Plinio Corrêa de Oliveira

 

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 "Folha de S. Paulo"

 

 

 

 

17 de novembro de 1986  Bookmark and Share

Desbravamento e terras ociosas

"Propriedade ociosa" – "terras ociosas": a expressão é trombeteada pelo agro-reformismo como a dizer "propriedade odiosa"- "terras odiosas". Com efeito, "ócio" faz pensar aí em terras preguiçosamente mantidas inúteis por donos egoístas, enquanto em seus confins agonizam na penúria populações que, se as pudessem trabalhar, sairiam de sua imerecida miséria.

Em conformidade com meu artigo anterior ("Folha de S. Paulo, 5-11-86), em nações que não o Brasil, tal situação pode existir em terras inaproveitadas, de zonas superpovoadas. Mas isso não ocorre aqui. Pois ela se remediaria mediante a partilha das terras públicas em favor da população carente. Partilha aliás não ferreamente igualitária, como tantos agro-reformistas desejam. Mas partilha que respeite a natural coexistência de propriedades grandes, médias e pequenas. Com efeito:

1. No Brasil, o eficaz aproveitamento das terras não utilizadas, ou insuficientemente utilizadas, em orlas da fronteira rural ou para além desta, comporta sobretudo a ação dos desbravadores. Foi por meio destes que o Brasil agricultado alcançou sua atual extensão. E é por meio destes que as nossas atuais fronteiras agrícolas serão progressivamente empurradas até coincidirem com as próprias fronteiras do país.

Ora, o desbravador está para o agricultor comum em relação análoga à do herói com o cidadão tão-só honesto e operoso.

Desbravar pressupõe possuir qualidades pessoais invulgares, empregadas de modo total, para a obtenção de resultados relevantes. O desbravador é, em certa perspectiva, um dom da Providência. Desbravadores dos mares foram os grandes navegantes da epopeia lusa dos séculos XV e XVI. Desbravadores foram também nossos heroicos bandeirantes, e a seu modo o foram, e o são ainda, os missionários, que vão buscar no mais entranhado das matas os inapreciáveis tesouros de Jesus Cristo, que são as almas dos silvícolas a serem por eles trazidos à fé católica.

Em todas essas modalidades de desbravamento, o homem sonha com tesouros inapreciáveis a conquistar. É essa justa ambição de possuir riquezas que os tornem grandes, bem como a seus filhos e netos, que suscita esses indivíduos de escol que se atiram à procura de faroestes, no mundo inteiro.

E se, como o faz a Reforma Agrária, a lei lhes acena apenas com a inexpressiva mediocridade de um exíguo assentamento, esses homens-chave da propulsão rural do país se entregarão a toda espécie de outras atividades, e fugirão do desbravamento como de um cárcere humano.

2. Assim, natural é que o desbravador queira reservar para si área muito maior do que a simples parcela cultivável por ele logo nos primeiros lustros de sua investida desbravadora. Este excedente de terra, ele o destina para garantir o futuro de filhos e netos.

Ora, as áreas inaproveitadas desses justos latifúndios iniciais constituem, no moderno linguajar agro-reformista, "terras ociosas". Haverá maior injustiça do que tachar de "ocioso" este excedente, prêmio bem merecido por esses gigantes e heróis que são os desbravadores?

3. As propriedades "ociosas" que subsistem nas regiões já desenvolvidas (como a região centro-sul do País) são, o mais das vezes, restos – aliás já muito subdivididos – daquelas grandes propriedades primevas, constituídas quando essas zonas eram de desbravamento.

Assim, a argumentação em favor dos direitos dos desbravadores vale também para as terras ‘ociosas" nas zonas densamente povoadas.

4. Não é porém de se excluir a possibilidade de que existam também propriedades – com parcelas de terras inaproveitadas – reconstituídas depois de anterior fracionamento. E isto, por justa razão.

Assim, se um proprietário, dispondo de recursos, quer mecanizar e intensificar a produção rural de certa área, fará bem se comprar certo número de propriedades pequenas, e as anexar à que já tem. Ele terá desse modo reconstituído uma propriedade grande.

Ora, acontece que, muitas vezes, a fim de dotar de adequada configuração o latifúndio que vai constituindo, o proprietário pode comprar certa extensão de terras que ele não esteja habilitado a explorar de imediato. Mas que é de seu próprio interesse explorar logo que seus lucros bastem para isso.

Chamar tais terras de "ociosas", e atrair sobre elas o raio da desapropriação socialista e confiscatória, é obviamente injusto.

5. Por fim, o Estatuto da Terra e o PNRA não fazem a devida distinção entre as terras inaproveitadas, situadas na orla da fronteira rural ou além dela, e terras inaproveitadas, preguiçosa ou especulativamente deixadas ao léu em zonas de inteiro cultivo.

"Especulativamente". Tal especulação, o agro-reformismo moderado, como o radical, costumam apresentá-la sempre sob uma luz desfavorável. E isto porque os lucros produzidos por ela não resultariam direta e exclusivamente do esforço pessoal do proprietário.

Os socialistas e comunistas estão na lógica de seu erro, ao tomar esta posição. Mas de quem se alardeia de contrário ao socialismo e ao comunismo não se pode aceitar essa posição antagônica entre capital e trabalho, defendida por Marx.

Com efeito, com espírito tão mais penetrante do que os esquerdistas, Leão XIII ensinou que o capital não é o contrário do trabalho, mas é o trabalho transformado em riqueza, adquirida pela diligência e pela criteriosa poupança do trabalhador, e normalmente transmitida aos seus descendentes por legítima sucessão hereditária.

6. Assim também, o aumento de patrimônio, proveniente de um trabalhador ter sabido aplicar suas economias na compra de um terreno fadado a valorizar-se pelo progresso das periferias urbanas, ou em ações de sociedades anônimas para cuja capacidade de progresso ele tenha atinado, são lucros que lhe provêm de um particular discernimento das boas ocasiões com que o dotou a Providência. E o fruto desse discernimento natural lhe pertence. Nada disso pode ser chamado "especulação" no sentido pejorativo do termo.


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