O discurso de Quitaúna

 

"O Legionário" n.º 218, 15 de novembro de 1936

 

No discurso que proferiu perante a guarnição de Quitaúna, o Governador do Estado, em nome do Poder civil, estendeu a mão, num gesto largo, às Forças Armadas, para inaugurar entre ambas um regime de cooperação leal e decidida.

Aprovamos com prazer a atitude do governador paulista.

Mais de uma vez, temos sido forçados a dissentir do Sr. Armando Salles de Oliveira, nestas colunas. É, que absolutamente não somos situacionistas. E, por isso, não temos a visão perturbada por qualquer incondicionalismo político. No entanto, também não somos oposicionistas. E, por isto, não sentimos a menor relutância em elogiar e apoiar as atitudes governamentais que mereçam nosso aplauso. Somos católicos, e exclusivamente católicos. Por isto, não temos compromissos partidários. E reivindicamos ciosamente, para nós, a liberdade de apoiar as iniciativas boas, e hostilizar as más, procedam elas de onde procederem. E, examinando com imparcialidade o discurso do Sr. Armando Salles de Oliveira à guarnição de Quitaúna, devemos declarar francamente que ele merece nosso aplauso.

O mal-estar reinante na primeira república, entre o Poder civil e as Forças Armadas, foi um dos fatores mais ativos das revoluções de 1922, de 1924 e de 1930. Na segunda república, os comunistas têm sabido explorar habilmente a recíproca incompreensão reinante entre civis e militares. E daí nasceu, em grande parte, a bernarda criminosa de Novembro de 1935.

Quais são as causas dessa incompreensão? O Sr. Armando Salles de Oliveira, no seu discurso, aponta as duas principais. Em primeiro lugar, o isolamento do militar na sociedade brasileira; em segundo lugar, a infiltração, no Exército, de ideologias incompatíveis com o espírito militar e com a "civilização cristã".

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O isolamento do militar na sociedade brasileira, é, em parte, fruto da mentalidade burguesa com que as altas esferas econômicas e sociais consideram as forças armadas.

Tome-se um negociante, um agricultor, um industrial, um capitalista, e pergunte-se-lhe qual sua opinião sobre a posição que o Exército deve ocupar na Nação. A primeira impressão que sua fisionomia deixará trair é a de espanto e embaraço. Espanto, porque é chamado a pronunciar-se sobre uma questão pela qual, no círculo de suas relações, ninguém mostra interesse. Embaraço, porque lhe faltam inteiramente os elementos necessários para formar um juízo sobre o assunto.

Depois de titubear por algum tempo, nosso burguês responderá com algum fórmula vaga: "compete ao Exército - dirá ele, por exemplo - derramar seu sangue pela Pátria em caso de guerra externa; e, em tempo de paz, deve ele conservar-se na caserna, pronto a defender as instituições, quando seja solicitado para isto pela autoridade civil".

Nesta resposta vaga e desconexa, só se nota uma convicção precisa: o militar tem por "habitat" costumeiro a caserna. Dela só deve sair para morrer pela Pátria ou pelas instituições. É uma espécie de cão de guarda, cuja toca só é aberta pelo dono, quando quer lançá-lo contra algum ladrão.

A este estado de espírito, corresponde uma realidade flagrante: freqüentam-se no Brasil os círculos sociais mais seletos, as rodas intelectuais mais escolhidas, os círculos artísticos mais apurados. Quantos militares se encontrarão aí? Pouquíssimos. O Exército, no Brasil, vive à margem da Nação.

A alta burguesia não se limita a afastar de si as Classes Armadas. Ela se opõe, também, a que seus filhos abracem a carreira militar.

Percorram-se os registros da matrícula da Escola Militar ou da Escola Naval. Na lista interminável de alunos, quantos encontraremos, que pertençam à nossa alta burguesia? Pouquíssimos. Principalmente no Exército, a penúria de tais elementos é extrema. E, com isto, fica a carreira militar franqueada, não raramente, a aventureiros sem eira nem beira, que vão prejudicar os bons elementos com que conta o Exército Nacional.

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A este estado de espírito injusto e estúpido, corresponde, nas fileiras militares, uma mentalidade não menos injusta e nem menos estúpida.

É a esta mentalidade, que se convencionou chamar "tenentismo". O que é o "tenentismo"? O "tenente", isto é, o militar de qualquer grau hierárquico, em que domina a malfadada mentalidade que tanto fez sofrer o País há anos atrás, despreza o civil. Para ele, o homem que não veste farda é apenas um semi-homem. O bacharel é apenas um fátuo, de espírito versátil, de cultura extensa talvez, mas inteiramente anulada pela preocupação das questões bizantinas. De energia, de capacidade de realização, não tem um ceitil. De homem só tem as calças.

Compreende-se facilmente que este estado de espírito agrava profundamente a desinteligência entre civis e militares.

O militar "tenentista" só vê para o Brasil um rumo certo: os "tenentistas" devem conquistar o Poder, e devem salvar a Nação. Enquanto isto não se dá, as horas se consomem, na caserna, a excogitar panacéias com que se remedeiem a todos os nossos perigos nacionais.

Duas circunstâncias psicológicas completam este funesto estado de espírito. A primeira é uma confiança inabalável, própria a espíritos primários, no valor de todas as panacéias excogitadas. Nas esferas da mentalidade "tenentista", não há um único militar que não esteja absolutamente certo de que inventou a mesinha política capaz de salvar a Pátria. A outra circunstância é o facciosismo feroz dos que têm o "espírito tenentista". Os seus irmãos de armas, seja qual for sua posição hierárquica ou seu valor intelectual, são incluídos por eles na vil categoria dos civis, desde que não partilhem de sua mentalidade.

Como a arca de Noé, a sabedoria tenentista flutua sobre o pélago da ignorância e da cupidez brasileiras: fora dela, não há salvação.

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Com a habilidade macia que o caracteriza, o Sr. Armando Salles de Oliveira procura remediar este mal. Para isto, apregoa a reintegração dos militares em nosso meio social.

Tem razão o Governador do Estado. É necessário que o militar brasileiro, como o militar francês, alemão, inglês ou norte-americano, esteja integrado na "elite" da Nação.

Em toda Europa, a fina flor da aristocracia se gloria de dar às forças armadas os seus mais aproveitáveis rebentos. Não há razão, pois, para que a provincianíssima burguesia brasileira assuma, para com a carreira das armas, uma atitude de mofa e de desdém.

Por outro lado, em toda Europa, os militares de maior valor e do mais alto prestígio junto à opinião pública, respeitam nos detentores da autoridade civil a própria dignidade da Nação. Não há, pois, o menor motivo para que os nossos "tenentinhos" queiram arcar com responsabilidades políticas que um Foch, um Joffre, um Pershing, julgaram incompatíveis com as dragonas do militar.

Feita a reeducação do espírito civil e militar segundo as normas apontadas, a aproximação dos civis e militares produzirá os resultados esperados pelo Sr. Armando Salles de Oliveira.

É remédio lento, dirão muitos. Mas, em política, os remédios melhores são os que atuam lentamente.

A estes remédios, fazemos votos para que o Sr. Governador acrescente mais um, a que vagamente aludiu em seu discurso: a influência religiosa.

Se ela é necessária, porque não se regulamente quanto antes a assistência religiosa facultada pela Constituição às Classes Armadas?