Catolicismo Nº 111 - Março de 1960

 

Revolução e Contra-Revolução em 30 dias

 

Plinio Corrêa de Oliveira

 

Dos princípios doutrinários à aplicação prática

O estudo que esta folha publicou, por ocasião de seu centésimo número, sobre “Revolução e Contra-Revolução”, é uma análise da crise de nossa civilização, à luz a Revelação e da filosofia. Para ajudar nossos leitores a passar daí para o terreno dos fatos quotidianos, nos quais se vai travando passo a passo a grande luta entre os filhos da luz e os das trevas, entre a descendência da Virgem e a da Serpente, parece oportuno que estudemos nestas colunas os acontecimentos atuais, mostrando suas relações essenciais ou acidentais com o grande fenômeno central da Revolução e da Contra-Revolução.

Assim, publicaremos com a possível freqüência esta nova secção. Com a possível freqüência, dizemos,  pois haverá ocasiões em que será mais oportuno oferecer a nossos leitores, em lugar de várias notícias comentadas, a análise de algum grande fato, de um documento pontifício de relevo, ou de algum ponto de doutrina relacionado com a atualidade.

Estas interrupções não quebrarão a continuidade da “Revolução e Contra-Revolução em 30 dias”, pois esta não é propriamente uma secção de noticiário, mas de análise de várias notícias, com caráter formativo.

É possível que a aplicação do qualificativo de revolucionário ou contra-revolucionário a algum fato, a alguma opinião, ou quiçá a alguma pessoa, surpreenda certos leitores. Nós lhes pedimos desde já que, neste caso, considerem o sentido especial que a esses vocábulos demos em nosso mencionado ensaio. Dizemos o mesmo de certas expressões como “semi-contra-revolucionário”, “cristalização”, “marcha de requinte em requinte”, e outras, que usaremos nesta secção quando se apresentar a oportunidade e cuja explicação poderá facilmente ser encontrada naquele trabalho.

Por um conjunto de circunstâncias muito explicável nesta quadra histórica, os acontecimentos atuais mais importantes se relacionam com o comunismo, que, pois, estará presente de princípio a fim em nossos comentários de hoje.

Contudo, a Revolução não é só o comunismo, nem a Contra-Revolução é só o anticomunismo. E, por isto, em outras edições pretendemos estender a todo o seu âmbito a temática desta seção.

 

 

 

A Revolução passa no momento por uma metamorfose transitória, o que aliás já tem acontecido tantas vezes de Lutero a nossos dias. Fundamentalmente sombria em seu espírito, violenta em seus métodos e apressada em seu ritmo, sob o signo de Nikita Kruchev ela se vem mostrando cada vez mais risonha, pacífica e moderada.

A partir de Camp David, iniciou um verdadeiro carnaval diplomático. E por isto seus próceres mais autênticos, K. e seus comparsas, não cessam de fazer e retribuir convites, de oferecer créditos, de comprar a preço alto artigos de que precisam e não precisam, de enviar presentes, etc.

De vez em quanto para que as outras nações compreendam bem que é só por muita bondade que eles agem assim, e que, se quisessem, poderiam arrasar a terra inteira, ei-los que soltam algum foguete espetacular, anunciam alguma arma nova, ou mostram as garras a algum país.

Mas isto é só para valorizar suas "bondades" e incutir no Ocidente a convicção de que é melhor aceitar por bem a sovietização do mundo, já que, se esta não vier por bem, virá inevitavelmente por mal.

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Neste fundo de quadro, é que se compreendem bem as três visitas de caráter diplomático cujo noticiário enche os jornais no momento em que escrevemos. O Presidente Gronchi chegou à Rússia. O vice-primeiro-ministro da União Soviética, Mikoyan, está em Cuba, e anuncia-se que Kruchev visitará a França em março, cumprindo um programa já anunciado em suas linhas gerais.

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A nosso ver, a visita do Sr. Gronchi à Rússia é em si mesma uma vitória da Revolução no que esta última tem de mais requintado e genuíno, isto é, o comunismo.

Chefe de uma nação católica das mais ilustres, que por um tratado soleníssimo reconhece como Religião oficial a Católica, e em cujo território se encontra, como pérola engastada em diadema de ouro, o Estado do Vaticano, o Sr. Gronchi foi visitar a Rússia, ou antes ( pois uma coisa não se confunde com a outra ) a União Soviética.

Ora, se do ângulo católico a Itália é tudo quanto dissemos, o que é do mesmo ângulo a União Soviética?

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O mundo sempre teve ateus. Mas, se ousavam declarar suas opiniões, viviam semi-ocultos, nos desvãos mais recônditos e tenebrosos da sociedade. Mais tarde, o ateísmo começou a passar por atitude superior e brilhante de alguns cépticos ou "espíritos fortes". Continuava, porém, a causar tanto horror à imensa maioria dos homens que, apesar de a Revolução Francesa ter uma mentalidade visceralmente atéia, nas próprias fileiras de seus "enragés" muitos havia que, não ousando chegar ao ateísmo declarado, procuravam fixá-la no culto fementido do "Ser Supremo". O século XIX conheceu as primeiras grandes associações de ateus, organizadas à luz do dia. Mas cabia ao século XX a triste peculiaridade de presenciar a formação do primeiro Estado oficialmente ateu, neste mundo em que, entretanto, os Estados como os indivíduos não têm outro fim último senão a maior glória de Deus.

E esse Estado, que constitui em si mesmo um dos maiores escândalos, uma das mais horríveis blasfêmias que a história registra, recebeu agora uma visita de cordialidade e cortesia do Presidente da nobre e católica Itália.

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A União Soviética não é uma republiqueta como São Marino. Ela é um dos maiores impérios de todos os tempos, por sua extensão, sua população, suas riquezas. E nesse sentido o escândalo que ela dá é muito maior. Nesse imenso império o ateísmo não é uma mera e platônica tomada de posição. As leis, a educação, os costumes, a economia, tudo enfim, se estrutura ali segundo princípios rigidamente deduzidos do evolucionismo materialista. E se em algum ponto a própria ordem natural das coisas ou o peso de hábitos cristãos milenares tem exigido atenuações, estas têm sido concedidas a contragosto, a título de condescendências temporárias, com a formal declaração de que os princípios materialistas e seus corolários coletivistas ficam mantidos em toda a sua mais estrita "ortodoxia", e com a ameaça explícita ou implícita de que, na primeira ocasião favorável, eles serão novamente impostos, pela violência ou pela astúcia.

Em tudo isto há outras tantas razões para se compreender quanto é deplorável a visita do Sr. Gronchi a Moscou.

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Mas, dirá alguém, o povo russo, se não em sua unanimidade, pelo menos em sua maioria, apóia esse Estado.

A resposta é: pura e simplesmente não vem ao caso. Pois o apoio da maioria não tem o efeito de coonestar as injúrias feitas a Deus. Será porventura a maioria igual ou superior ao próprio Deus?

Ademais, de duas uma, ou a maior parte dos russos apóia o regime soviético ou não o apóia.

Se, como cremos, não o apóia, a Rússia atual é uma imensa senzala, em que, à custa de um sistema de violência e pânico, um bando de malfeitores conserva cativo todo um povo digno da maior simpatia e solidariedade. Como, então, manter relações de amizade e simpatia com o sinédrio que o oprime de modo tão vil?

Se a maioria apóia esse regime, a situação é pior ainda. Pois como qualificar o crime de um governo que chegou a corromper tão fundo, moral e ideologicamente, a maior parte da população de um país imenso e outrora tão religioso?

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Acresce que as mãos desses malfeitores se apresentam tintas com o sangue dos mártires, não só da Rússia, mas de nações ilustres como a Hungria, a Polônia, a Alemanha, a Tcheco-Eslováquia, e outras. Como apertar essas mãos? Leia-se o monumental sermão proferido pelo Emmo. Revmo. Sr. Cardeal Alfredo Ottaviani, Secretário do Santo Ofício, que publicamos na primeira página de nossa edição de hoje. Sua eminência mereceria que todos os católicos do mundo lhe exprimissem sua gratidão especial por esse pronunciamento lúcido e admiravelmente corajoso, oferecendo orações, boas obras e sacrifícios segundo suas intenções.

Comovidos até o fundo da alma, nada temos a acrescentar a respeito do assunto abordado pelo eminente Purpurado.

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Algum leitor objetará talvez que, se o Presidente da Itália foi a Moscou, é porque levava a esperança de conseguir algo em favor desses países escravizados pelos bolchevistas.

Fazemos justiça à inteligência do Sr. Giovanni Gronchi, afirmando que por certo ele não tinha essa esperança.

Discursando em Havana, o vice-primeiro-ministro da União Soviética Mikoyan, afirmou à face do mundo que aqueles países estão integrados na órbita soviética definitivamente e pelo livre e geral consentimento de seus habitantes. Pode-se proclamar com maior cinismo que os dirigentes soviéticos nunca lhes restituirão a liberdade?

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Mas, dir-se-á, estamos exagerando. Uma simples visita pode não ter, pelo menos na intenção do Presidente Gronchi, o significado que lhe atribuímos... É necessário que as nações cooperem para a paz. E a visita do Sr. Gronchi não é senão uma contribuição para esse altíssimo fim.

Um entendimento com a Rússia não pode dar origem à paz no verdadeiro sentido da palavra, tão sabiamente explanado por Sua Santidade o Papa João XXIII em sua recente Mensagem de Natal ( vide "Catolicismo", nº 110, de fevereiro de 1960 ). Mas pode pelo menos adiar a guerra. E isto não é pouco.

Entretanto, para tal efeito, contatos de chancelaria sérios, eficientes, discretos, bastariam.

Levar as relações de um e outro lado da cortina de ferro ao ponto de cordialidade eufórica e festiva que exprime amizade e mútuo apreço, é muito, muito e demais.

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Por todos estes motivos, compreende-se perfeitamente que tendo a revista norte-americana "Newsweek" anunciado que o Santo Padre aprovara previamente a ida do Chefe do Estado Italiano a Moscou, o "Osservatore Romano" tenha desmentido categoricamente a notícia ( cf. edição hebdomadária em francês de 5 de fevereiro ).

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A inutilidade de relações amistosas com os soviets se comprovou, de resto, no decurso da estadia do Sr. Gronchi na Rússia.

O Presidente teve de ouvir de Kruchev ironias sobre o macarrão, e um longo e insolente apelo a que se "convertesse" ao comunismo, respondido com timidez por ele e pelo Sr. Pella.

Antes mesmo de Gronchi ter deixado a Rússia, já o ditador, abandonando seu hóspede, desdenhosamente ( Vorochilov, como se sabe, é figura de proa ) rumava para a Índia.

O fruto da visita: dois acordos banais, um dos quais de... intercâmbio cultural. Precisamente o que mais se devia evitar.

Compreendemos, pois, que no parlamento italiano tenham sido formuladas várias interpelações sobre os confusos objetivos da viagem, e sobre as providências tomadas – e não tomadas – para preservar de afrontas a dignidade do Chefe do Estado em Moscou!

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Um abismo atrai outro abismo, diz o Salmo ( 41,8 ). Essa visita traz como conseqüência a ida de Nikita Kruchev a Roma. O que decorrerá daí? E, mais particularmente, qual será a situação do Augusto Pontífice em tão triste eventualidade? Para que responder? Quem faz visitas inconvenientes recebe visitas inconvenientes. Eis tudo.

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Não estaremos usando em relação aos líderes soviéticos uma linguagem excessivamente forte?

Respondemos com outra pergunta: tal linguagem é verdadeira?

Se o é, porque temos obrigação de não a usar? Mais ainda: neste momento em que essas verdades deveriam ser afirmadas e até proclamadas para suscitar e manter contra os fautores mundiais do comunismo a indignação dos povos, teríamos o direito de não a usar?

Deus nos livre de tal omissão!

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É bem verdade que a Itália tem o privilégio único de ser o escrínio admirável em que a Providência pôs a mais preciosa das jóias, que é o Trono de São Pedro. Mas a França é a Primogênita da Igreja, e como tal lhe cabe um lugar de altíssimo relevo entre as nações cristãs. Devemos, pois, ver com um sentimento de análoga tristeza que brevemente Kruchev vai calcar aos pés seu solo cristianíssimo e que – nossa pena parece relutar em escrever este horror... – no programa do tirano materialista figura, a par de uma visita à casa em que Lenine morou em Paris, uma visita à Sainte-Chapelle, maravilhoso relicário de granito e cristal, construído por Luís IX, o Rei Santo, pra abrigar com devoção e respeito indizíveis, dois espinhos da Coroa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

É preciso ter visitado aquele monumento, para compreender inteiramente o que ele significa. Todo o espírito religioso e hierárquico da Idade Média se exprime nele com uma majestade, uma harmonia, uma doçura, uma serena e nobre afabilidade que é diametralmente o oposto da Revolução.

Pois é nesse lugar em que São Luís e sua corte veneravam as relíquias da Paixão de Cristo Senhor Nosso, e os Anjos, enlevados, se associavam a essas orações, é nesse lugar que entrará o líder mundial do materialismo e do igualitarismo, o carrasco da Igreja do Silêncio.

Que diria disto o Rei cruzado?

Que diremos nós? Há palavras para tanto?

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Como se isto não bastasse, K. vai depois visitar o Castelo dos Papas em Avignon, outra jóia inapreciável da história da França católica. Quantas recordações augustas, quanta tradição de virtude e cultura, quantos feitos gloriosos parecem reviver aos olhos de quem penetra naquele monumento sobranceiro e venerável. O que representa a presença de Nikita Kruchev, como hóspede homenageado e querido, em meio a tudo isto de que ele é a negação orgulhosa, brutal e completa?

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Onde nós vemos uma contradição insuportável, os espíritos afeitos à indefinição, à pacífica coabitação das coisas que "hurlent de se trouver ensemble", se sentem inteiramente à vontade.

Entre esses espíritos está certamente a figura do célebre esquerdista-católico ( como escrever isto? com aspas em esquerdista? em católico? em uma e outra palavra? em nenhuma? a partir da contradição tudo é legítimo, e tudo é ilegítimo ), o cônego-prefeito-deputado Kirr. Assim, está no programa que a visita de K. a Dijon tenha o cunho de uma homenagem ao ditador.

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Tudo faz crer que, para anestesiar a opinião pública e evitar perigosas cristalizações, os discursos proferidos por K. nessa próxima viagem serão vulpinamente moderados. Mas o lobo que em Paris afivelará a máscara, deixou-a cair em Havana. Mikoyan pronunciou ali um discurso em que fez abertamente a apologia do regime comunista, glorificando a "riqueza" soviética, proclamando a "pobreza" norte-americana, e fazendo ver que os povos só encontrarão a felicidade nas vias do socialismo marxista. Na mesma ocasião, foi franqueada ao público uma exposição de produtos industriais soviéticos, naturalmente para reforçar no espírito do povo cubano os argumentos dessa arenga.

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Isto se passou assim, porque assim quis Fidel Castro que se passasse.

Extremado e intolerante em relação a qualquer ação política procedente de elementos de que ele tem feito matar os parentes e confiscar os bens, em relação ao comunismo é todo mesuras, cordialidade e tolerância.

Para onde se dirigem então as suas tendências? É difícil não ver!

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Porém, mesmo neste vale de lágrimas, nem tudo é tristeza.

O apostolado de Santo Antônio Maria Claret, o glorioso Arcebispo de Santiago de Cuba, deixou raízes na ilha.

Agradou-nos ver que o descontentamento provocado pela visita de Mikoyan a Havana foi tão grande, que o governo teve de tomar medidas de segurança particulares.

No aeroporto, onde numa fraternal cordialidade Fidel, autoridades civis e militares, e próceres do Partido Comunista cubano esperavam o líder russo, o aparato policial era impressionante. O mesmo se deu em torno da luxuosíssima residência particular ( confiscada pela Revolução ) onde Mikoyan foi hospedado. Nada disto impediu que o desagrado geral culminasse numa manifestação de estudantes, reprimida a tiros, como de costume, pelos soldados do acérrimo paladino na luta contra as ditaduras, que é Fidel Castro.

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Este último estava promovendo uma como que insurreição diplomática de sentido nitidamente esquerdista, contra os EE. UU., que consistiria na projetada "Conferência da Fome". Mas, graças a Deus, o Brasil, a Argentina, o Chile, o Equador, já declararam que não comparecerão.

O plano fracassará, pois.

Com particular satisfação registramos a recusa do Brasil ao convite de Castro. O Itamarati teve nisto um gesto feliz, que atenua a justa apreensão despertada em muitos ambientes com a ida da missão comercial brasileira a Moscou e o entabulamento de relações comerciais entre nosso País e a União Soviética.

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Nossos leitores estarão lembrados de que, no Estado de Kerala, na Índia, os comunistas haviam obtido, não há muito tempo, um forte sucesso eleitoral, chegando a constituir um governo local com elementos de seu partido.

Felizmente, novas eleições, realizadas recentemente, acarretaram estrondosa derrota dos marxistas.

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Queremos registrar nosso desacordo com o ato do Sr. Cid Sampaio, governador de Pernambuco, desapropriando as terras do Engenho Galiléia, naquele estado, para dá-las aos colonos que ilegitimamente as ocupavam. Em lugar de punir o atentado à propriedade privada, confere-se-lhe assim um prêmio.

Se se considerar que tal ato se segue ao do governo do Rio Grande do Sul, encampando a preço irrisório a concessionária dos serviços elétricos de Porto Alegre, fica-se perplexo ante o futuro da propriedade privada no País.

Ainda aí, porém, há uma nota auspiciosa a registrar.

Em outras nações, gestos como estes se fazem sob os aplausos de multidões incendiárias, transviadas por demagogos.

No Brasil, a demagogia procura inutilmente criar um ambiente de entusiasmo a tal respeito. A reação do grosso da população é um silêncio inspirado por sentimentos contraditórios: de um lado, um quê de simpatia por julgar que se trata de gestos absurdos e que por isso mesmo não se repetirão em série; e de outro, um vivo sentimento de perplexidade carregada de antipatia e censura.