Catolicismo Nº 66 - Junho de 1956

 

Covadonga,

 monumento de epopéia negativista?

 

Na edição de fevereiro de Catolicismo, publicamos um artigo sobre o anticomunismo, sugerido pela mensagem impressionante, dirigida aos Sacerdotes do mundo inteiro pelo Exmo. Revmo. Mons. Joseph Gawlina, Arcebispo Titular de Madito, e Diretor da Federação Mundial das Congregações Marianas.

Naquele artigo, tivemos ocasião de mostrar que o obstáculo mais profundo, mais universal, e portanto mais nocivo, de encontro ao qual esbarra toda ação anticomunista, é a formação liberal de que estão intoxicadas, por uma tradição muito mais do que secular, as massas contemporâneas. No Ocidente - e muito provavelmente também no Oriente - os anticomunistas constituem a grande maioria. Entretanto, por detrás da cortina de ferro todos os povos parecem dormir num letargo mortal sob a ditadura diabólica do marxismo. E aquém da cortina estão embasbacados, aturdidos, anestesiados. Vêm no comunismo um inimigo. Mas, se se apresenta qualquer homem, ou qualquer grupo, a desenvolver uma ação contrária a esse inimigo, aplaudem fracamente, distraidamente, e logo se desinteressam do assunto. Porque?

Está na índole liberal um fundo de ceticismo pelo qual nenhuma convicção se torna bastante forte para ditar atitudes coerentes e corajosas. Essencialmente individualista e pragmatista, o liberal do século XX - que requintou neste sentido seus antecessores - só cuida de seus interesses pessoais e imediatos. Tudo quanto é doutrinário perde-se para ele numa região de nuvens, de dúvidas, a que seu espírito raras vezes se eleva, e da qual volta sempre para a vida prática com uma indecisão mais ou menos subconsciente: onde estará a verdade? Velha pergunta que Pilatos, o pai dos indecisos, o precursor dos liberais, enunciou com uma tão despudorada precisão, para justificar seu gesto tristemente imortal. Se não se sabe o que é a verdade, e onde ela está, que remédio há, senão lavar as mãos? E é por isto que, na luta entre o comunismo e o anticomunismo, o liberal lava as mãos.

Havíamo-nos comprometido a demonstrar em artigo subseqüente que o anticomunismo, longe de ser de índole negativista, é pelo contrário muito positivo em seu conteúdo. Não cumprimos a promessa em nosso número de março por uma razão de alta ressonância em todos os corações católicos. Festejava-se o 80º aniversário do Santo Padre Pio XII e Catolicismo consagrou em três edições sucessivas um longo e merecidíssimo espaço, a comemorar o acontecimento. Retomemos pois hoje o fio de nossa exposição, cumprindo a promessa há tanto tempo formulada.

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Para saber se o anticomunismo é um ideal positivo ou negativo, é necessário antes de tudo esclarecer o que seja propriamente "positivo" e "negativo". Alguns espíritos apressados julgam responder à pergunta dizendo simplesmente que é negativo todo pensamento, todo princípio, todo preceito em cuja formulação se encontra a palavra "não". Na realidade a resposta não resolve o problema. Pois, se assim fosse, a mãe que diz a seu filho que não se debruce imprudentemente na janela faria obra negativa. A que autorizasse o filho a fazer o que bem entendesse junto à janela faria obra positiva. E quando a criança caísse ao chão a obra positiva teria sido levada a seu triunfo! O pai que impedisse seu filho de freqüentar más companhias faria obra negativa. A obra positiva consistiria em deixar o jovem freqüentar qualquer ambiente, até que se encontrasse moral, psíquica e fisicamente perdido. As regras de polidez, que nos ensinam a não fazer certas coisas realmente muito deploráveis - falar com a boca cheia, bocejar e consultar relógios quando se recebem visitas, tomar a dianteira às senhoras, etc. - seriam negativas. Pelo contrário, destruir a polidez que nos impõe estas e outras tantas restrições, seria coisa positiva. Como se o positivo fosse a trivialidade, a desatenção, a descortesia, e não a polidez, flor admiravelmente positiva de toda verdadeira civilização. Obra positiva seria abolir o Código Penal e fechar as cadeias. Obra negativa seria moralizar a sociedade, obrigando cada qual ao respeito dos direitos do próximo, segregando e punindo os recalcitrantes. Obra negativa a do médico que proíbe alimentos prejudiciais ao doente. Obra positiva seria deixar que os hipertensos se enchessem de sal, e os diabéticos de açúcar. Em uma palavra, Deus Nosso Senhor teria feito obra eminentemente negativa revelando os Dez Mandamentos, dos quais só três têm um enunciado positivo, e todos os outros começam com a para os liberais terrível, abominável, execranda palavra "não". Como vemos, não é pelo uso do sim e do não que se distingue o positivo do negativo.

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Os espíritos liberais facilmente se agastam. Duvido de que algum deles consiga ler todo o tópico anterior. Se o fizer, será entrecortando-o de expressões de enfado. Os mais polidos - e não são freqüentes - afetam uma calma desdenhosa, e arquitetam uma saída. Por exemplo esta: é simples dizer no que consiste uma obra positiva, ou negativa, pois é positivo tudo quanto constrói, e negativo tudo quanto destrói.

Com os polidos é possível discutir. Permitam-nos eles, pois, que lhes perguntemos cordial, muito cordialmente, o que é construir. Bom caminho para depois sabermos o que é destruir.

Construir, diria algum deles, é dispor materiais de maneira a constituir com eles um edifício. Por extensão, aplica-se o verbo a toda a ação de que nasça uma obra, uma instituição, uma lei, que não existia ainda. Destruir será pois o contrário: fazer cessar o que existe.

Confessamos que também esta resposta não nos parece clara. Um general tem diante de si um exército inimigo, e o arrasa. Sua obra, na terminologia liberal, teria então sido destrutiva? Os heróis da Reconquista, que levaram oito séculos a destruir os reinos mouros estabelecidos na península, e com isto reedificaram a Espanha cristã, teriam porventura feito obra negativa? O Santuário de Covadonga ( cujo clichê ilustra a primeira página ), que se ergue no ponto de partida dessa imensa luta, assinalaria pois o início de um capítulo meramente negativo da história da Cristandade? E os Reis Católicos deveriam perder seu glorioso apelido, e passar para a posteridade como Reis Negativos? Um prefeito ordena a demolição de um casario anti-higiênico que serve de foco para uma doença. Sua obra seria destruidora? Um profissional instala um chalé de "bicho" num bairro, e a polícia o fecha. Agiu esta destrutivamente? E quando os chamados "comandos sanitários" fecham um restaurante que distribui alimentos deteriorados? É um estabelecimento comercial que deixou de existir. O que houve no caso? Construção? Destruição? Quando se queimam livros imorais, ou heréticos, há destruição? ou edificação?

Edificação... esta palavra nos faz pensar. Antigamente, ouvíamos falar em pessoas edificantes, livros edificantes, atos edificantes. Hoje a palavra parece proscrita. Em todo o caso, os prosélitos da "construção" nunca a usam. Porque? Qual a relação entre uma e outra? Edificar não é exatamente sinônimo de construir?

Sim. Mas à palavra "edificante" ligou-se um sentido muito mais preciso e profundo. Edificar não é simplesmente dar origem a um edifício ou uma instituição ou uma lei. É fazer o bem. Por isto se pode dar edificação a alguém, construindo, ou destruindo. Construindo, se se constrói algo de bom. E destruindo, se se destrói algo de mal. Pelo contrario, pode-se desedificar construindo ou destruindo. Construindo, se se dá origem a algo de mau, e destruindo, se se faz cessar algo de bom.

Mas neste caso que reação há entre as palavras "construir" e "destruir", "edificar" e "desedificar", e os conceitos de bem e mal?

Nada mais simples. Todo ser foi dotado por Deus de uma natureza própria, com recursos próprios, adequados a alcançar todos os seus fins próximos, e por estes seu fim último, que é a glória de Deus. De todos os seres é-nos possível usar retamente, ou abusar. O uso consiste em agir perante este ser conforme a natureza dele, seus meios e seu fim, conforme nossa natureza, nossos meios, nosso fim. Em uma palavra, consiste em agir segundo a ordem legítima, verdadeira, natural, instituída por Deus, por Ele revelada nos Dez Mandamentos, e ensinada pela Igreja infalível. O abuso consiste em agir diversamente. Quando alguém age retamente, produz a ordem e o bem. Quando age mal, produz a desordem e a anarquia. Se se constrói alguma coisa intrinsecamente má, constrói-se desordem. E construir desordem, no fundo, não é construir mas destruir. Se pelo contrário se destrói algo de mau, destrói-se desordem. E destruir a desordem, no fundo, é fazer ordem, é construir. Edificar é promover no próximo o bem. Por extensão, poder-se-ia dizer que é promover o bem em tudo, quer construindo, quer destruindo. Desedificar é promover no próximo, o mal, a desordem, quer construindo, também, quer destruindo.

E assim o que importa não é "construir" - no sentido atual e corrente da palavra - mas "edificar". Pois só o que é edificante é construtivo no sentido literal e legítimo do termo.

E por isto é que a Sagrada Liturgia, no comum dos Sumos Pontífices - isto é, dos Santos que foram na terra o fundamento de toda a verdade, de toda a ordem, de toda a edificação e de todo o bem, pois foram Vigários d’Aquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida - ensina que o Papa foi constituído para que "arranque e destrua, e edifique e plante". Foi Pio XII quem, muito sabiamente, ordenou se introduzisse este texto escriturístico ( Jer. I, 10 ) na Liturgia.

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Assim esclarecidos os termos, resta-nos apenas indagar o que é o comunismo. Todos o sabemos: é a negação completa. Materialista, nega ele toda a Religião. Igualitário, nega todos os princípios da verdadeira ordem social. Contrário à família, nega toda a ordem natural no concernente à perpetuação da espécie. Contrário à propriedade individual, subverte em seus próprios fundamentos toda a economia reta e sadia. Amoral por essência, por princípio, por definição, nega ele toda possibilidade de um convívio humano suportável. Instituindo a ditadura do proletário sobre o intelectual, do músculo sobre o cérebro, nega toda a cultura, toda a civilização. Sanguinário, nega o direito à integridade física e à vida, de quem quer que se oponha a seus desígnios.

Agora, pergunta-se: destruir o comunismo é obra edificante, ou desedificante? Positiva, ou negativa, pelo menos no sentido natural e justo destes dois últimos vocábulos?

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Um liberal poderia encontrar outra escapatória. Concedo, diria ele, que combater o comunismo é obra edificante. Mas há meios positivos e negativos, construtivos ou destrutivos de realizar esta obra. Assim, combater o comunismo apenas mostrando o que ele tem de errado é obra negativa e destrutiva. Como também empregar argumentos e afirmações que, em lugar de converter os comunistas, apenas os exacerbam ainda mais.

Ainda aí, é preciso distinguir. Em princípio, é claro que a obra edificante comporta dois aspectos indissociáveis, isto é, ensinar o bem e combater o mal. Mas isto não significa que ambos os aspectos sejam sempre igualmente atuais e importantes. Num meio que, embora persuadido de que o comunismo é um mal, se mantém otimista, inerte, sem desejo de lutar, num meio minado de outro lado pela ação comunista que ameaça sair à rua de metralhadora em punho, o mais urgente é a parte negativa, pois a positiva já está feita. E em tal ambiente se compreende que surja uma organização destinada especialmente à obra de urgência próxima, que é a luta, o combate, em uma palavra a reação. O que é mais importante, imobilizar um ladrão ou convertê-lo? Conforme. Se ele está assaltando uma casa, é preciso começar por prendê-lo. Depois virá a hora do castigo, da reflexão, da instrução e da misericórdia.

Quanto aos argumentos capazes de contundir os comunistas evitando sua conversão, também distingo. No momento em que o comunismo parece mais adiantado do que nunca na obra de destruir a civilização cristã, pode-se dizer que o principal é a conversão dos comunistas? Claro está que essa conversão é altamente desejável, e isto não só no interesse do mundo, mas para a salvação da alma de cada um deles, pois que a cada um Nosso Senhor amou e remiu. Mas quando vejo um malfeitor saltar sobre um inocente, qual das vidas devo poupar, a do malfeitor ou a do inocente? E se alguém vê em seu país um partido ou corrente ideológica que deseja implantar uma ditadura marxista de ferro com o objetivo de semear a desordem total, a inversão absoluta da ordem natural e tendo por efeito dificultar ao máximo a salvação das almas, a que interesses espirituais deve atender antes? Aos dos conjurados? ou aos dos inocentes, ameaçados de tal catástrofe?

O principal, pois, consiste em mostrar o comunismo em toda a sua hediondez, aos inertes, aos distraídos, aos imediatistas, aos comodistas, para os conclamar à luta. Que com isto não se possa agradar também aos comunistas, é claro. Diz a sabedoria popular que não se pode ao mesmo tempo ter pena do veado e não querer que a onça passe fome ...

Não quer isto dizer que a linguagem do católico não se possa, ainda assim, conservar num tom elevado, nobre, inteiramente alheio à descomponenda vulgar ou à investida biliosa. Os documentos dos Papas sobre o comunismo são disto um modelo perfeito. Dizem tudo quanto e necessário dizer. Mas sem perder a dignidade, a compostura, a elevação própria à alma cristã. Sem omitir de afirmar quando necessário, que em sua luta contra o comunismo a Igreja não Se esquece de rezar pelos perseguidores aos quais Ela resiste com tão indomável e magnífica energia.

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Visto assim o assunto, a conclusão só pode ser uma.

Respeitados os cânones de uma linguagem nobre, altiva e cristã, o anticomunismo é obra essencialmente positiva, construtiva,... edificante!