"Folha de S. Paulo", 16 de julho de 1977

Diário comunista romano aplaude Paulo VI

A audiência para a entrega das credenciais do embaixador brasileiro, Sr. Expedito de Freitas Resende, a Paulo VI — no decurso da qual o Pontífice respondeu às palavras de saudação do diplomata mediante a tão comentada alocução — ocorreu no dia 4 deste mês.

No dia 5, a imprensa brasileira publicava o texto de Paulo VI, e as primeiras repercussões à alocução de S.S. começaram a se esboçar com respeitosa e prudente lentidão em nosso ambiente. Entretanto, o diário romano "L’Unitá", órgão do Partido Comunista Italiano — que evidentemente não tem respeitosas lentidões a não ser no tocante a Moscou — já no dia 6 publicava uma notícia-comentário sobre as palavras do Pontífice. Muito sintomático é que elas foram de franco aplauso...

Falei de "notícia-comentário". O leitor, que sabe o que é uma notícia e o que é um comentário, talvez não imagine o que designo por tal. Uso a expressão para caracterizar certa matéria jornalística noticiosa na sua essência, porém ao longo da qual os fatos são dispostos de tal maneira que cada elemento noticioso traz subjacente um comentário. Ademais, a estruturação da matéria é tal, que se desdobra muito naturalmente em breves prognósticos: não há o que comente de modo mais expressivo um fato do que a definição dos efeitos que normalmente ele produzirá. Portanto, notícia-comentário é bem a designação que pode dar ao leitor a idéia do que seja esse híbrido gênero de produção jornalística.

Híbrido sim, porém não ilegítimo. Em si, o gênero nada tem de intrinsecamente fraudulento. E oferece a vantagem da concisão: condensa muita matéria num pequeno espaço.

Não é, pois, minha intenção criticar a notícia-comentário de "L’Unità" por fraudulenta enquanto tal. Nem tampouco por inveraz. Pelo contrário, manda-me a imparcialidade dizer que, estritamente no tocante à interpretação da alocução pontifícia, ela me parece objetiva e sagaz. A notícia-comentário contém, isto sim, informações e apreciações torcidas sobre o atual quadro sócio-político de nosso País. Torcidas, bem entendido, de conformidade com a ideologia e os interesses do comunismo. Sob este aspecto, a notícia-comentário de "L’Unitá" é inteiramente recusável.

Resumo quanto possível a notícia-comentário, dando maior extensão à interpretação das palavras de Paulo VI que interessam diretamente ao presente artigo.

O órgão comunista começa por pintar a seu modo a situação do Brasil. As "dificuldades no terreno político e econômico" se multiplicam.

A inflação galopa sem cessar. Em conseqüência, descontentamentos. E diante dos descontentamentos, o Governo reage pelo "método duro". A perspectiva da sucessão presidencial agrava o panorama. O Governo, temeroso ante a oposição, cassa o deputado Alencar Furtado. O diálogo entre o MDB, "único partido de oposição admitido por lei" (e na palavra "único" se exprime a inconformidade de "L’Unità" pelo fato de não ser permitido o funcionamento legal do PCB), e a ARENA está paralisado.

Não tenho filiação partidária, não sou político, e assim me imposto ao escrever o presente artigo. Sem prejuízo disto, afirmo o que aliás salta aos olhos de qualquer leitor. Isto é, que o panorama brasileiro descrito por "L’Unità" tem não pouco de unilateral, simplista e tendencioso. Marca-o sobretudo certo geometrismo de espírito, muito explicável em comunistas hiper-teóricos, e em estrangeiros que não conhecem o Brasil, nem nosso famoso "jeitinho". Esse "jeitinho" que nos dá a possibilidade de encontrar soluções sumamente ágeis e dúcteis para crises políticas, e até mesmo econômicas, de maneira que evitamos habitualmente nossas convulsões, ou quando as temos, "as convulsões que aqui convulsionam, não convulsionam como lá". Lá, isto é, em qualquer lugar fora do Brasil.

O fato é que, depois de enunciado o quadro crítico, capciosamente apresentado como dramático, "L’Unità" afirma, esfregando as mãos de contente: "Numa situação atravessada por tantos motivos de tensão, as palavras pronunciadas por Paulo VI [...] se tornaram facilmente um elemento do debate interno nos ambientes da ditadura [é como o jornal designa os meios governamentais] e entre aqueles que se opõem a ela".

Neste ponto, "L’Unità" viu claro. As palavras do Pontífice são de molde a só aumentar as tensões existentes entre nós. Se elas tivessem sido pronunciadas por um Pio XII ou um Pio XI, talvez lograssem até — sem que o "jeitinho" o pudessem então impedir — pôr o Brasil em convulsão.

"L’Unità" prossegue, citando como exemplo da força tensiva da alocução de Paulo VI, o seguinte tópico: "A busca da eficiência e a preocupação de garantir a necessária ordem pública não devem criar situações de arbítrio ou de violação dos direitos imprescritíveis da pessoa humana".

Como poderia não ser criadora de tensão, num país católico, e por isso mesmo sensível, mesmo sob o atual Pontífice, a toda palavra procedente da Cátedra de Pedro, tal chamada à ordem, dirigida ao nosso Governo na pessoa de seu embaixador? Se a Santa Sé possui provas de violação dos chamados "direitos humanos" (direitos naturais do homem como criatura de Deus, e direitos do cristão, diriam Pio XII, Pio XI e todos os seus antecessores, evitando qualquer concessão ao linguajar laico), como seria santo e adequado que as fizesse chegar confidencialmente a nosso Governo. Se este não desse atenção a essas provas e a Santa Sé então as pusesse em mãos do episcopado brasileiro, para que este, por sua vez, as fizesse valer junto ao Governo, e se necessário junto à opinião pública, nada mais justo. Se, por fim, nenhuma dessas medidas surtisse efeito, e a Santa Sé se visse reduzida a um grande protesto público, que o fizesse.

Mas — sempre postas as provas indispensáveis — esse protesto só poderia ser aceito como um nobre, imparcial e paterno gesto de solicitude pastoral, se antes o Pontífice condenasse com ênfase proporcionalmente muito maior as inomináveis atrocidades cometidas por outros governos, especificamente os governos comunistas.

Como tal não sucede, e como as mais clamorosas barbaridades continuam sendo praticadas por regimes comunistas, com cujos dirigentes a Santa Sé está em franca détente", a pergunta que salta ao espírito é: por que escolheu ele o Brasil para essa repreensão? Por quê? E ainda uma vez, por quê?

O órgão comunista italiano não precisava, de dons proféticos para prever que as perplexidades nascidas desta grave interrogação — até agora sem resposta — haveriam de aumentar as tensões entre nós.

Mas, a esta altura do raciocínio, outra pergunta é inevitável. O que o órgão comunista previu, não o previu também Paulo VI, de velha data adestrado numa das mais altas e ilustres escolas de diplomacia, que é precisamente a escola vaticana?

Que ele não tenha previsto, é de todo em todo improvável, e além do mais não faz honra à sua capacidade de discernimento.

Se ele a previu, qual foi a sua meta ao intervir tão insólita e precipitadamente em nossos assuntos internos?

Compreende-se a perplexidade que esta pergunta causa a qualquer católico, ou mesmo a qualquer brasileiro que possua, no grau mais elementar, o entendimento das coisas.

A perplexidade aumenta quando "L’Unità", estendendo para toda a América do Sul seus comentários, chega às últimas fímbrias de suas perspectivas: "No caso dessa declaração do Papa, bem como de outras de análogo teor de Carter e de seu secretário de Estado, nota-se como as ditaduras sul-americanas, que são órfãs ideologicamente, vêem, dia após dia, secar-se a fonte de sua razão de ser ideológica e cultural. Para os países católicos e americanos [...] o presidente dos EUA e o Papa são os símbolos nos quais o poder dominante sempre quis identificar-se. Que tais símbolos falem contra as ditaduras [...] provoca nas classes dominantes efeitos de instabilidade". Daí, sempre segundo "L’Unità", golpes e contra golpes entre governo e oposição. E como desfecho, a prazo médio, uma situação propícia ao comunismo. Então, diz gostosamente o jornal, fazendo suas as palavras de um político esquerdista uruguaio que cita, "tudo dependerá de nossos amigos do mundo inteiro". Pelo contexto se vê que um destes, que desde já vai abalando o País, é Paulo VI.

Bem entendido, a sinistra esperança do comunismo não passou despercebida à finura política de nosso povo tão inteligente. Daí as aprovações calorosas e vibrantes que me chegaram ao conhecimento a propósito do telegrama que, na qualidade de presidente do Conselho Nacional da TFP, enviei a Paulo VI. Telegrama que, por certo, o leitor já conhece, pois foi publicado por vários diários desta Capital, entre os quais a "Folha da Tarde". E, em seção livre, pela "Folha de s. Paulo".

Bobo, o brasileiro não é. Muito, e muito pelo contrário...