Ainda as perseguições religiosas na Rússia

 

O "Legionário" n.º 58, 25 de maio de 1930

 

Causou-nos a mais deplorável das impressões a nota publicada pelo Sr. Medeiros e Albuquerque na "Gazeta", a respeito das perseguições religiosas na Rússia. Não voltaremos ao assunto tão debatido, das perseguições soviéticas, pois que temos orientado suficientemente nossos leitores a este respeito. Deter-nos-emos, no entanto, na análise do artigo do Sr. Medeiros e Albuquerque.

Não sabemos, francamente, qual o móvel a que obedece o Sr. Medeiros e Albuquerque, ao escrever seu artigo.

De fato, que uma pessoa, provida de recursos intelectuais escassos, emita conceitos superficiais a respeito de questões complexíssimas, que exigem demorada análise, causa dó. Mas que um literato do valor do Sr. Medeiros e Albuquerque, dotado do espírito lúcido que todos nós conhecemos, discorra levianamente sobre um problema complexo e grave, qual seja o da questão religiosa russa, é espantoso e profundamente deplorável.

Não creio que S. Sa., inteligente como é, tenha tido a intenção de convencer seus leitores de que é suscetível de dúvida a existência de uma perseguição religiosa na Rússia. S. Sa. não ignora que, quando se quer convencer alguém de uma verdade, começa-se por exibir provas dignas de exame. No entanto, foi precisamente isto que S. Sa. não fez.

Ora, o único fito razoável de um escritor, ao publicar um artigo, é convencer seus leitores da veracidade do seu modo de ver.

Não sabemos, pois, qual o fim colimado por S. Sa. Entretanto, é bem certo que, ao leitor inteligente, é impossível concordar com o Sr. Medeiros e Albuquerque. Se não, vejamos.

Coloquemo-nos no ponto de vista o mais imparcial. S. Sa., em seu artigo, pôs em dúvida a existência da questão religiosa na Rússia, baseando-se em um protesto de 92 sacerdotes norte-americanos, judeus ou protestantes. Depois disto, S. Sa. se refere a uma sociedade cuja tarefa principal é espalhar mentiras contra a Rússia. Afirma ainda S. Sa. que o Santo Padre está pouco satisfeito com a Irlanda e a Bélgica, porque, embora lhe apoiassem o protesto contra os soviets, não tomaram contra estes medidas econômicas, "que era o que o Papa queria". Daí generaliza S. Sa. sua afirmação, e diz que todos os países católicos prestaram ao Santo Padre uma adesão vaga e platônica.

Ora, vamos primeiramente ao protesto dos pastores e rabinos norte-americanos. Verifiquemos, primeiramente, o alcance da dúvida lançada pelo Sr. Medeiros e Albuquerque. Se, de fato, existe uma perseguição religiosa na Rússia, S. Sa. lançou contra a Santa Sé uma suspeita injusta, e ofendeu a crença respeitável da quase totalidade de seus leitores. Ora, S. Sa. só teria, moralmente falando, o direito de levantar esta dúvida, na hipótese de a basear suficientemente em provas dignas de exame.

No entanto, a única prova apresentada, francamente, não merece exame. De fato, o protesto dos pastores e rabinos era dirigido contra o Santo Padre, por "sua falta de humildade" e pela falsidade dos fatos por ele alegados.

É sabido que a atitude da Igreja Católica foi acompanhada pelos protestantes, judeus e ortodoxos, que celebraram nos seus respectivos templos, sinagogas e igrejas, os ofícios religiosos de seus ritos. Além disso, a solidariedade que os mais autorizados representantes destas seitas manifestaram em relação ao protesto pontifício foi tal, que até alguns órgãos comunistas falaram em cruzada das religiões "irmanadas no ódio", contra os inocentes bolchevistas. Trata-se, aliás, de fatos da maior notoriedade, que todos nós, por assim dizer, presenciamos.

No entanto, os 92 pastores e rabinos não protestaram contra seus correligionários, mas tão-somente contra o Chefe da Igreja Católica. Não seria, porém, de boa justiça, que aqueles que se declararam solidários com o Papa fossem considerados passíveis das censuras dirigidas a este? Esta consideração, de elementar justiça, parece não ter sido percebida pelos pastores e rabinos.

Logo, chegamos a uma conclusão: o protesto não passou de uma vil e injusta acusação à Igreja Católica, feita por indivíduos animados de um espírito sectário patente, pois que acusaram só o Papa e não a seus próprios correligionários.

Vamos, agora, à falta de humildade do Sumo Pontífice. O Sr. Medeiros e Albuquerque, os pastores e os rabinos podem não estar de acordo com o modo por que a Igreja Católica interpreta a humildade que Nosso Senhor, durante toda a sua vida, patenteou de modo admirável. No entanto, manifestando-se altiva e energicamente contra os soviets, o Santo Padre agiu em inteira harmonia com esta interpretação.

De fato, a Igreja sempre sustentou, contra aqueles que, sob pretexto de humildade, a queriam ver em uma situação subserviente e subalterna, que Nosso Senhor, em sua vida terrena, tinha sempre timbrado em, a par de sua humildade, levantar bem alto os seus direitos imperecíveis ao respeito dos povos. Assim, fez-se adorar pelos reis magos, demonstrando deste modo a situação de servidão que, perante eles, tinham os poderosos da Terra. Discutiu, ainda menino, com os doutores do Templo, para mostrar que a voz da Igreja se deveria, em todas as circunstâncias, erguer contra a falsa ciência. Lançou aos representantes de Roma e aos fariseus todas as infâmias de que eram réus, para mostrar que sua Igreja, no evangelizar os povos, deveria ser altiva para com os potentados. Levou ao Tabor os mais caros de seus discípulos para que pudessem presenciar o incomparável esplendor, o fulgor inigualável de sua imensa glória. Quis entrar triunfante em Jerusalém, aclamado pelo povo, que o recebeu de palmas na mão. Subiu, enfim, aos Céus, diante de uma multidão enorme de pessoas, manifestando assim, publicamente, o fulgor de sua Divindade.

Ora, considerando todos estes fatos, a Igreja afirma que deveria exigir dos soviets o respeito às leis humanas e divinas, em nome de seu Divino Instituidor. E entendeu que deveria reclamar deles o respeito ao que a humanidade tem de mais sagrado, do mesmo modo por que Nosso Senhor reclamava dos fariseus o cumprimento real, e não verbal, da Lei.

Pode ser que os rabinos e pastores não estejam de acordo com este modo de agir. Mas, estando a atitude do Santo Padre de acordo com os princípios católicos, a mim me parece que o Santo Padre mereceria louvor por sua coerência, e não censuras infundadas e amargas.

Quanto ao fato, alegado pelos pastores e rabinos, de que a Igreja foi um instrumento de guerra contra os soviets, afirmaremos simplesmente que, na melhor das hipóteses, caberia aos bolchevistas o direito de expulsar os católicos. Isto mesmo representa uma concessão que fazemos, apenas para argumentar. Mas matar sacerdotes, fechar templos e, muito mais, procurar apagar nas almas dos pequenos a luz da Fé, constitui uma série de crimes que nem o fanatismo o mais rubro e a tirania a mais desabrida conseguiriam justificar.

Afirma, ainda, o Sr. Medeiros, que o Santo Padre está descontente com a Irlanda, a Bélgica, e até mesmo com todas as nações católicas em geral, por não terem elas tomado medidas econômicas contra a Rússia. Quanto a isto, o Sr. Medeiros deveria ter exibido provas. Seria uma obrigação de gentleman. Certamente S. Sa. não fugirá ao desempenho deste seu dever.

Outra afirmação que S. Sa. deve provar é a de que uma sociedade internacional, existente para combater os soviets, tenha por fim principal espalhar mentiras a seu respeito. S. Sa., como de costume, afirmou e não provou. Espero, no entanto, que fundamente sua afirmação, para que a possa eu destruir.

CONCLUINDO: 1) o Sr. Medeiros escreveu um artigo sobre as perseguições religiosas na Rússia de tal modo que faz supor que, ou menospreza seus leitores, no que não cremos, ou entende que eles devem orientar seus modos de ver segundo as opiniões de S. Sa., sem provas; 2) que o protesto dos rabinos e pastores é: a) injusto, b) incoerente; 3) que as demais afirmações de S. Sa. são destituídas de fundamento, e não podem ser razoavelmente sustentadas.