Catolicismo Nº 117 - Setembro de 1960

 

Revolução e Contra-Revolução em 30 dias

Plinio Corrêa de Oliveira

Para certo gênero de pessoas, a história registra violências de duas categorias bem diversas. Umas constituem crimes abomináveis, cujos autores devem ser apontados à execração dos séculos e das gerações. Outras foram simples demasias, praticadas por homens de uma orientação geral tão boa, que elas dão mais motivo para lamentação do que para censura. Na primeira categoria ficam, entre outros, os excessos da Inquisição espanhola: as pessoas de que falamos nada conseguem imaginar de mais monstruoso, de mais requintadamente perverso. Na segunda categoria cabem, por exemplo, as penas impostas por Pombal aos Jesuítas ou à nobre família dos Távoras: para as mesmas pessoas foi tão grande o ministro e tão extraordinária a sua obra, que as atrocidades sofridas pelo Padre Malagrida, pelo Duque de Aveiro ou pela Marquesa de Távora como que desaparecem.

Não é o caso, aqui, de analisar se a Inquisição espanhola merece essas críticas, ou Pombal esses louvores. Importa simplesmente notar a dualidade de pesos e de medidas que está na base dessa classificação. Os procedimentos enérgicos ou violentos, se imputados a uns causam indignação, e se imputados a outros encontram uma aceitação resignada e fácil. Não há lágrimas que bastem para chorar as vítimas em certos casos. Em outros casos, as vítimas de ações não menos cruentas não alcançam uma lágrima sequer. Assim muita gente – para dar outro exemplo – fria diante do martírio de Dom Vital, se revolta quando pensa no de Savonarola. Por que?

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Para responder a esta pergunta, seria preciso um pequeno trabalho de investigação. Se em uma coluna se colocassem os nomes de todas as vítimas julgadas dignas de pranto, e em outra as que não o são; e se em seguida se indagasse o que há de comum entre as de cada coluna, a resposta se tornaria claríssima: dignos de pranto são os revolucionários; de frieza os que, a um título ou outro, em certo momento histórico criaram obstáculos à Revolução. O Padre Malagrida, a Casa de Távora, representavam a Igreja e a nobreza, baluartes naturais da sociedade cristã e orgânica, que a Revolução – encarnada no século XVIII no absolutismo estatista e anti-religioso propugnado por Pombal – queria destruir. Dom Vital era a personificação da verdadeira Contra-Revolução, da obediência ao Papa, da fidelidade à Igreja, da luta contra o sectarismo revolucionário. Frieza, pois, para eles. Mas as vítimas da Inquisição espanhola foram, em sua maioria, militantes da Revolução. Lágrimas, pois, para elas. Savonarola representava a demagogia e a revolta: cumpre lamentar ruidosamente sua morte.

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Ora, quando se examina o princípio em que se baseiam as pessoas assim afeiçoadas ao uso de dois pesos e duas medidas, sobe de ponto a estranheza que sua tomada de posição causa. Tal princípio, de um humanitarismo levado ao seu último extremo, afirma que toda efusão de sangue, todo ato pelo qual se tira a vida a alguém é sempre e necessariamente censurável. De sorte que até a pena de morte aplicada pelo Estado é contrária à moral.

Em geral, esse princípio se enuncia em termos inteiramente laicos. Mas por vezes ele toma um colorido cristão, como se fosse uma conseqüência do 5º Mandamento e uma aplicação dos ensinamentos de mansidão contidos no Novo Testamento.

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Na realidade, cumpre discernir entre esse humanitarismo revolucionário, e a doutrina da Igreja. Ninguém mais do que ela condena a violência. É isto tão evidente, que não exige provas. Porém ela não chega a condenar a pena de morte, desde que decretada pelo poder competente, relativamente a delitos de gravidade proporcionada, e devidamente provada a culpa do réu... Nem de longe, é claro, a Igreja toma a contrapartida dessa posição revolucionária, aprovando as violências feitas contra seus adversários, e qualificando como crime só as de que Ela tenha sido vítima.

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Dado de passagem este esclarecimento, voltemos ao humanitarismo laico e radical, e confrontemos o princípio em que ele se baseia, com a aplicação que dele fazem seus mais típicos propugnadores.

Se toda efusão de sangue, todo ato pelo qual se tira a vida a alguém é um crime, porque então só chorar quando as vítimas estão de um lado?

Há nisto um abismo de contradição, que é característico do mau espírito e do pecado em geral "delicta quis intelligit?" ( Sl. 18,13 ).

Ora essa contradição, esse uso de dois pesos e duas medidas, é muito palpável nas reações de certa opinião pública em face dos acontecimentos em que atualmente se corporifica a Revolução.

Mais do que nunca talvez, o humanitarismo radical e laico se mostra incondicional e agressivo hoje em dia. O caso Chessman, ainda recente, foi disto um exemplo. Tratava-se em síntese de um réu comprovadamente culpado de delitos gravíssimos, que teve a mais ampla liberdade para se defender.

Em instâncias sucessivas, ao longo de um processo que lhe foi dado procrastinar e arrastar enormemente, Chessman veio sendo condenado à morte e, por fim, esgotados todos os recursos, só lhe restava, para fugir ao último suplício, uma medida de clemência do governador do Estado da Califórnia. Deveria tal medida ser concedida? Opiniões respeitáveis se pronunciaram diversamente a este propósito. O "Osservatore Romano", por exemplo, se mostrou favorável à comutação da pena. De qualquer forma, tomada pelo poder competente a decisão de não indultar o condenado, a única atitude que cabia a todo mundo era acolher este fato com respeito e compreensão. Não foi entretanto o que aconteceu nos arraiais mais extremados do humanitarismo laicista. Os pedidos de clemência se transformaram em protestos, e os protestos em universal algazarra antinorte-americana.

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A razão disto é clara. O humanitarismo naturalista e revolucionário, colocado entre os Estado Unidos e a Rússia soviética, não pôde deixar de optar por esta, que constitui a etapa mais avançada da Revolução. Não queria perder essa ótima ocasião de apontar os Estados Unidos ao ódio das nações. De outro lado, por definição é ele contra a pena de morte: como então não protestar?

Tudo isto redundou num clima de neurose que cercou a execução de Chessman e se prolongou por um certo tempo depois: um noticiário jornalístico e radiofônico imenso, com pormenores abundantes, excitou uma curiosidade doentia no mundo inteiro. E, de acréscimo, veio com isto a divulgação escandalosa, para os quatro cantos da terra, da atitude pavorosamente ímpia tomada pelo condenado até o último momento.

Se uma vítima inocente, ou um herói digno de respeito universal fosse levado ao cadafalso, a encenação não seria maior.

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Exageramos? Pouco depois de Chessman ser executado, morria vítima da longa perseguição moral que vinha sofrendo por parte do governo iugoslavo, o Cardeal Stepinac, Arcebispo de Zagreb.

Os papéis estavam invertidos em relação ao processo Chessman, pois a vítima era sem mácula, e os bandidos tinham sido seus juízes. O julgamento fora faccioso, baseado na calúnia, e inçado de irregularidades. O falecimento do benemérito Príncipe da Igreja despertou por certo manifestações de pesar. Mas quanto menos calor, quanto menos vibração, no rumor universal que o fato causou! É que a barulheira humanitária e revolucionária não se fez ouvir com a costumeira intensidade a este propósito. O Cardeal Stepinac teve sua morte cercada pelo soluço discreto e nobre dos corações realmente católicos, não pelo pranto e pelos uivos teatrais das carpideiras da Revolução.

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Fidel Castro é sem dúvida, hoje em dia, um dos filhos diletos da Revolução. Por isto, pode praticar em sua terra as maiores crueldades e as arbitrariedades mais evidentes, atentar indiferentemente contra a vida e propriedades, que a algazarra organizada quando da execução de Chessman não se levanta em prol das vítimas do ditador cubano. Há protesto, sim, mas se por um só homem se fez tanto, o que deveria ser feito a propósito das violências de que estão sendo vítimas tantos e tantos outros? A desproporção entre a desaprovação comedida e por vezes um pouco formal às arbitrariedades de Castro, e a maré montante de impopularidade que cercou a execução de Chessman é evidente. O humanitarismo laico e revolucionário não chora, ou quase não chora, os perseguidos de Cuba. É que estes são vítimas da Revolução. Sempre a mesma contradição, o uso de dois pesos e de duas medidas.

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A "sensibilidade" de Nikita Kruchev está bem de acordo com este miserável modelo.

Desejoso de tirar proveito, cinicamente, da fraqueza dos povos que se vão proclamando independentes na África, o tirano soviético se encheu de zelo, há pouco, pelas violências que, alegou ele, os belgas tinham realizado no Congo. Paladino do princípio de que cada povo tem direito a ser independente, K. exigiu a imediata retirada das tropas européias daquela região. Entretanto, as atrocidades praticadas pelos soviéticos contra populações da Alemanha Oriental, da Polônia, da Hungria, da Romênia, da Bulgária, da Albânia, o estado de sujeição vergonhosa em que elas se encontram, nada disso parece perturbar a consciência do senhor do Kremlin.

A explicação é simples: a consciência de Kruchev já está habituada a contradições destas. Mas causa estranheza ver que há na opinião mundial todo um filão humanitarista e laico que, sem dizer-se comunista e talvez sem o ser, se porta ante os fatos precisamente como K. São as unilateralidades e as injustiças da Revolução.

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As atrocidades de certo nativismo extremista africano devem despertar a censura de toda alma bem formada, sejam quais forem suas preferências no caso congolês. Entretanto, quanta desproporção entre a repulsa provocada em certos ambientes pelos execráveis atentados ocorridos no Congo, em que morreram ou foram torpemente violadas muitas vítimas inocentes, e a revolta despertada pela execução de um sentenciado como Chessman! É que o colonialismo – pense-se dele o que se pensar – vem sendo um "leitmotiv" da Revolução contra seus adversários. E, pois, contra ele tudo se pode fazer sem que chorem as carpideiras de que falamos.

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Duas cenas rotineiras, que entretanto mostram os dois aspectos de uma imensa tragédia. Um avião recebe carga: trata-se de um I.L. 18 soviético prestes a partir de Moscou para levar víveres ao Congo. É a URSS que vai entrando na África. Em Léopoldville, missionários  no momento de embarcar. Deixam os povos catequizados com tanto esforço. É a Igreja que é expulsa.

Outro exemplo frisante. Em um semanário de Roma, o "Corriere della Domenica", lê-se a notícia de que 50.000 italianos residentes em Tunis foram ultimamente obrigados por Burguiba a deixar aquele país. Para se calcular a violência que esta medida do chefe de Estado da Tunísia representa, basta imaginar o que seria a expulsão de 50.000 estrangeiros do Brasil.

O fato, entretanto, passou despercebido e não suscitou a costumeira orquestração de protestos, comícios e moções de solidariedade em favor das vítimas. É que ele está no programa de exploração anticolonialista da Revolução.

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Outra ocorrência recente, noticiada esta em jornais brasileiros. Declarou-se subitamente um incêndio em um bosque junto à praia de banhos de Chenua, a 80 quilômetros de Argel. Ao mesmo tempo terroristas argelinos se puseram a fuzilar os banhista. O incêndio fora provocado por eles para facilitar a ignóbil matança.

Se nos anais da Inquisição espanhola algo de parecido se encontrasse, que barulho, que terrível e justificadíssimo barulho fariam certos historiadores. Mas o fato ocorreu como efeito da exploração do anticolonialismo pela Revolução. As carpideiras se calaram.

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Importa registrar com aplausos as afirmações que o Sr. John Diefenbaker, primeiro ministro do Canadá, fez no Parlamento de seu país sobre a política desenvolvida pela URSS no Congo.

Considerando as conseqüências da independência congolesa, em razão do modo por que foi ela levada a cabo, o "premier" canadense acentuou que "a anarquia, o caos e as perturbações econômicas oferecem terreno propício ao comunismo", e que a política de Moscou na antiga colônia belga refletia a mesma "atitude beligerante e vociferante tantas vezes aplicada em diversas partes do mundo".

São palavras claras e categóricas, que cada vez se vão tornando mais raras nos lábios dos chefes de governo ocidentais quando se referem ao comunismo.

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Ora, se todo o congo está convulsionado, essa convulsão não atingiu a riquíssima província de Katanga, que deseja separar-se da nova república e formar um Estado independente e ordeiro. Bem entendido, este desiderato não convém à Revolução, à qual importa a generalização do caos. Resultado: há muita gente que acha normal que o Congo queira ser independente da Bélgica, em nome do princípio da autodeterminação dos povos. Mas que ao mesmo se indigna porque Katanga quer ser independente do Congo. Por que aquele princípio vale em um caso, e não no outro? Mais uma vez, dois pesos e duas medidas. É a lógica da Revolução.

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Ao Congresso Eucarístico Internacional de Munique não puderam comparecer os Cardeais, Arcebispos e Bispos que residem por detrás da cortina de ferro. Violência abominável à liberdade que têm aqueles Prelados, em virtude de sua missão divina, de se reunirem em qualquer parte da terra a seus outros irmãos, para adorar Jesus Sacramentado. Se algum país proíbe uma delegação de ir à Rússia, as carpideiras vêem nisto um crime. Mas quanto aos Bispos silenciaram.

Dois pesos, duas medidas...

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Com prevíramos, a agitação e a desordem se vão apoderando gradualmente da Coréia do Sul. Elas vêm tomando tal vulto, que foi necessário retardar a instalação do Parlamento eleito depois da queda de Rhee.

A minoria que derrubou o velho estadista não se conformou com a composição do novo Congresso, pois vários partidários dele foram reconduzidos a este pelo voto popular. Daí a realização de violentos comícios de estudantes partidários do governo, para protestar contra as eleições, sob a alegação de que foram fraudadas pela oposição. É nesse clima que se vão realizar as eleições suplementares em uma dezena de distritos. E ao mesmo tempo a efervescência política se agrava em virtude de uma funda cisão nos meios governamentais.

A quem aproveita toda essa desordem, senão aos comunistas encastelados na Coréia do Norte?

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Já que temos falado da duplicidade de pesos e medidas de que faz uso a Revolução, registremos aqui mais uma observação neste sentido.

Está nos dogmas revolucionários que o voto popular é soberano. Por que então não podem os coreanos eleger adeptos de Syngman Rhee? O povo é soberano para apoiar os partidários da Revolução não porém para favorecer os que criam obstáculo a ela... É isto a soberania?

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Na Turquia, também, a Revolução vai colhendo frutos dos últimos acontecimentos. As novas autoridades se têm mostrado drasticamente laicistas, procurando afastar da vida do Estado qualquer influência religiosa.

A laicização é sempre uma obra utilíssima para a penetração comunista. Pode-se calcular com quanta satisfação os dirigentes de Moscou presenciam os esforços laicizantes do novo governo turco.

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Merece registro altamente simpático o fato de que quatrocentos exilados cubanos fixados no México fizeram, no dia 1º de agosto, uma peregrinação à Basílica de Nossa Senhora de Guadalupe, a fim de orar por sua pátria e protestar contra a infiltração comunista que ali se processa.

Todos os verdadeiros católicos se devem sentir intimamente unidos de alma e coração a seus irmãos cubanos, e devem orar à gloriosa Padroeira da América Latina para que liberte Cuba e preserve do comunismo todas as jovens nações deste continente, em cujas veias corre sangue ibérico e cristão.

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Enquanto os Estados Unidos tomam em face de Fidel Castro uma atitude vacilante e fraca, é mais uma vez a Igreja que se ergue contra a Revolução. A Pastoral do Episcopado cubano sobre as infiltrações bolchevistas na nobre e infeliz ilha marcará por certo uma etapa nova na luta anticomunista na América.

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Um valoroso paladino da Contra-Revolução, a revista "Cruzado Español", de Barcelona, recebeu há pouco do Emmo. Cardeal Domenico Tardini, Secretário de Estado de Sua Santidade, a seguinte carta, datada de 15 de janeiro p.p., que nos comprazemos em transcrever:

"Señor Director:

Me es grato significarle que el Augusto Pontífice ha recibido con paternal benevolencia los números de la Revista "Cruzado Español" correspondientes a los años 1958-1959 que Vd. ha querido enviarle en testimonio de devoción.

Por este homenaje filial Su Santidad le queda vivamente agradecido; y, mientras pide al Señor asista a cuantos, desde las páginas de esa Revista, trabajan con el noble empeño de difundir la verdad, se complace en otorgarles la Bendición Apostólica.

Al agradecerle el volumen de "Cruzado Español" que me ha dejado, le manifiesto las seguridades de mi consideración profesándome, de Vd. afectísimo en el Señor,

a) D. Card. Tardini".