"Folha de São Paulo" – 25 de julho de 1977

34-75-77

34-75-77. O número faz pensar nos telefones ou nas chapas de automóveis de São Paulo de dez anos atrás. Não se trata disso. São três datas características na história parlamentar da indissolubilidade do casamento: 1934, o êxito esplendoroso; 1975, uma defesa assegurada por uma proeza; 1977, o divórcio! E, de minha parte, eu ousaria acrescentar, a estas três etapas, uma outra sob forma de interrogação: em 1978, ainda o divórcio?

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O preceito da indissolubilidade do vínculo conjugal foi introduzido na Constituição Brasileira em 1934. Tive a alegria e a honra de ser, como deputado da Liga Eleitoral Católica, na "Chapa Única por São Paulo Unido", um dos batalhadores mais entusiásticos em prol dessa grande vitória católica. Por ela batalhou com sagacidade e empenho o pranteado cardeal Sebastião Leme. Dispunha este do apoio dos muito numerosos deputados sufragados pela LEC no Brasil inteiro. Foi coordenando-os e estimulando-os, que ele nos conduziu todos, ao êxito.

Foi isto em 1934... À testa do episcopado nacional, havia um D. Leme. No Brasil havia uma LEC estuante de vitalidade. Não há mais um d. Leme. Também não há mais uma LEC, e a gloriosa conquista da indissolubilidade rolou por terra, como um anel se solta de um dedo que definhou. No lugar do anel, abriu-se uma chaga. E' o divórcio.

Estando assim as coisas, é este inevitável? - Em tese, não. Aprovada como está a emenda constitucional divorcista, o divórcio entretanto não pode ser posto em prática sem uma ou algumas leis ordinárias que disponham sobre a matéria. E, por sua vez, é provável que a aplicação dessa ou dessas leis não se efetive sem regulamentação do executivo. Assim, quer por meio do voto majoritário da Arena, sobre o qual tem natural influência, quer pelo exercício das atribuições inerentes à suprema magistratura o Sr. presidente da República, gen. Ernesto Geisel, pode deixar inaplicado o divórcio até as eleições de 1978.

S. Exa. timbrou em manter-se neutro no debate da questão. Parece-me que ele levaria sua neutralidade a um desejável requinte, se se empenhasse por manter em suspenso a aplicação da medida, para ouvir o povo brasileiro, e deixar a este o veredictum final.

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Em telegrama a todos os Srs. arcebispos e bispos do Brasil, o grande bispo de Campos, d. Antônio de Castro Mayer, fez notar que o problema do divórcio não esteve presente nos programas ou nas promessas eleitorais da quase totalidade dos atuais congressistas. Escolhendo-os, o povo não sabia se mandava ao Legislativo um divorcista ou um antidivorcista. Não é fácil sustentar, pois, que neste particular a opinião do Congresso reflete com precisão a do povo.

Isto posto, por que não aguardar as eleições de 1978, que já começam a apresentar-se no horizonte político?

Se o Sr. presidente da República não quiser fazer uso de suas atribuições, e poderes, resta todavia um recurso para que o divórcio não se estabeleça efetivamente entre nós. Consiste em que o próprio Congresso se exima de fazer uma ou algumas leis ordinárias, que regulamentem a matéria. A elaboração da legislação ordinária pertinente não está adstrita a qualquer prazo. Se os componentes do Legislativo quiserem submeter ao pronunciamento do povo a deliberação que, como representantes deste, tomaram, será só deixarem escoar o tempo até as próximas eleições. Seria, na força da expressão um beau geste, que ficaria célebre na história mundial do regime representativo.

Este beau geste viria especialmente a propósito, tomando-se em consideração que a batalha pró e contra o divórcio comportou surpresas. O que não ensejou à opinião pública pronunciar-se à vontade sobre o assunto.

Duas características diferenciam com efeito, os prélios sobre o divórcio, respectivamente de 1975 e 1977.

Em 75, a ofensiva divorcista era clara, buliçosa, espumejante. Ensejou ela, assim, uma reação análoga dos antidivorcistas. Em 77, pelo contrário, o andamento do projeto de divórcio se processou, em quase todas as suas fases, numa quietude que fazia esperar a derrota dele. O quorum parlamentar era de sóbrias proporções à vista das férias de meio do ano que se aproximavam. Parecia provável que, por falta de número, o projeto caísse. Mas subitamente, e quase à ultima hora, afluíram dos quatro pontos cardeais congressistas inesperados. Os divorcistas em maioria. E a certeza que muitos tinham, de que o divórcio não passaria, se transformou numa cruel desilusão.

"Certeza", disse eu há pouco. Esta, jamais a tive. Em comunicado da TFP publicado em seção livre da "Folha", bem como na imprensa diária de todo o Brasil, ao mesmo tempo que eu exortava os Srs. congressistas favoráveis ao divórcio a evitarem para o nosso País o trauma de uma tão grande transformação, sobrevinda precisamente no difícil período que atravessamos, fiz sobre as perspectivas de futuro a seguinte ressalva prudencial:

"O que é a atualidade política hoje, será história amanhã. E os historiadores mais célebres concordam em que o papel dos fatos imprevistos e dos casos fortuitos - independentes tantas vezes da vontade dos que participam dos grandes prélios da vida pública - altera com freqüência o curso previsível dos acontecimentos.

"E, paradoxo, altera-o por vezes com especial facilidade, exatamente porque era previsto. Em outros termos, todos confiavam em que os fatos corressem de certo modo. Várias das providências necessárias para tal são assim omitidas ou realizadas a meias, precisamente porque tidas como supérfluas. Isto permite ao imprevisto que salte para dentro da liça e mude o desfecho da luta".

E foi o que sucedeu.

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Mas vem a propósito enunciar aqui a outra diferença - tão característica dos dias em que vivemos - entre a pugna de 75 e a de 77. Em 75, embora claramente ameaçador o risco do divórcio, a CNBB portou-se com uma discrição - digamos assim - vizinha da abulia. Nos arraiais antidivorcistas sem liderança, D. Antônio de Castro Mayer lançou sua famosa Pastoral "Pelo casamento indissolúvel", avidamente recebida pelo público. Dela, os sócios e cooperadores da TFP venderam, durante dois meses, em praça pública, cem mil exemplares. Foi um raio. Um raio de vida, e não de morte, que eletrizou e reergueu a opinião antidivorcista desalentada. E à emenda divorcista faltou o número de votos exigido pela Constituição.

Em 77, pelo contrário, a CNBB entrou no assunto. Entrou de meio corpo na liça, melhor diríamos. Com um braço empunhou o estandarte antidivorcista, enquanto o outro pendia confortavelmente ao longo do corpo. Desejo de não acender a luta para evitar o afluxo a Brasília dos congressistas pró divórcio? Houve, nos próprios meios antidivorcistas, lutadores com muitos serviços prestados à causa da indissolubilidade, que assim sentiram o panorama. E não sem presumível entendimento com personalidades da Hierarquia eclesiástica.

O que fazer então? De fora desses entendimentos como estávamos, tomar em terreno mal conhecido a iniciativa de algum lance de grande efeito, assumindo assim a responsabilidade pelo eventual afluxo a Brasília, dos congressistas ausentes? Pelo que se passou, vê-se hoje que, em qualquer hipótese, este afluxo teria ocorrido. Não o teria provocado nem evitado quem levasse a cabo o lance. Mas, em qualquer caso, teria sido responsabilizado pela derrota da indissolubilidade conjugal. Com efeito, os Srs. congressistas pró-divórcio deixaram ver claramente, pela votação nominal, que estavam deliberados a enfrentar o risco de um prejuízo eleitoral, contanto que o divórcio fosse aprovado.

Aliás, seria realmente tão grande esse risco nas eleições de 78? Já que a CNBB apenas de meio corpo entrara na liça em 77, quando tudo ainda podia ser salvo, é de se esperar que lutasse com maior empenho em 1978?

Nas próximas eleições, fica a CNBB com meios para mobilizar vigorosamente o eleitorado católico, de maneira que só vote em candidatos antidivorcistas. Têm os Srs. congressistas contrários ao divórcio muitos motivos para esperá-lo? - À vista dos antecedentes, duvido. - Têm os Srs. congressistas pró divórcio muitos motivos para receá-lo? - Duvido também.

Eram estas, perguntas que, antes mesmo da aprovação do divórcio, não terão escapado à sagacidade dos congressistas.

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Essas as previsões, esse o clima que a abulia da CNBB já por ocasião da votação do divórcio causava. Em 1977, em tal clima, que "raio" lançar para evitar o divórcio? Reeditar a Pastoral de D. Antônio de Castro Mayer, a qual para o grande público, em que se tornara conhecidíssima, causaria forçosamente a impressão de coisa "já lida"? Sair com outra publicação? Mas para dizer a mesma coisa? E com que impacto sobre o público?

Com efeito, as circunstâncias haviam mudado, e com elas o ambiente. Mais especificamente, em 75 o estandarte rolava pelo chão. Era pegá-lo, e levá-lo adiante com vigor. É o que foi feito. Em 77, ele estava na mão mole da CNBB...

Mas, enfim, essas são elucubrações que participam do retrospecto histórico. Voltemo-nos para o futuro.

O que ocorrerá? Podemos contar, nós antidivorcistas, com o beau geste a que me referi?

Falei em beau geste. Para responder, exprimo-me também em francês: qui vivra, verra.

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A par do problema divorcista, pretendia eu tratar hoje do cerrar de portas do México ao Sr. arcebispo Marcel Lefèbvre. E de rumores, posteriormente desmentidos, de análogo fato na Argentina. O divórcio me tomou todo o tempo e todo o espaço. Porque enche de tristeza todo o meu coração. Porém o tema, e mais especialmente o gesto do governo mexicano - que de nenhum modo eu qualificaria de beau geste - deve por mim ser analisado no próximo artigo.