"Folha de S. Paulo", 18 de agosto de 1974

A crise louca

Vai-se generalizando na França o costume de chamar a II Guerra Mundial – ou pelo menos sua primeira fase, marcada pelas desconcertantes vitórias nazistas e pelo ainda mais desconcertante recuo dos aliados – a "guerra louca". A alcunha parece hoje natural. Entretanto, a grande massa presenciava então esses episódios sem se dar conta senão muito vagamente de quanto eles eram aberrantes. Creio que, se se lhes tivesse predito que a guerra passaria depois para a História como "louca", não teriam acreditado. – Será necessário certo recuo histórico para que as massas de hoje percebam, por sua vez, a loucura dos acontecimentos em meio aos quais vivem?

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Digo-o a propósito da crise que derrubou Nixon.

Indiscutivelmente mereceu ele a destituição. Mas os motivos alegados pelos propugnadores do impeachment me estarreceram. Não porque eles fossem insuficientes para justificar a campanha anti-Nixon. Mas porque havia, para desacreditar o Presidente, motivos muitíssimos mais altos e imperiosos... e, entretanto, estes emergiram apenas poucas vezes na argumentação pró-renúncia. – Por que? – Não sei. Julgue o leitor.

A détente de Nixon com a Rússia e a China constitui verdadeira bomba de hidrogênio no paredão psicológico e moral que defendia o Ocidente contra a guerra psicológica movida por Moscou e Pequim. E isto a tal ponto, que se pode afirmar, sem exagero, o seguinte: desde a bolchevização da Rússia, o comunismo não teve vitória igual. Até mesmo as conquistas catastróficas que a moleza (chamemo-la assim) de Roosevelt havia proporcionado ao comunismo em Yalta, não iguala em nocividade os resultados difusos mas profundos da "quebra de barreiras ideológicas", operada pela dupla Nixon-Kissinger.

A isto – que já era de si um motivo exuberante para que o Congresso norte-americano criasse uma crise institucional dramática, a fim de cortar o curso à détente – acrescentou-se outro fato, talvez menos grave, mas muito mais palpável. Foi o fornecimento de trigo, créditos, técnicos e know-how à Rússia em proporções tais, que chegou a desorganizar a economia ianque. Tal foi a abundância desses fornecimentos, que a Rússia pode revender com lucro, a países amigos dos EUA, ou neutros, parte do trigo que Nixon lhe fornecera. Outro motivo para que o Congresso tivesse entrado em clara confrontação com o Presidente.

Por fim, durante a crise que derrubou Nixon, tornou-se patente que este último havia ocultado ao Congresso certas cláusulas de seu pacto com a Rússia, a fim de obter sorrateiramente a aprovação do Legislativo. Só este fato já daria matéria para um escândalo vinte vezes mais retumbante que o de Watergate.

Entretanto, tudo isto ficou na segunda plana. - Por que?

Para sustar o declínio de sua popularidade, Nixon só pode alegar as correrias aeronáuticas levadas a cabo por Kissinger, para restabelecer a paz, continuamente ameaçada neste ou naquele canto do mundo. E a polemica anti-Nixon andou tão desatinada que – segundo me consta – ninguém pôs no devido realce o fato de que essas ameaças à paz resultavam sistematicamente de pressões russas. E que tais pressões, por sua vez, provavam a perfeita inutilidade da détente para transformar a Rússia em potência pacífica. Quando Kissinger voava de cá para lá ou para acolá, a fim de "salvar" a paz, não fazia senão cobrir com o frágil esparadrapo de um tratado, alguma chaga aberta pelo Kremlin.

Ora, tudo isto pouco ou nada parece ter pesado na queda de Nixon. O que pesou de modo capital foi que haja favorecido a violação de uma sede do partido da oposição, sonegado alguns tantos dólares de seu imposto de renda, e tentado esconder ao Congresso algumas gravações de conversas telefônicas.

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Exagero a subestima em que ficaram as ações mais reprováveis de Nixon? – Nem um pouco. Senão, seria incompreensível que o Presidente Ford tivesse podido manter Kissinger no seu cargo de Secretário de Estado, com a declarada intenção de continuar a política de Nixon, sem que um protesto, grande como um tufão apocalíptico, tivesse feito sentir ao novo Presidente o desagrado da nação afrontada.

Nixon caiu. A détente, o pior que houve em sua gestão, ficou de pé!

Crise louca: é assim que passará para a História o episódio que levou Richard Nixon a renunciar...