Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

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12 de março de 1982

Ensina Tomé da Póvoa

Amigo de origem alemã – que há pouco se vem iniciando nas suculentas e saborosas delícias da literatura portuguesa – comentou comigo um trecho que abaixo transcrevo. Sorvemo-lo juntos, palavra por palavra, ou melhor, gota a gota. Ora nos deleitávamos com a verdejante carga de veracidade da expressão, ora com o encanto da velha atmosfera lusa que assim ia surgindo aos olhos dele, e ressurgindo aos meus que de há muito a contemplam.

 

Quem, de minha geração não leu "Os fidalgos da casa mourisca", de Júlio Diniz? Suponho que também nas gerações seguintes, numerosos são os leitores do célebre romance.

Dito seja, aliás, de passagem, que este tem um sentido igualitário nada do meu gosto. Porém, não é o que vem ao caso no momento.

"Pai rico, filho nobre, neto pobre": a conhecidíssima assertiva contém uma importante verdade. Mas, conforme o modo pelo qual ela se entenda, contém também um erro grave. Pois está na natureza das coisas que uma família enriquecida procure elevar, em todos os sentidos, a formação dos filhos. Está igualmente na natureza das coisas que essa formação, assentando-se e aprimorando-se através das gerações constitua um corpo de tradições familiares que inspiram simpatia e respeitabilidade e conferem influência. Qualquer que seja a forma de governo – com ou sem títulos nobiliárquicos, pois – é uma aristocracia que assim se constitui. A situação nova pode ser vista pela família com espírito superficial ou profundo. No primeiro caso, parecem ter ficado para trás as necessidades, as lutas, os apuros. É só gozar. Uma vez aceito esse ponto de vista, a família entra em decadência. Orgias, desatinos de gerentes incompetentes, furtos dos procuradores desonestos, quando não estrondosos desabamentos nos negócios fantasiosos e inviáveis. Tudo isto vai deslustrando o nome. Abre-se a era do "neto pobre"...

Mas se a família enobrecida pelo trabalho compreende que, para ela, as dificuldades, os apuros e lutas não deixaram de existir mas tão-só mudaram de aspecto, ao "pai rico" não sucederá o " neto pobre". Se o "pai rico" souber ensinar a seu "filho nobre" que a situação deste é tão precária quanto a do avô, e ainda mais arriscada ("quanto maior a altura maior o tombo"), que o perigo para o nobre consiste precisamente em amolecer, minguar e apodrecer, que a condição de nobre – com ou sem título, repito – impõe deveres muito mais onerosos do que o comum dos homens: então a família pode estabilizar-se e até robustecer-se a cada geração com novas riquezas de alma e de tradição. Elites familiares tradicionais de alto a baixo da contextura social, eis o que se deve desejar.

Mas, em seu romance, Júlio Diniz faz entrever mais ou menos o contrário. As elites apodrecem inevitavelmente. E a marcha ascensional da burguesia de seu tempo deveria substituir a velha aristocracia por um mundo mais igualitário. Os nobres que quisessem remanescer deveriam adotar os modos e estilos dos novos ricos. E não estes, os dos nobres.

Situa-se nesse contexto o encontro de Jorge, um dos jovens fidalgos da casa mourisca, com Tomé da Póvoa que lhe conta como subira: "- Que dia aquele, Sr. Jorge! Eu nem lhe sei dizer o que sentia em mim! Eu sei lá?! Quando voltei da casa do doutor, com o escrito da quitação no bolso, vinha a tremer, pulava-me no peito o coração como o de uma criança; abri sorrateiramente aquela porta da quinta e sozinho, como um ladrão, sem que ninguém me visse, entrei aqui. Digo-lhe que estava quase louco. Até falei alto; lembra-me bem do que disse ao ver-me cá dentro: Isto é meu! E depois que sabia que era meu, parecia-me outra coisa tudo isto. Meu! Eu não me fartava de repetir esta palavra! Meu! Estas árvores eram minhas, estas fontes eram minhas, até estes pássaros, que por aí cantavam, eram meus porque enfim vinham fazer ninho e cantar no que me pertencia. Vai rir-se, se eu lhe disser o que fiz. Eu abracei estas árvores, eu bati palmadas nestes muros, lavei-me nesses tanques todos, bebi água dessas fontes, deitei-me à sombra dessas árvores, eu cantei, eu saltei, eu chorei... Isto me viera de eu ser honrado e amigo de cumprir a minha palavra... Daí em diante foi que eu soube que é ter amor à terra. Desde a sementeira à colheita era um cuidado incessante com o campo. Ver crescer as plantas para mim causava-me tanto prazer como ver o crescer dos filhos; cada novo rebento era como que um nascimento em casa... Media o quanto ia crescendo as árvores que plantava, e trazia contados os frutos dos pomares. Aquilo nos primeiros tempos foi uma loucura. Aqui tem a minha vida. Deus ajudou-me, e daí por diante tudo me tem corrido bem" (Júlio Diniz, "Os fidalgos da casa mourisca", Livraria Lelo e Irmão, Lisboa, s/data, pp. 43-44).

A que propósito tudo isto, meu leitor? O passado já não suprimiu o problema nobreza-plebe, neste findar de século XX? A considerar a realidade imediata, quase tudo diria que sim. Mas o problema igualdade-desigualdade, este aflora mais agudo do que nunca na falsa antítese propriedade-trabalho. E nesse texto Júlio Diniz nos faz sentir que dada a natureza humana como ela é, a propriedade nasce do trabalho, como da haste nasce a flor. A esperança de ser proprietário leva o trabalho à inteireza de seu ímpeto, à sua fecundidade plena, à sua continuidade heroica.

Com essa esperança, o trabalho é como as águas de um rio que corre alegre, célere, bate nas pedras, canta sonoro, alveja em espumas e atinge depois o mar. Sem ela, o trabalho parece um rio de águas espessas, que caminham lenta e preguiçosamente, resignado a caprichosos ziguezagues para contornar os obstáculos sem vencê-los, enchendo ali e acolá espaços marginais, com águas que estagnam, sobre cuja superfície se desfazem as folhas mortas, e os insetos esvoaçam sem fim suas danças ociosas.

Legislar sobre o trabalho: a coisa é indispensável, pode ser justa, pode até ser ótima. Se aos operários se derem todos os direitos, mas as contribuições previdenciárias tirarem o de fazer dinheiro, ter-se-á dado contra o mundo do trabalho um golpe brutal.


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