Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Artigos na

 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

 

  Bookmark and Share

18 de agosto de 1981 

A irmã e o bombeiro

Só conheço do Sr. Celso Furtado as atitudes públicas. E até hoje não tenho notícia de uma só com a qual eu concordasse. Surpreendi-me, pois, ao encontrar recentemente, no resumo de uma conferência que fez em Salvador, uma afirmação com que estou de inteiro acordo: "É incompreensível se falar em crise brasileira sem se abordar a problemática mundial" (“Jornal da Bahia", 11-7-81).

Muitos são os nossos homens públicos habituados a considerar os assuntos nacionais sem os relacionar com a movimentação geral da política internacional. Concordo em que isto é mais cômodo. Compreensível no tempo em que o Brasil não era uma potência emergente, essa omissão se tornou anacrônica hoje, quando o mundo inteiro se interessa por nós.

Por assim pensar, trato com tanta freqüência, na "Folha de S. Paulo", assuntos estrangeiros. Estou persuadido de que, ipso facto, colaboro com meus patrícios na elucidação dos problemas nacionais.

* * *

É o caso, por exemplo, da repercussão dos assuntos poloneses e franceses na política brasileira. Quando apareceu Walesa na Polônia, em vários países surgiram congêneres, com declarações e programas parecidos aos dele.

As reivindicações dos descontentes poloneses correspondem a necessidades de uma autenticidade berrante em seu país. No mundo capitalista, essas realidades não são tão berrantes. E sobretudo não constituem a regra geral. Mas nem por isto deixam de ser autênticas aqui e acolá. É portanto explicável que a entrada no cenário polonês de uma turba chefiada por Walesa tenha acelerado em outros países a aglutinação de análogas turbas, e que destas tenham surgido análogos chefes. Com o total fracasso de Walesa – a quem entretanto João Paulo II dera, na sala do Consistório, um aval sem precedentes – apagou a projeção internacional do chefe sindical polonês. Colocando-se como líder da terceira-força entre o governo comunista de seu país e as massas descontentes, perdeu ele a confiança destas. Agora que o governo polonês parece perdido, Walesa tende a reconstituir em "Solidariedade" o apoio de base que perdeu. Se o conseguir, aparecerão símiles de Walesa em mais outros países...

* * *

A vitória eleitoral do socialismo francês foi aproveitada pela propaganda esquerdista daqui como argumento para inculcar no espírito público a idéia de que também entre nós a vitória do socialismo "acontecerá". Razão explicitamente alegada: a tradicional influência da França no Brasil. Influência grande até a 2ª Guerra Mundial, mas suplantada depois pela influência anglo-americana. Os esquerdistas aproveitaram a transição para ir habituando nossa classe abastada – outrora ávida de champanhe, e depois de uísque – a beber vodca, e a silabar com faceira correção russa o nome de Brejnev.

Essas pequenas operações mundanas feitas com êxito, ei-los que passam o espanador sobre toda a poeira da nobre era de predominância da influência francesa, para, em nome da tradição, renovar a influência da França. Não mais, entretanto, da bela França do champanhe, mas da França sombria, utilitária e inquietante do socialismo autogestionário.

Tudo isso não passa de bagatelas, dirá alguém. De simples fatinhos da vida diária. – De minha parte respondo que muito superficial é quem não saiba discernir, entre esses fatinhos, o que é bagatela e o que é sintoma. E não conheça, assim, o profundo valor sintomático de coisas em que um espírito superficial não vê senão bagatelas.

* * *

Toda esta introdução teve o fim de mostrar que tratarei de assunto muito do interesse dos brasileiros, ao apontar-lhes uma desconcertante contradição da política polonesa de Mitterrand.

Diante da situação calamitosa da Polônia, deliberou o presidente francês tomar uma atitude ao mesmo tempo simpática, como a de uma irmã de caridade, e açodada, como a de um bombeiro diante de um grande incêndio.

Enquanto as multidões aflitas percorrem as cidades da Polônia, bradando sua fome e sua indignação contra o regime fanático e inexoravelmente coletivista, o governo francês anuncia que começará a enviar à Polônia 300 mil toneladas de trigo, 7 mil toneladas de carne e 15 mil toneladas de açúcar, além de medicamentos. Nada mais simpático.

Ao mesmo tempo, o primeiro-ministro Mauroy torna público que a França "pressionará energicamente" seus aliados ocidentais a emprestarem à Polônia 500 milhões de dólares: o que é menos simpático, pois entre nações soberanas toda forma de pressão viola as normas do bom convívio. Anunciando sua "pressão", o governo francês toma ares de dizer ao mundo que, se outros países ajudarem a Polônia, é à França socialista que esta o deve.

A "pressão" antipática de Mitterrand lhe renderá sem dúvida vantagens políticas. Porém não provocará várias nações a recusarem a ajuda exigida?

Outro aspecto duvidoso da jogada de Mitterrand: se de fato ele efetuar o largo envio que anuncia, quem será o maior beneficiário do gesto? As multidões que andam pela rua ululando sua fome, ou o governo comunista de Varsóvia?

De imediato, é claro que serão as multidões. Mas, quase ato contínuo, e em escala ainda maior, o governo. Pois na medida em que a França atender aos famintos, decrescerão as manifestações. E se encompridará a sobrevida do governo comunista. Com evidente alívio para Moscou, agora tão preocupada com a situação polonesa.

E aqui cabe uma pergunta. – Para as multidões carentes da Polônia, tão dignas de entranhada simpatia, o que é melhor: matar a sua fome hoje, ver decrescer sua indignação e espichar-se a duração do regime ditatorial comunista? Ou suportar mais algumas semanas, talvez só alguns dias de fome, a fim de dar tempo à indignação popular de jogar por terra o governo e o regime? Enquanto o regime comunista viver, os poloneses terão sempre novas crises de fome. Não é melhor deixá-los que se desfaçam do regime?

Assim, a prestatividade de irmã de caridade e a solércia de bombeiro, mostradas por Mitterrand, parecem atender mais às conveniências profundas do PC polonês do que às do povo sofredor e indômito da Polônia.

Aqui fica, pois, um aviso aos brasileiros: Mitterrand não é figurino para nossos homens públicos.

Nota: Os negritos são deste site.


Bookmark and Share