Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

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10 de agosto de 1983

Ditatorialismo publicitário centrista

A dignidade da abertura consiste na neutralidade.

Com efeito, ela é o contrário da ditadura. E esta última não consiste em fechamento para todos, mas sim para um dos lados do tabuleiro político. Isto é, abertura para o lado em que se encontra o Poder, e fechamento para os que discordam do Poder. Não vem ao caso se a abertura é para a esquerda e o fechamento para a direita, ou vice-versa o contrário. Não é o colorido político do ditador que caracteriza a ditadura. E, por isto mesmo, a palavra ditadura se aplica tanto aos governos que fazem fechamento para a direita quanto aos que o fazem para a esquerda: "ditadura de direita", "ditadura de esquerda" são expressões que se encontram a qualquer momento em todos os lábios, se leem em todos os jornais e se ouvem em todos os rádios e televisões.

Reduzindo a essa clareza elementar e óbvia conceitos já tão conhecidos, tenho a intenção de levar ao último grau da evidência a relação entre neutralidade e abertura. Uma abertura não neutra – disfarce-se como se queira – não é senão uma ditadura.

As correntes de pensamento e os órgãos de comunicação social favoráveis à abertura lucrariam muito tendo continuamente em vista esta verdade tão elementar.

Digo-o especialmente com referência a personalidades, emissoras e folhas que se ufanam de intitular-se centristas. Pois mais de uma vez violam a neutralidade "aberturista", julgando que ficam a salvo da pecha de ditatoriais pelo simples fato de usarem a etiqueta de centrista. Como se uma ditadura centrista constituísse uma contradição nos termos.

A mais ligeira análise revela ser isto inexato. Se um governo, para executar seu programa centrista, praticasse um fechamento tanto para a direita quanto para a esquerda, ele apresentaria evidentemente a grande característica ditatorial, a qual consiste em trancar a voz dos discordantes.

E não se julgue que a hipótese de uma ditadura centrista constitua uma quimera, um simples ente de razão. Para prová-lo, cito um exemplo histórico característico. Em função da política interna da França de seu tempo, Napoleão foi essencialmente um centrista. A França estava então esquartejada em duas facções irredutíveis: os republicanos e os monarquistas partidários dos Bourbons. Instalado no poder, o Corso perseguiu e reduziu ao silêncio os líderes de uma e outra França. E, pela força bruta, impôs seu regime centrista, mescla violentamente contraditória de vulgaridade revolucionária e de aparato régio, justapostos pelas garras da águia imperial nimbada de glória militar. No tempo, era esta a forma praticável de centrismo. De centrismo ditatorial.

Numa perspectiva anacrônica, o que estou afirmando só concerniria ao Estado com seus três Poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas, como já tive oportunidade de escrever, o Estado de hoje – máxime o do Brasil – não pode ser visto fora do contexto de mais dois outros poderes, estes não-oficiais. Mas tão influentes na condução da "res publica" quanto os três Poderes oficiais. Os dois Poderes não-estatais são a Publicidade (4º Poder) e o Episcopado (no Brasil, a CNBB – 5º Poder). O País não terá saído inteiramente da ditadura enquanto ressaibos de ditatorialismo perdurarem no 4º e 5º Poderes. E perduram. Paradoxalmente, foram o 4º e o 5º Poderes que mais fizeram pela abertura. E que mais agastados se manifestam com qualquer sobrevivência de ditatorialismo nos três Poderes do Estado.

Sem que os meios de comunicação social e a CNBB, cada qual nos termos e nos modos que lhe são específicos, timbrem invariavelmente numa nobre imparcialidade, o Brasil terá uma abertura comparável com uma túnica cheia de nódoas e rasgões.

Menciono um caso. Quando da recente passagem do chanceler francês Cheysson pelo Brasil, a Agência Boa Imprensa – Abim lhe formulou, em entrevista coletiva que ele concedeu no Aeroporto Santos Dumont, a seguinte pergunta:

"Um tópico do projeto com o qual o Partido Socialista Francês subiu ao poder diz: "Não pode haver um projeto socialista só para a França. O dilema "liberdade ou servidão", "socialismo ou barbárie", ultrapassa as fronteiras de nosso país". Tal pensamento é coerente com as múltiplas atitudes de apoio à Nicarágua sandinista, tomadas pelo governo francês desde que subiu ao poder.

"Em muitos setores da opinião pública brasileira, quer essa máxima do projeto socialista, quer a política francesa face à Nicarágua comunista causam a maior estranheza. Parece-lhes haver nesse ideologismo socialista "missionário" um favorecimento universal da luta de classes e uma extrapolação da ação do governo francês para fora dos limites de seu país.

"Seria muito propício à boa ambientação da visita que o Sr. efetua, e da já anunciada visita do Presidente Mitterrand, que o Sr. fizesse, neste momento, uma declaração cabalmente elucidativa a esse respeito. Peço-a."

Por requinte de cortesia, a pergunta foi apresentada pelo repórter brasileiro da Abim, Sr. Heitor T. Takahashi, através de um jovem francês Sr. Guillaume Babinet, que lhe servia de intérprete.

Na pergunta, o leitor nada encontrará que destoe das melhores praxes do jornalismo. O entrevistador pode e deve interrogar o entrevistado sobre todo e qualquer assunto que a opinião pública, ou uma parcela desta, necessite conhecer a fim de formar-se uma idéia precisa sobre o pensamento, o programa e a ação do entrevistado na vida pública. Normalmente excluída, pois, a vida privada deste.

Pode ser que a pergunta pressuponha um desacordo entre entrevistador e entrevistado. Negar a legitimidade de tal desacordo importaria em negar a liberdade de qualquer jornalista de oposição fazer perguntas cortesmente incômodas a personalidades da situação: o contrário da abertura. Ditatorialismo publicitário genuíno, pois.

É este o reparo que tenho a fazer a recente noticiário de um dos mais prestigiosos órgãos da imprensa de nosso País, o "Jornal do Brasil". É o que veremos no próximo artigo.


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