Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

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9 de junho de 1979

Côncavos e convexos

 


Sumário

A ala reivindicatória da Hierarquia eclesiástica tomou uma posição desinibida em favor das últimas greves.

O Cardeal Arns, por exemplo, a fim de justificá-las afirma que, para a maioria do povo, os salários não são suficientes, e as diferenças de salários são insustentáveis, o que leva uns ao esbanjamento, e outros à fome cruel.

Isto suscita uma série de questões: O que é um "salário suficiente"? É "insustentável" em tese toda e qualquer diferença de salário? Ou é "insustentável" tão-só a diferença dos salários como ela existe no Brasil? São tantos no Brasil os assalariados que se entregam ao esbanjamento? A partir de que grau a fome se transforma em "fome cruel"?

Estas são questões que poderiam ser debatidas em congressos de intelectuais católicos, como propôs o autor em recente entrevista à imprensa.


 

Tive real satisfação em comentar para os leitores a mensagem pontifícia aos bispos reunidos em Puebla. Mas esta satisfação levou-me à aventura de dedicar ao assunto nada menos de cinco artigos. Entrementes, fatos importantes se desenrolavam em nosso País sem que me fosse dado analisá-los pois eu me sentia atado ao tema Puebla pela extensa seqüência de artigos, na qual me engajara. Nada disse, assim, sobre as greves. Terminados os meus artigos, terminaram também elas. Discorro, pois, sobre as mesmas ao baixar do pano. Perdoe-me o leitor... E entro desde logo no que me parece ser o ponto crucial do assunto.

As greves sobressaltaram naturalmente a vigilância dos espíritos lúcidos, afeitos à observação contínua da realidade nacional. Mas elas obtiveram outro resultado ainda, e incomparavelmente mais difícil. Despertaram um pouco de interesse e até de preocupação no grande magma amorfo, átono, que forma neste momento a maior parte da opinião pública nacional.

Há base para se discernir, nas ondulações consideráveis do último sismo socioeconômico, um incremento do espírito reivindicatório das massas? Ou resultam essas ondulações tão só de uma inconformidade episódica com os efeitos que a inflação projeta sobre o valor aquisitivo dos salários? Não é fácil responder a essas perguntas. Tanto mais quanto alguns fatores extrínsecos à agitação laborista condicionaram profundamente a esta. "Grosso modo", toda a imprensa falada e escrita deu às greves um apoio aparatoso. Um apoio que, por vezes, assumiu nítidos aspectos de insuflação. Acresce que o clima de abertura política jogou de modo estranho nesta contingência. Pois ele franqueou caminho a toda espécie de pronunciamentos pró-greve. "Apertura a sinistra" dir-se-ia. Mas, de outro lado, criou toda espécie de inibições para os que desejariam fazer restrições às greves. Como freqüentemente acontece, a "apertura a sinistra" [abertura à esquerda, n.d.c.] redunda numa "chiusura a destra" [fechamento à direita]. Assim, à desinibida conduta pró-grevista correspondeu uma inibida reação patronal.

Por fim, e sobretudo, grande parte da hierarquia eclesiástica tomou uma posição desenvolta, eu diria convexa, em favor das greves. Enquanto a parte da hierarquia que não se pôs à testa das greves tomou uma atitude não menos inibida e côncava do que o patronato.

Ora, estou persuadido de que mais, muito mais do que o governo, os sindicatos, as lideranças operárias ou patronais, ou até os órgãos de comunicação social, influi no povo, no bom povinho ("le menu peuple de Dieu", dizia-se outrora na França, com afeto), a Igreja Católica.

É fácil compreender como todo esse jogo de concavidades e convexidades não especificamente laborais modulou o dinamismo e a trajetória do movimento grevista.

Eis-me assim chegado ao âmago do presente artigo. Isto é, a atitude da hierarquia eclesiástica face ao movimento grevista. Para fazer eu mesmo uma apreciação desinibida e convexa do tema, começo por afastar com uma penada uma causa de equívocos. Parece-me ver de longe gente que esfrega as mãos supondo que me vou pronunciar contra qualquer greve em tese, e "in concreto" contra estas últimas. Desiludam-se esses meus esperançosos adversários ideológicos. Penso a respeito dessas greves exatissimamente como a grande maioria de nossos patrícios. Em princípio, pode haver greves legítimas. As reivindicações enunciadas nas últimas greves – por vezes excessivas, por vezes apresentadas com uma "force de frappe" [força de impacto, n.d.c.] exagerada – corresponderam a situações críticas infelizmente reais. Tendo decepcionado com isto as assertivas de certos adversários, passo adiante.

Por que foi tão longe no bafejar as greves a ala convexa e reivindicatória da hierarquia? Não percebe ela que, à força de avançar aplaudida pela esquerda, vai se distanciando da Nação, que é pacata e centrista?

Tomo um exemplo. O cardeal Arns vem assumindo francamente a sucessão de D. Helder Câmara, na liderança da ala convexa. A palavra dele tem, portanto, nessas matérias, uma carga de significação ímpar. Extraio do comunicado de 3 de maio, que o Purpurado publicou sobre "A Igreja e as reivindicações populares", (cfr. "O São Paulo", semana de 3 a 9 do mesmo mês), as seguintes frases:

"A Igreja de São Paulo tem sido procurada, tanto para apoio quanto para cessão de locais de reunião. Em todas as ocasiões, os representantes desta Igreja têm insistido no fato de os salários serem insuficientes para a maioria de nosso povo. Acrescentaram ainda que as diferenças entre os salários são insustentáveis, porque levam uns ao esbanjamento e outros à fome cruel.

"Nesses casos, a justiça deve pairar acima das disposições legais, sobretudo quando elas são consideradas, até pelos responsáveis da Nação, como desatualizadas".

Se se realizasse por estes dias algum dos grandes congressos de intelectuais católicos que sugeri ao episcopado através de recente entrevista dada a "O Globo" (e a este propósito comprazo-me em dizer que recebi de vários Srs. bispos cartas alentadoras, exprimindo não só compreensão, mas vigoroso apoio), eu pediria nele que especialistas à altura procedessem a uma investigação absolutamente científica a respeito de alguns pontos que o texto do meu arcebispo trata com desembaraçada superficialidade:

Em quanto se deve estimar, no Brasil de hoje, um "salário suficiente"? Que relação deve haver entre a natureza do trabalho e o montante do salário? É real que a trabalhos hierarquicamente desiguais devem corresponder necessidades desiguais, e portanto salários também desiguais? Qual a legítima diferença que deve haver entre salários desiguais? Tudo isto calculado, qual a porcentagem efetiva de brasileiros cujo salário é insuficiente?

"As diferenças entre os salários são insustentáveis", diz nosso pastor: o que quer dizer precisamente esta frase? É insustentável em tese toda e qualquer diferença de salário, mesmo quando estabelecida em função da hierarquia de capacidades e responsabilidades dos trabalhadores? Ou é "insustentável" tão só a diferença dos salários como ela existe no Brasil? E por quê? Que remédio dar-se à situação? A eliminação de toda e qualquer diferença? Ou simplesmente sua redução? Então, em que medida e segundo quais critérios? E se os trabalhadores mais qualificados, dotados de capacidade diretiva ou gerencial privilegiada, começarem a deixar o Brasil à procura de melhores salários no Exterior, como evitar a decadência do trabalho nacional? Vinculando-os por lei aos respectivos empregos, como se conta que o eram outrora os servos à gleba? Ou então levantando uma cortina de ferro em torno do País, para que não fujam?

São tantos assim no Brasil, os assalariados que se entregam ao "esbanjamento", a ponto de concorrerem substancialmente para que outros fiquem reduzidos à "fome cruel"? Em termos concretos, o que é "esbanjamento", nessa terminologia? Qual a porcentagem dos que esbanjam? Como seria no Brasil uma vida cultural e social sem os tais "esbanjamentos"? Proletarizada? De outro lado, o que é uma "fome cruel"? De si, toda fome não saciada é cruel. "Fome cruel" é pleonasmo, é redundância. A significar algo, indica fome crudelíssima. Quais precisamente as zonas de fome no Brasil? A partir de que grau a fome se transforma em "fome cruel"? E a tal "fome cruel", onde existe? Que porcentagem da população ela açoita? Em que medida a supressão dos tais "esbanjamentos" contribui para eliminar a tal "fome cruel"?

Não se julgue que estas perguntas têm um interesse platônico. Estas questões têm um interesse intrínseco inegável. E a meu ver é um mérito do Sr. D. Paulo Evaristo Arns ter a coragem de levantar temas delicados, que outros deixam comodamente dormitar. Digo-o embora minha opinião sobre esses temas seja habitualmente diversa da dele. Além do mais, para o príncipe da Igreja, todas essas anomalias existem a tal ponto que estamos em uma dessas situações que exigem justiça com base na lei, ou até contra a lei: "Nesses casos, a justiça deve pairar acima das disposições legais", afirma ele. Em princípio, concordo inteiramente em que a lei injusta não deve ser obedecida. Mas é grave que um cardeal afirme já termos chegado no Brasil a esta situação extrema. Chegamos mesmo? Que provas concretas há disso?

Ou a ala convexa tem dados objetivos, cientificamente apurados, que permitem dar contornos às noções que seu líder e porta-voz introduz de forma imprecisa e vaga, e ademais apresenta provas convincentes do que afirma, ou então seus brados em favor das "reivindicações populares" não convencerão o País. E não farão o jogo da verdade.

Estas são as ponderações e perguntas que em algum congresso católico sereno, sério, operoso, eu gostaria de apresentar.

Realizar-se-á um dia algum desses congressos?

Não me venha contra-argumentar alguém que a CNBB não dispõe de meios para coletar informações estatísticas que nem o Governo possui. Pois ela, que tanta coisa exige do Governo, comece por exigir dele que obtenha essas informações e estatísticas.


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