizar fatos. Estes parecem quase sempre mais confusos à primeira vista do que são na realidade. Basta que encontremos o ângulo de visão justo - no caso a Doutrina Católica - para imediatamente os entender. E, pois, sem grande esforço pode o jornalista católico corresponder em cada princípio de ano à legítima expectativa de seus leitores.

Desta vez, porém, confesso que receio não vencer a dificuldade da tarefa. Há muito que dizer. E, ao mesmo tempo, quase nada. Pois o panorama de conjunto do ano de 1951 é realmente confuso. Insisto neste particular. Há confusões interessantes. São as confusões de superfície, que deixam perceber em seus refolhos um sentido profundo que se trata de encontrar. Mas há confusões insípidas porque não têm refolhos, não ocultam no âmago dos fatos uma lógica profunda, nem podem ser reduzidos à ordem e à clareza por qualquer espécie de interpretação. Quanto a 1951, estamos neste último caso. Em si, a confusão é brutal e inextricável. Não se pode senão aceitá-la tal qual, e raciocinar sobre ela. Ora, haverá algo que convide menos a falar do que a confusão? E haverá algo que obrigue a mais prolixidade do que a confusão, quando se tem absolutamente que discorrer sobre ela?

Como se vê a tarefa é difícil. Ataquemo-la entretanto, sem fazer um plano preestabelecido, pois nem isto a confusão permite.

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Lancemos os olhos para o mapa ideológico do mundo, pois são as idéias que acima de tudo nos interessam. No terreno do maior conflito de culturas de nossos dias, que nos trouxe o ano de 1951? Confusão.

De um lado, no Ocidente, continuou a grande investida das tendências religiosas modernas contra a Igreja. O católico que ainda veja no protestantismo ou no espiritismo os principais adversários da Fé nos grandes centros cultos e desenvolvidos, estará atrasado como alguém que supusesse que os automóveis disformes e canhestros do ano de 1900 constituem o que de mais eficiente e estético se conhece em matéria de locomoção. O verdadeiro adversário está no panteísmo, em suas múltiplas formas. Arranhe-se qualquer sistema filosófico com ares de novo, qualquer forma mais ou menos recente de "espiritualismo", e, logo abaixo do verniz, encontrar-se-á o panteísmo. O universo é divino, e a humanidade, parte integrante do universo, também é divina. A felicidade do homem consiste em tomar consciência de seu caráter divino, excitando dentro de si a sensação vivida da sua própria divindade, o que consegue por uma série de exercícios mentais ou fórmulas litúrgicas mais ou menos mágicas, cujas modalidades variam de sistema a sistema, e em geral - como de direito em toda a magia - são conhecidas somente por uns poucos iniciados. Esta manifestação das energias divinas no íntimo de nosso ser, além de nos prestar toda a sorte de serviços psíquicos interiores úteis e deleitosos, também é muito proveitosa para o próprio cosmos. Com efeito, quanto mais excitamos em nós as energias divinas, tanto mais elas se ativam nos outros seres. E, à medida em que se ativam nos outros seres, progride todo o universo cujo desenvolvimento consiste, em essência no desdobrar das energias divinas que se encontram neles mais ou menos como o vento no espaço.

Este sistema traz, evidentemente, a morte da inteligência. Se o homem quer conhecer Deus e comunicar-se com Ele, não deve estudar nem pensar. Basta-lhe conhecer os métodos aptos a suscitar nele a experiência sensível da presença e da ação das energias universais e divinas dentro de si mesmo.

Também a vontade perde sua razão de ser dentro deste sistema. Não há propriamente uma união com a divindade por meio do esforço da vontade aplicada em praticar o bem e evitar o mal. Basta que o homem consiga despertar dentro de si por meio de métodos adequados a sensação experimental de que seu ser está naturalmente impregnado de forças divinas; o que aliás não é tão difícil pois todo o iniciado conhece tais métodos e nele se pode exercitar.

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Está claro que nada disto teria capacidade de sedução, nem encanto, se não se envolvesse nos véus do mistério. Assim, a magia ressurrecta do século XX inventou não só vocábulos mas vocabulários inteiros, novos e complicados, todo um sistema literário cheio de figuras esfumaçadas e vistosas, em que estas afirmações fundamentais, variáveis aliás de escola para escola quase ao infinito em seus pormenores, vão sendo postas em circulação para uso da pobre Cristandade diluída, narcotizada e insensível do século XX.

Dai, evidentemente, uma imensa confusão de conceitos, de sistemas, de tendências. Durante todo o ano de 1951, esta confusão não fez senão perdurar e crescer.

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Assim, fora das fronteiras da Igreja grassa uma religiosidade que em última análise é perfeitamente ímpia. E nos meios católicos? Ao mesmo tempo que formulamos a pergunta, contrai-se de tristeza nosso coração. Manda a verdade que se diga que também aí a confusão existe.

Com vigilância de Pastor, com sabedoria de Mestre, com doçura de Pai, o Santo Padre Pio XII vem apontando há cerca de dez anos, em reiterados documentos, a existência de doutrinas, "que serpeiam entre os fiéis" diz o mais antigo destes documentos que é a "Mystici Corporis", e que, sob aparências de piedade e ortodoxia, tentam levá-los para erros gravíssimos em matéria de Fé e costumes, entre os quais o próprio panteísmo. Depois da "Mystici Corporis" tivemos a "Mediator Dei", a "Bis Saeculari", a "Humani Generis", a recente alocução pontifícia aos membros do Congresso Mundial do Apostolado Leigo, e agora a alocução aos Pais de Família, que hoje publicamos, e que contém advertências de uma gravidade quase trágica. Em todos estes documentos, ora explícita ora implicitamente, o Santo Padre Pio XII trata dos erros que circulam disfarçadamente entre os fiéis, provocando a surpresa e a desolação dos que tomam consciência de toda a gravidade dos fatos. Em 1951, a investida sorrateira continuou sempre mais vasta e mais e mais ativa. Mas... nisto vai o ápice da confusão, não são muitos os que, passando da esfera elevada da doutrina Pontifícia para a vida quotidiana, sabem ver o progresso onímodo e contínuo das tendências novas. De onde, ainda que bem intencionados, muitos cruzam os braços, e até censuram os que se preocupam com o mal. Com o que, embora não o queiram, fazem o jogo dos semeadores de confusão...

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Este jogo da confusão, todas as forças da impiedade bem percebem quanto lhes convém. Exemplo a Rússia. Durante todo o ano de 1951, na Hungria, na Polônia, na Rumânia, na China, procurou ela com todo o empenho, não propriamente fechar as igrejas e exterminar todo e qualquer culto, o que seria uma atitude detestável mas clara, definida, inteligível, porém criar por toda a parte, com auxílio de miseráveis Sacerdotes apostatas, "igrejas nacionais" a serviço dos sovietes. O que esperam estes de tais "igrejas"? Evidentemente, a confusão. Com efeito, os ritos continuam intactos, os sacramentos os mesmos pelo menos na sua aparência, a doutrina quiçá a mesma em suas linhas gerais. Cria-se a ilusão de que não há conflito entre o comunismo e o Catolicismo, mas apenas entre alguns altos Prelados "vendidos aos capitalistas", e as autoridades russas. E justifica-se esta falsidade com o "fato concreto" do apoio dado pelas autoridades comunistas às "igrejas nacionais", idênticas em todas as suas formas exteriores ao próprio Catolicismo.

CONFUSÃO POLÍTICA: TITO, COMUNISTA ANTI-SOVIÉTICO

Passando do terreno religioso para o político, tomemos um assunto que é político e religioso ao mesmo tempo: o Marechal Tito.

Há poucos dias se noticiava uma relativa libertação de Mons. Stepinack. Com base neste fato, vários jornais têm insinuado a possibilidade de uma plena normalização das relações entre a Santa Sé e a Iugoslávia, e mais especialmente entre esta nação e as autoridades eclesiásticas locais. Em última análise, prepara-se veladamente o terreno para que a opinião católica aceite o regime comunista sob sua forma "titoista", embora continue a rejeitá-lo sob sua forma "stalinista".

Que há em tudo isto senão confusão? Se por comunismo entendemos a doutrina de Marx, que vem a ser precisamente a tonalidade stalinista do marxismo? Evidentemente a aplicação concreta que Stalin pretende dar ou tem dado aos princípios de Marx. Mas, exceção feita de um ou outro ponto genérico, o que se sabe a este respeito? Nada, mesmo porque ninguém sabe ao certo o que ocorre na Rússia. De outro lado, falar em uma interpretação titoista da doutrina marxista na Iugoslávia faz sorrir. O Marechal Tito, que começa por ser ele próprio um marechal de fancaria e confusão pois nunca fez um curso regular para tão alta patente, nem foi promovido ao marechalato por qualquer governo legal, não é um homem de pensamento, mas, segundo toda a evidência, um político ambicioso e desabrido como os há tantos hoje em dia. Faz ele entre os americanos e soviéticos um duplo jogo, de que logo mais trataremos. Em última análise, quais são suas doutrinas? Provavelmente não as tem. Se as tem, quando as externou, onde estão, de que modo as põe ele em prática? Ninguém sabe, pois os noticiários sobre a Iugoslávia são praticamente tão escassos como os que se referem à Rússia.

Mas a despeito disto há hoje tanta superficialidade que não faltam os comentadores de club, de café ou de porta de livraria, que baseiam suas apreciações e seus cálculos políticos em sábias distinções entre comunismo titoista e comunismo estalinista. Confusão...

Anexa e como que nascida desta confusão, há uma outra não menos grave.

Durante toda a guerra, os discursos dos chefes aliados inculcavam a idéia de que suas respectivas nações estavam em luta contra o nazismo, numa como que cruzada universal em favor da civilização cristã. Militei ativamente na imprensa durante todo aquele período, e, mesmo antes do ingresso do Brasil no conflito mundial, desejei sempre, e ardentemente, o esmagamento do nazismo. Esta circunstância me dá suficiente autoridade para levantar agora uma pergunta. É só contra o nazismo, que os EUA e a Grã Bretanha sentem eriçar-se sua suscetibilidade espiritual de cristãos, ou também contra o comunismo? No primeiro caso, qual o sentido de sua luta contra a URSS? No segundo, porque admitem como aliado o Marechal Tito? Com a esperança de o iludir, de o utilizar no momento, e de destruir o chamado "comunismo titoísta" por ocasião da vitória? Se nesta aliança contra o "titoismo" os EUA e a Grã Bretanha estão com segundas intenções, será justo perguntar se também não as terá o Marechal Tito. Não será então prudente considerar a hipótese de uma Iugoslávia túmida de prosperidade material e força bélica em virtude dos auxílios norte-americanos e voltada inesperadamente, no auge da luta, para o lado dos comunistas de Moscou? Porque acreditam tanto em Tito os estadistas de Washington. Confusão...

Como se não bastasse, outra confusão ainda se pode notar neste campo. No mundo inteiro, os meios comunistas estão cindidos. De um lado há os estalinistas, de outro os anti-stalinistas, mais os menos trotzkistas, mais ou menos titoistas. Os primeiros se preparam para apoiar por toda a parte os russos em caso de guerra. Os segundos, para os combater. É evidente que muitos elementos anti-comunistas estão tomando a sério esta divisão, e aceitando sofregamente a colaboração dos líderes vermelhos que abriram um cisma em relação a Moscou. Que valerá a sinceridade deste cisma? Que valerá a sinceridade desta nova colaboração? Aceitar no âmago da resistência anticomunista estes novos aliados o que é, senão abrir as muralhas a algo de muito parecido com o cavalo de Tróia a aumentar a confusão?

Não queremos adiantar demais. Contudo, parece-nos oportuno lembrar o estratagema de que se utilizam em certos lugares do interior determinadas famílias a fim de contar sempre com as boas graças do governo. A família se cinde. Parte fica na situação, parte na oposição. E, assim, qualquer que seja o êxito das eleições, o clã doméstico está sempre de cima. Se Stálin tivesse querido garantir a sobrevivência, mesmo no caso de derrota da URSS, de um Partido Comunista internacional forte e prestigioso, não teria agido de outro modo. Se a luta lhe correr favorável, o Marechal Tito trairá os anglo-americanos no momento oportuno, e apressará a vitória. Se lhe correr mal, ficará a Tito a tarefa de salvar o comunismo internacional, assegurando-lhe um lugar à luz do dia, e novas possibilidades de luta e de vitória no mundo de pós-guerra... E, com esta hipótese, levanta-se um pouco, supomos, o véu da confusão.

CONFUSÃO SOCIAL: COMUNISTAS ANTI-SOCIALISTAS

Jamais se falou tanto contra o comunismo, jamais o socialismo foi tão elogiado e progrediu tanto como em 1951. E isto pela ação da maior parte dos paladinos do anticomunismo. Que vem a ser o socialismo? Um processo lento e gradual de chegar até o comunismo. Socialistas e comunistas não divergem pois quanto ao fim último de sua ação política, mas apenas quanto a seus respectivos métodos de ação. Os comunistas, como, se sabe, são partidários da ação violenta e imediata.

Como se explica que um mundo que se arma até os dentes contra o comunismo caminhe insensivelmente para ele, socializando-se cada vez mais? Ainda uma vez, somos obrigados a reconhecer: confusão.

De um lado, concorre para isto a própria perpetuidade do risco de guerra em que Moscou mantém o mundo ocidental. A preparação para a guerra supõe uma adaptação completa e pois de certo modo um profundo falseamento das atividades industriais, comerciais e até agrícolas de qualquer povo. Esta adaptação - que o perigo torna rigorosamente imprescindível - só pode ser obtida por meio de uma intervenção constante do Estado na economia. De outro lado, o falseamento traz consigo crises que, por sua vez, só podem ser resolvidas na atual estrutura política do Ocidente, pelo Estado. De onde aos poucos, o Estado se vai assenhoreando de tudo.

De outro lado, o mundo Ocidental está intoxicado com os princípios da Revolução Francesa. Pode-se mesmo dizer que a essência do pensamento político e social do Ocidente é a própria ideologia da Revolução. Ora esta última, liberal em aparência, na realidade era visceralmente socialista. Gracchus Babeuf, que durante a Revolução Francesa tentou um golpe comunista, era o produto lógico e último da mentalidade revolucionária. Assim, pois, se alguma tradição cristã ainda opõe o Ocidente ao comunismo, outros fermentos ideológicos adversos ao Cristianismo, e que penetraram fundo na alma hodierna, conduzem de fato para a coletivização total da vida. Esta influência simultânea de duas doutrinas antagônicas está na raiz de nossa grande confusão.

RACIOCINANDO À MARGEM DA CONFUSÃO

Ainda aqui, não convém adiantar. Mas sabemos que o comunismo internacional conhece a fundo nossas fraquezas, e o serviço que as idéias revolucionárias lhe podem prestar. Perpetuando o risco de guerra, sabe ele que nos empurra longe pelas vias do socialismo. Ora, este rumo não pode deixar de lhe agradar. A perpetuidade do risco não será um estratagema para chegar a este fim? Quem quer que considere de frente o problema há de se sentir tentado a responder pela afirmativa...

Outra reflexão. O comunismo internacional sabe que a única barreira séria que encontra pelo caminho é a Igreja. O progresso do panteísmo místico e sensual não pode deixar de ser considerado altamente vantajoso para quem queira derrubar a Igreja. É mais vantajoso ainda o pulular de erros velados entre os católicos, que os lancem uns ao báratro da heresia, outros no desalento e na confusão. Quem lucra, insistimos, com o pulular destes erros, com os estragos, com a desordem que eles semeiam por toda a parte, com a inexprimível dificuldade de ação que eles trazem para os mais devotados servidores da ortodoxia? Evidentemente o comunismo internacional. Não é pois, bem certo que a pertinácia prolongada desta pululação só pode alegrar os que tentam derrubar a Civilização Cristã?

É, pois, verdade que nesse quadro há muita confusão. Mas é também certo que, se em lugar de procurarmos lógica onde ela não existe, tomarmos a confusão como fato indiscutível e nos resignarmos a raciocinar à margem dela para verificar a quem beneficia, e para onde conduz, a resposta é sempre uma só. Dir-se-ia que corre pelo mundo o sopro tépido e negro do espírito do mal, que, por misteriosa permissão de Deus, dispõe a seu talante dos homens e das coisas.

ESPERANÇAS: "NOLITE TIMERE"

Entretanto, ainda aqui cabe uma reflexão. Porque apela o espírito do mal para a confusão? Porque esparsas por este mundo caótico e decadente, florescendo quiçá em lugares que os observadores superficiais não sabem ver, ainda existem muitas almas que detestam o mal. Pois se o demônio se oculta para avançar, é porque sabe que muitos ainda lhe barrariam o caminho se agisse descoberto. Nisto está a nota animadora do momento. Houve tempo em que os batalhões da impiedade desfraldaram à luz do sol o lema satânico "écrazez l'Infàme". Hoje continuam a caminhar vitoriosamente... mas de bandeira enrolada! O que significa que há hoje em dia, em número maior, soldados de Deus, dispostos a lutar no momento das supremas provações.

E este facho de luz que corta um horizonte tão negro não é o único. Na confusão da terra, abriram-se os Céus, e a Virgem apareceu em Fátima para dizer aos homens a verdade. Verdade austera, de admoestação e penitência, mas verdade rica em promessas de salvação. O milagre de Fátima se repetiu quase ao findar-se este triste e vergonhoso ano de confusão, aos olhos do Vigário de Cristo, para atestar que as ameaças de Deus continuam a pairar sobre os homens, mas que a proteção da Virgem jamais abandonará a Igreja e seus verdadeiros filhos.

O ano de 1952 nos trará as terríveis punições previstas em Fátima? Se elas se realizarem, ninguém poderá ficar surpreso. Os pecados chegaram ao auge, a conspiração do mal domina a terra.

Mas os que confiam na Virgem Santíssima tem sobejos motivos para nada temer. Deixamos 1951 e passamos para 1952 com a impressão de que de Fátima e do Vaticano nos vem ao coração a voz da Virgem que diz: "Nolite timere, pusillus grex" ( Lc.XII – 32 ); não temas, pequeno rebanho.