"O A.U.C.", Ano VI (nova série), nº 18-19, setembro-outubro de 1935 (pp. 14-15)

 

A ação social dos católicos

Plinio Corrêa de Oliveira

 

No fetichismo de nossa época se enquadra perfeitamente a crença supersticiosa na onipotência do Estado.

A atenção do mundo atual está voltada exclusivamente para a ação política do Estado, posta em relevo com exuberância pelos poderosos meios de publicidade modernos. E enquanto se faz sobressair a parte que toca ao Estado, na solução dos problemas contemporâneos, um pseudo-silêncio envolve, em geral, a atuação da Igreja, firmando-se, assim, no espírito público, a persuasão de que só o Estado poderá resolver a crise contemporânea que tortura a humanidade.

A Igreja não nega valor ao concurso do Estado para a solução da crise hodierna. Pelo contrário, ela sempre mostrou o dever que este tem de intervir francamente na vida social, completando harmoniosamente, pela ação política, a ação superior de que ela foi investida.

A ação da Igreja e [a] do Estado não se excluem, mas antes se completam. Tanto assim é que a Encíclica Immortale Dei ( Leão XIII, 1º de novembro de 1885 ) aconselha aos católicos a intervenção em matéria política, para a boa orientação do Estado.

Todavia, só, o Estado não poderá levar ao sucesso a regeneração social.

Uma ação social una exige um pensamento uno

Para solucionar a crise contemporânea, faz-se necessário uma atuação fundamentalmente moral e acima das nações -- supernacional -- que atinja diretamente o indivíduo e a sociedade. Sem esta ação, toda a ordem nacional será instável.

Há, pois, uma obra supernacional (que distinguimos das relações internacionais, que mais se estendem entre nações, do que propriamente acima delas) a ser feita, e que só a Igreja Católica poderá levar a termo. É isto, precisamente, que passaremos a demonstrar.

O único meio de se resolverem os problemas super-nacionais é a realização de uma ação social una, que se estenda sobre o mundo inteiro, procurando trabalhar, ao mesmo tempo, o indivíduo e a sociedade, com real eficiência construtora.

Ora, uma ação mundial una exige um pensamento uno no mundo inteiro, pois a unidade de ação pressupõe necessariamente a unidade de pensamento. E aqui esbarramos com o obstáculo insuperável para qualquer força que não a Igreja.

O Estado moderno nada pode contra certas forças que corrompem as idéias e a moral

Comecemos pelo Estado.

A estreita ligação que a vida moderna estabelece entre todos os Estados dá aos problemas que neles se agitam extensão mundial. O livro, o jornal, o cinema e o rádio espalham pelo mundo a influência intelectual de qualquer pensador de nossos dias. Os meios fáceis de comunicação e o entrelaçamento dos interesses comerciais, assim como o prestígio artístico e cultural de certos povos, possibilitam em qualquer país a influência de ideologias políticas, religiosas ou sociais exóticas.

Se quisermos um exemplo frisante de como essa influência se realiza, basta examinarmos a vida de família no Brasil, atualmente e a de cinqüenta anos atrás.

Uma transformação cabal se operou, proveniente da sede imoderada de liberdade, nascida na Europa e nos Estados Unidos, que enfraqueceu todas as autoridades, a começar pelas domésticas.

Examinando o ambiente brasileiro, vemos que nada poderia ser apontado que explicasse a germinação dessa indisciplina doméstica.

Ela veio, porém, com os maus livros da Europa e, mais modernamente, com o cinema americano, que nos revela com exagero a dissolução dos costumes daquele país.

E dessa nefasta influência resultou o enfraquecimento sensível na família brasileira. Este fato demonstra que, através das fronteiras de qualquer país, se infiltram influências malsãs que destroem o Estado, pela corrupção moral e intelectual de seus próprios cidadãos. O Estado se vê a braços com inimigos que o hostilizam longe de suas fronteiras e que, embora minando a sua base, escapam à sua ação.

Não nos deteremos nas possibilidades de reação que a censura policial ofereceria contra este mal, pois a experiência de todos os povos revela quanto é limitado o seu efeito.

Contra tais forças intelectuais que superam os canhões, o Estado moderno nada pode.

O exemplo da Santa Aliança

Mesmo uma coligação de Estados, se agir sem a Igreja, nada poderá.

A este respeito, a História nos apresenta um exemplo interessante. É a Santa Aliança, nascida de uma coligação de príncipes cristãos contra o espírito de revolução que ameaçava o mundo inteiro.

Salvo em relação à Espanha, cuja ordem política foi restaurada, esta coligação formidável fracassou.

É que se procurou combater com armas políticas um mal principalmente moral, cuja solução dependia muito da ação da Igreja sobre o indivíduo e a sociedade. Mas a Igreja era tiranizada, por isto a coligação de Estados onipotentes falhou.

Portanto, um Estado ou uma coligação de Estados é impotente para resolver, por meio de uma ação supernacional, a crise contemporânea.

* * *

Retorno ao Catolicismo, única expressão autêntica do Cristianismo

Analisemos agora o indivíduo e a sociedade, sobre os quais se deve exercer a ação supernacional de que já falamos.

O que logo nos impressiona é que a sociedade de hoje vive habitualmente em luta. Esta reveste as formas mais variadas, segundo se dá entre raças, entre nações, entre classes ou no seio da família. Contudo, se quisermos remontar à causa de tantas lutas, podemos dizer que os homens lutam porque não se amam; e não se amam porque nada, na mentalidade do homem moderno, existe que o leve ao amor do próximo.

Assim, uma conclusão se impõe: enquanto a reforma não atingir o homem, será vã qualquer tentativa de restauração da ordem social.

Atingido o âmago da ferida social, ter-se-á andado para a sua cura.

O século XIX arrancou da humanidade o Cristianismo, a maior fonte de amor ao próximo. E o vago aroma religioso que ainda permanecia foi dissipado pelo tufão do modernismo.

Hoje, cansada dos sofismas da moral leiga, que é causa do egoísmo moderno, a sociedade volta os olhos para Deus, procurando n'Ele a base sobre a qual deve ser alicerçada a sociedade.

Todavia, que o espírito do século não iluda aqueles que fundamentam sua doutrina reformadora sobre a idéia de Deus.

Não é apenas afirmando Deus que se construirá uma civilização cristã. Basta citar o nome de Voltaire (1) para demonstrar cabalmente que "afirmar Deus" não é suficiente para pôr uma civilização a salvo da ruína.

(1) "Eu meditei esta noite. Estava absorto na contemplação da natureza... Eu dizia comigo mesmo: é necessário ser estúpido para não reconhecer o seu autor e não o adorar" ( Cfr. Ségur, La Foi, p. 30).»

Muitos já compreenderam, porém, a necessidade de afirmar o Cristo-Rei como pedra-de-ângulo de toda a organização política; mas ainda aqui devemos distinguir o Catolicismo, única expressão autêntica do Cristianismo, das várias ciências heterodoxas ou de um pancristianismo conciliatório.

A anarquia religiosa protestante e o fracionamento da chamada igreja ortodoxa

A moral de Lutero (2) é incapaz de reerguer os espíritos.

(2) “É fartíssimo o número de casos em que Lutero evidencia a pouca moralidade de sua vida e doutrina. A alguém que lhe perguntava o que fazer, quando a lembrança de seus crimes lhe assaltava a consciência, respondeu: "Que fazer? Brincar, beber, rir neste estado, e mesmo cometer algum pecado à guisa de desafio a Satanás. Oh! se eu pudesse encontrar um bom pecado para iludir o demônio"” (cfr. Maritain,Trois reformateurs,  p. 14).

Embebido inteiramente de liberalismo, o protestantismo se desagrega cada vez mais. O livre exame, isto é, a interpretação individual da Bíblia, torna cada um o juiz supremo de sua consciência, fracionando a moral protestante e introduzindo a anarquia religiosa. E esta não pode servir de base para uma ordem social estável. Quanto aos cismáticos, andam a largos passos para o protestantismo; também a ausência de um chefe único priva a Igreja Ortodoxa de um agir coordenado contra os males da época.

Aliás, sua submissão doutrinária ao poder temporal dividiu-a em pequenas igrejas nacionais, que vivem sob o guante da autoridade pública.

Há quem pense em basear a sociedade sobre um pancristianismo vago, que compreenderia um conjunto de princípios religiosos aceitos por todas as igrejas cristãs.

Seria impossível estabelecer quais são estes princípios comuns. Aproximando-se cada vez mais do ateísmo, o protestantismo racionalista tem numerosos fiéis, entre os quais pastores, que já não acreditam em Jesus Cristo. Por outro lado, grego-cismáticos que se dizem cristãos, mas que aderiram, com os respectivos bispos, ao comunismo! Só a disciplina intelectual da Igreja pode manter o Cristianismo longe de tais aberrações.

Qualquer civilização que pretenda ser simplesmente cristã ou pancristã, em lugar de ser exclusivamente católica, será perecível.

* * *

Com a disciplina intelectual da Igreja, uma só Fé e uma só Moral se estendem pelo mundo todo

Uma das grandes obras da Igreja, que será sempre o terreno em que fracassarão os que procurarem imitá-la para combatê-la, é a reforma moral do homem.

A ordem na sociedade é realizada por um processo ascendente, que consiste em instaurar a ordem no indivíduo, para projetá-la daí sobre a família e sobre a sociedade.

Em virtude de sua infalibilidade, a Igreja retira ao fiel o direito do livre-exame, impondo-lhe uma rigorosa disciplina intelectual.

Esta disciplina não é um sacrifício contrário à razão, mas uma conclusão da própria razão que, reconhecendo na Igreja o caráter divino, deve dobrar-se à sua autoridade.

A Igreja prova que Cristo é Deus, e que Ele instituiu infalível a sua Igreja. Daí se segue que a adesão inteligente do fiel, se faz sacrificando ele apenas a sua arrogância, e não a sua independência intelectual, como disse Forster, protestante ilustre, ex-reitor da Universidade de Berlim.

Desta disciplina decorre uma unidade de espírito admirável; uma só moral e uma só crença se estendem pelo mundo todo, onde quer que existam católicos, e uma grande sociedade supernacional, a Igreja, governa as almas, dirigindo-as para a eternidade, influindo beneficamente nos destinos temporais dos povos. Pela sua perfeita unidade de pensamento e de ação, a Igreja se apresenta como única capaz de uma ação supernacional.

Para reformar o homem, a Igreja ensina o amor ao próximo pelas suas regras de Fé e de Moral, e se incumbe de fazê-las praticar livremente pelos seus filhos. Para isto ela apresenta ao espírito humano os mais fortes argumentos que o possam impelir à prática do bem e afastar da prática do mal. Ela move ao bem a liberdade humana; e uma sociedade orientada pelos princípios católicos estará a salvo das lutas entre os seus membros.

Nenhuma ação supera em importância a esta ação social da Igreja

Portanto, concluindo, parece-nos que de todas as ações desenvolvidas no mundo moderno, nenhuma supera em importância e oportunidade a ação social da Igreja.

Daí se infere que todos os católicos devem prestar a esta obra a máxima colaboração sem, contudo, negligenciar a respeito da vida política do Estado.

Agir de tal forma é defender a causa da Igreja que, em última análise, é também a da Pátria, encarada nos seus mais profundos interesses.