Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

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21 de outubro de 1977 

A Gaita, a Jandaia e o Realejo

"Coexistência pacífica"... A expressão me veio à memória, trazendo, ato contínuo, ao espírito uma imagem, e aos lábios um sorriso.

Resido e trabalho em Higienópolis. São aos milhares os ruídos indesejáveis que neste bairro se propagam de sol a sol. Entre eles distingo, de quando em vez, a gaita arcaica, porém tão caseira, afável e simpática, com que anuncia sua presença um afiador de facas. Passo a passo, percorre ele as ruas oferecendo os seus préstimos por essa forma sonora, tal qual já o faziam, entre 1920 e 1930, os seus colegas e predecessores no bairro — então nobre e confortavelmente residencial — dos Campos Elíseos.

Acima, Rua Maranhão esquina com Rua Itacolomi, em Higienópolis, na capital paulista, início do século XX. A residência que figura na esquina é a mais antiga que existe ainda hoje naquele bairro. Abaixo,  foto do mesmo local em meados do ano 2000, onde era a Sede do Conselho Nacional da TFP brasileira e atualmente é a sede do Instituto Plinio Corrêa de Oliveira.

A tradição é uma força. É uma potência. E entre outras maravilhas que opera, está a de impregnar de poesia e de encanto até mesmo o velho som de uma gaita de outrora. Que seria menos simpática se não fosse velha e se não trouxesse à memória recordações de antanho. Conservar vida e encanto até mesmo do arcaico, qual a força capaz disto, senão a Tradição? 

Em comparação com esta "milenar" sobrevivência dos Campos Elíseos, parece quase nova outra tradição ambulante, que também percorre a Higienópolis de hoje. Isto é, a Higienópolis dos edifícios-moloch de apartamento, e do obsedante ruído do rolar dos automóveis. Esta outra tradição relembra, por sua vez, um marco da história de São Paulo, menos arcaico do que os Campos Elíseos, mas também ele já tão velho: a Higienópolis das grandes mansões europeizadas, construídas ao fundo de jardins com pelouses de curvas molemente sinuosas, à sombra de arvoredos que protegiam a intimidade do lar (oh! a "intimidade do lar" expressão mais ou menos sagrada daqueles tempos, perfeitamente moribunda nestes dias de hoje, em que os lares definham e a intimidade... essa, então, quase não existe mais).

Naqueles remotos idos, São Paulo ainda era toda paulista. E não a babel cosmopolita de hoje. Bem à maneira paulista como eu a quero, essa grande maneira paulista! A "intimidade do lar" não era protegida apenas por pelouses e arvoredos, mas por grades de ferro e portões que mantinham à distância os curiosos, os intrusos e os importunos. Não grades nem portões meramente "funcionais", como poderiam ser os de uma escola ou de um zoológico. Mas, belas grades trabalhadas, com portões que não raro visavam ao monumental.

Os ares da Higienópolis ao mesmo tempo familiar e um pouco hierática e pomposa daqueles tempos eram percorridos, de quando em vez, pelas ondulações musicais partidas de um realejo robusto mas ordinário, que tocava alguma alegre música, de Strauss se não me engano, e com o mesmo espírito vienense, leve e despreocupado, desenvolvia os acordes da Giovinezza. O queixudo Duce, tão dramático, por certo faria uma das suas mais amarradas carrancas se ouvisse assim interpretado o seu hino.

Seja como for, ignorando Strauss e totalmente despreocupadas com o Duce, de uma ou outra casa as domésticas do tempo ("as criadas" se dizia, numa fórmula menos jurídica e mais familiar) se precipitavam para a rua, à procura do homem do realejo. 

 

É que este trazia consigo uma gaiola feia, em que mal cabia uma jandaia gordalhona. A jandaia — uma espécie de minipapagaio verde, lento e mudo — era a melhor colaboradora do homem do realejo, e a mais firme torcida das criadas. Estava ela adestrada a pegar pelo bico, ao som do realejo, e por ordem do dono (um "dono" que dá "ordens" outra coisa que vai morrendo neste mundo que tem cada vez menos donos e mais gerentes, e no qual cada vez menos se obedece a ordens), uns papeluchos dobrados, nos quais o hábil encenador escrevera vaticínios otimistas. Sôfregas, as criadas pagavam uma moeda (onde foram parar as moedas? Delas só restam uns pequenos e depreciados discos de alumínio a que algum decreto atribui circulação forçada de dinheiro), e em troca recebiam da jandaia o vaticínio, que se punham a ler imediatamente. Depois voltavam para casa alegres, levando consigo o sonho da semana: válido até que uma decepção o matasse, ou até que viessem de novo, com o homem, o realejo e a jandaia, novos vaticínios e novos sonhos

Ainda hoje, o realejo percorre de vez em quando Higienópolis. Jamais tive tempo de ir à janela para ver se será conduzido pelo mesmo homem, e se na gaiola ainda está a jandaia gordalhona. Provavelmente sim, pelo menos quanto à jandaia. Pois dizem que os papagaios, coitados, vivem mais do que os homens e — lembro de passagem — é bem certo que não terão depois um céu para compensá-los das gaiolas e das agruras da vida.

A que propósito saio-me com tudo isto?

Ia eu tratar de um outro realejo, também dos tempos antigos, tão insistente em suas repetições quanto o de que falei, e tão cheio de ilusões quanto os vaticínios da jandaia: é a coexistência pacífica. E daí era minha intenção partir para o tema dos direitos humanos, que são o bilhete que Carter oferece no bico, para os utopistas de hoje.

Mas interrompo-me. Isto fica para outra vez. Acabam de entrar na sala dois amigos. Um de todos os tempos. Ainda da era dos Campos Elíseos. Sereno, distinto, culto, como nos Campos Elíseos eram tantos senhores. E, além do mais, professor universitário que faz honra à nossa classe. Outro, bem mais jovem — dileto amigo há mais de vinte anos — nascido na época bem menos distante em que Higienópolis ia sendo substituída pelos Jardins. Brilhante, ativo, destro — ó quanto! — e trepidante, no exercício de sua direção empresarial. Ambos querem conversar comigo. Segundo anunciam, trazem para o "menu" da conversa um prato delicioso: "novidades de última hora".

Caro leitor esqueço o papagaio, o realejo, as criadas. E encerro o artigo. Pois quem não gosta de novidades frescas e autênticas, trazidas por amigos assim?